A mais nova pressão do governo sobre a Fiocruz

Ministério da Saúde envia ofício solicitando “ampla divulgação” de tratamento precoce com hidroxicloroquina. Detalhe: dois ensaios no padrão-ouro da medicina acabam de trazer mais evidências contra o remédio

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Como faltam evidências que apoiam o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19, o Ministério da Saúde nunca conseguiu realmente emplacar um protocolo liberando o uso do jeito que o presidente Jair Bolsonaro queria – ou seja, incluindo até pessoas com sintomas leves.  Fez, ainda em maio,  só um documento de “orientações”  que, mesmo sem peso legal, teve efeitos práticos lastimáveis. Mas a pasta decidiu ir mais longe, enviando um ofício a uma das principais instituições de pesquisa do país, a Fiocruz, pedindo a “ampla divulgação” do tratamento precoce com esses medicamentos “ao início dos sintomas”. 

O documento foi assinado pelo secretário de Atenção Especializada à Saúde, o coronel Luiz Otavio Franco Duarte (que, diga-se, foi o primeiro militar nomeado para comandar uma secretaria estratégica no Ministério do interino Eduardo Pazuello). Enviado no dia 29 de junho, o ofício foi obtido e divulgado ontem pela repórter Luiza Caires, do Jornal da USP; está endereçado à presidência da Fiocruz e à direção dos institutos Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) e Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF). “Seria uma forma de ter a legitimidade de instituições federais de reconhecido saber científico como a Fiocruz para apoiar o discurso político e ideológico sobre o uso desses medicamentos”, avalia médico e advogado Daniel Dourado, também no Jornal da USP. 

A Fiocruz e seus institutos não devem obediência a orientações técnico-científicas vindas do Ministério, como explica o advogado Paulo Almeida no site Questão de Ciência. “É possível argumentar que, dado que o texto do ofício sugere (e não exige) a divulgação do protocolo federal, que não haveria grandes consequências caso Fiocruz e órgãos conexos simplesmente não cumprissem o solicitado”, escreve ele. Mas nada é tão simples: “Há, contudo, efeitos indiretos de leis (estendida aqui para atos administrativos) que podem nortear debate e comportamento à revelia de sua vigência ou validade. (…) Não é negligenciável, portanto, a intenção de pautar o debate com o uso das ferramentas  da máquina pública. E coincidência curiosa, que esse tipo de prática tenha se intensificado após a queda sucessiva de dois ministros da saúde que tinham perfil técnico, sucedidos por um militar da ativa, cuja maior credencial para o cargo é o alinhamento com as posições tresloucadas do Presidente da República.”

Vale lembrar que, embora respeitada no mundo inteiro pelas suas contribuições para a ciência e a saúde pública, a Fiocruz é desdenhada e atacada por membros e ex-membros do governo. O ex-ministro da Cidadania Osmar Terra já declarou com todas as letras não confiar nas pesquisas da Fiocruz. Mais recentemente, tivemos o desprazer de saber que Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, acha que a Fundação tem “um pênis na porta” e que todos os tapetes são do Che Guevara.

Em nota, o Ministério da Saúde confirmou que se trata de um “ofício de caráter administrativo para orientar os institutos e hospitais federais sobre a Nota Técnica divulgada pelo Ministério da Saúde, que trata do enfrentamento precoce da covid-19”. Observamos que  nem existe Nota Técnica da pasta sobre isso, só mesmo as “orientações” (nada técnicas, por sinal). Resguardando-se, o Ministério prossegue: “(…) a prescrição permanece a critério do médico, sendo necessária também a vontade declarada do paciente”.

A Fiocruz também se manifestou, confirmando ter recebido o ofício e estar “ciente das orientações do Ministério da Saúde sobre o uso ‘off label’ [para uma indicação diferente daquela autorizada pela Anvisa] da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a Covid-19″, e que “entende ser de competência dos médicos sua possível prescrição”.

Enquanto isso…

Dois novos trabalhos trouxeram mais resultados negativos em relação ao uso desses medicamentos na covid-19. Ambos são ensaios randomizados, duplo-cego e controlados por placebo. Nesse caso, os participantes são escolhidos aleatoriamente e divididos em grupos, um que toma o remédio em estudo e outro que toma placebo; ninguém (nem os pacientes, nem os médicos) sabe quem recebeu o quê. Isso é o ‘padrão-ouro’ da medicina baseada em evidências.  

Um desses estudos é o famoso Recovery, realizado por pesquisadores do Reino Unido para testar vários medicamentos em milhares de pacientes. Seus resultados mostram que não apenas não houve melhora significativa com a hidroxicloroquina, como os pacientes em esse remédio tenderam a piorar. E o segundo,  da Universidade de Minnesota, trata especificamente dos casos leves, grande aposta do governo brasileiro. Os pesquisadores testaram a hidroxicloroquina em pessoas depois que foram expostas a pacientes com Covid-19 e que não apresentavam sintomas; o remédio falhou. Testaram também em pacientes que tinham começado a ter os primeiros sintomas… E também não houve nada de positivo. 

Ou seja, a “hidroxicloroquina não parece impedir as pessoas de contrair a doença depois de terem sido expostas a alguém que a possui. Não muda quantas pessoas hospitalizadas com covid-19 morrem da doença. Não reduz os sintomas para pessoas com casos mais leves que não estão no hospital”, resume a reportagem da Wired.

Em tempo: um conjunto de entidades científicas e da área da saúde brasileiras publicaram uma carta contra a indicação de supostos “protocolos de tratamento precoce” da covid-19 sem fundamentos científicos. 

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