A crise continua: Pazuello sinaliza saída

Centrão já pressiona e pode mirar comando da pasta. Cresce embate entre militares e Gilmar Mendes. Ala ideológica do governo se aproveita da situação

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Pelo visto, a crítica de Gilmar Mendes à presença de militares no Ministério da Saúde em plena pandemia terá o condão de forçar aquilo que entidades e especialistas não conseguiram: a saída do general. Segundo a Folha, Eduardo Pazuello teria apontado ao Planalto dois momentos ideais para a passagem do bastão a um ministro titular. Isso poderia acontecer já no final do mês, quando a pasta prevê que os casos de covid-19 na porção que vai do centro ao norte do país comecem a declinar. Depois, haveria outra janela entre agosto e setembro, período em que se espera que os números melhorem na porção centro-sul.

As datas se casam com a apuração de O Globo, que revela que o prazo dado pela ala militar para a permanência de Pazuello como ministro interino é agosto. Se quisesse continuar depois disso, ele teria de ir para a reserva – o que não faria por ainda ser general três estrelas. Pazuello também parece inclinado a refutar o arranjo no qual voltaria a ocupar o segundo posto mais importante no Ministério, a Secretaria Executiva. Quem defende essa opção calcula que ele poderia ficar afastado do Exército dois anos e, ainda sim, voltar para a ativa e se aposentar como  general quatro estrelas.  “Ele tem dito a interlocutores, porém, que essa opção não está na mesa, já que a ‘missão’ que lhe foi dada era temporária”, relata a repórter Natália Portinari.

Segundo ela, o Centrão engrossou o cordão dos insatisfeitos com Pazuello. Lembremos que o bloco de partidos de aluguel defendeu ativamente a permanência do general em um “mandato-tampão” – e quem serviu de porta-voz dessa posição não foi qualquer um, mas o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), ex-ministro da Saúde. A mudança pode indicar uma nova investida do Centrão sobre o Ministério. Os líderes partidários estariam usando como justificativa para pressionar pela saída a ‘falta de experiência’ do general ‘em lidar com políticos’ – coisa que os quadros do Centrão têm de sobra.

Saindo da Esplanada e indo para a Praça dos Três Poderes, o embate entre os militares e o ministro do Supremo continua. Ontem logo de manhã, Gilmar Mendes divulgou uma nota em que manteve sua crítica de que o Exército se associa a um genocídio, mas evitou a palavra. No texto, afirma que não atingiu a honra das Forças Armadas. “Apenas refutei e novamente refuto a decisão de se recrutarem militares para a formulação e execução de uma política de saúde que não tem se mostrado eficaz para evitar a morte de milhares de brasileiros”, escreveu. Ainda de acordo com ele, ‘nenhum analista atento da situação atual do Brasil teria como deixar de se preocupar com o rumo das políticas públicas de saúde’ do país. “Em um contexto como esse, a substituição de técnicos por militares nos postos-chave do Ministério da Saúde deixa de ser um apelo à excepcionalidade e extrapola a missão institucional das Forças Armadas”, afirmou. 

Já de tarde, o ministro do STF voltou a comentar o caso, dando mais ênfase à estratégia do presidente Jair Bolsonaro de se descolar da pandemia. “O Supremo na verdade não disse que os estados são responsáveis pela Saúde. O Supremo disse apenas que isso era uma competência compartilhada, como está no texto constitucional. Mas o presidente esquece esta parte e diz sempre que a responsabilidade seria do Supremo e a responsabilidade seria dos estados. Então eu disse: se de fato se quer mostrar isso do ponto de vista político, isso é um problema e isso acaba sendo um ônus para as Forças Armadas, para o Exército, porque eles estão lá inclusive na condição de oficiais da ativa”, observou, arrematando: “Na verdade, o meu discurso é de defesa da institucionalidade das Forças Armadas, do seu papel, que eles acabem não se envolvendo. Que eles não se deixem usar nesse contexto.”

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que participou da transmissão ao vivo da IstoÉ na qual Gilmar Mendes deu a declaração do genocídio, saiu em sua defesa. “Muitos militares também estão desconfortáveis com essa ocupação. Eles sabem que o fardo está pesado”, disse ao colunista Bernardo Mello Franco. “Numa crise, sempre aparece gente que diz o que o chefe quer ouvir. Mas esta é a maior crise de saúde que o Brasil já enfrentou”, continuou, para concluir: “O Gilmar colocou o dedo na ferida. É por isso que está doendo”.

Cumprindo o anunciado, o Ministério da Defesa protocolou a representação contra Mendes na Procuradoria-Geral da República (PGR) ontem de tarde. E a Lei de Segurança Nacional, sancionada durante a ditadura e que lista crimes que afetam ‘a ordem política e social’, voltou a aparecer. Segundo o Estadão, a pasta sustenta que o ministro do Supremo pode ser enquadrado no artigo 23, que prevê como crime a prática de incitar ‘à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis’. A pena é de um a quatro anos de prisão. Cabe à PGR seguir com o caso ou arquivá-lo.

Acusado nos bastidores de ter pegado leve na réplica a Mendes, ontem o vice-presidente Hamilton Mourão subiu o tom. “Vi o cidadão Gilmar Mendes fazendo uma crítica totalmente fora de propósito, ao comparar o que ocorre no Brasil com um genocídio. Genocídio foi cometido por Stalin contra as minorias russas, foi cometido por Hitler contra os judeus, foi cometido na África, em Ruanda, e outros casos. Saddam Hussein contra os curdos”, comparou em entrevista à CNN Brasil. No início da tarde, Mourão disse a repórteres que a nota divulgada pelo ministro do STF não era suficiente. O vice defende que Gilmar Mendes peça desculpas se tiver “grandeza moral”.

Em editorial, O Globo avalia que “os militares do governo não entenderam” que Mendes criticou o presidente da República. “Afinal, ele é o responsável por colocar um general na pasta da Saúde, na maior pandemia em cem anos.” Avançando um pouco mais na reflexão, o colunista da Folha, Bruno Boghossian, analisa que “a resposta dos militares e a decisão de acionar a Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo amarram ainda mais esse grupo aos resultados e fracassos do governo”.

Já Elio Gaspari vai além: para o jornalista especializado na ditadura militar, a representação do  Ministério da Defesa contra Gilmar Mendes é uma reação semelhante à que deu margem para a edição do Ato Institucional nº 5: “Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Márcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro de 1968 o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio.” Para ele, o recesso do Judiciário – que dura mais duas semanas – permite “que se jogue água nas cabeças quentes”. “Mesmo assim, a fala de Gilmar pode ser usada para alimentar uma crise. Para isso os golpistas precisam dizer que o que eles querem é uma ditadura.”

E quem gosta de crise é a ala ideológica do governo, que parece enxergar no episódio uma oportunidade para voltar ao protagonismo. Ontem, Filipe Martins, assessor da Presidência e um dos membros mais ilustres desse núcleo, caracterizou as críticas aos militares como parte do projeto do establishment político e afirmou ser necessário “resgatar e proteger” a ala ideológica. “Trata-se de um apelo para que Bolsonaro retome sua guerra institucional. É, ainda, uma reação aos generais que afiançaram uma aproximação com os demais Poderes e convenceram o presidente a camuflar seu radicalismo com um discurso aparentemente mais moderado”, analisa Bruno Boghossian.

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