O protocolo que não o é

Documento do Ministério que libera cloroquina saiu sem assinatura e não passou pelo rito necessário para aprovação de protocolos oficiais

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Ninguém assinou o novo documento do Ministério da Saúde que libera o uso precoce de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19, divulgado ontem. Ninguém. Não há o nome de nenhum responsável técnico, nenhum colaborador, nenhum especialista. Para comparação: as diretrizes para diagnóstico e tratamento anteriores, publicadas no último dia 7, trazem a lista das secretarias da Pasta responsáveis, além do nome dos organizadores e de mais de uma dezena de pessoas que participaram da elaboração do texto. Havia a observação de que os estudos sobre esses medicamentos eram incipientes e com resultados divergentes, e que portanto eles só deveriam ser usados em pacientes com diagnóstico confirmado, em estado grave e hospitalizados – assim como já estava estabelecido no primeiro protocolo, de abril.

Em coletiva de imprensa ontem, o secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirmou que o texto já estava assinado por “todos os secretários” e que, se não estivesse (não estava), seria “em alguns minutos” (ainda não foi). Mais tarde, a assessoria de comunicação afirmou que não há necessidade de assinatura

A verdade é que o documento nem pode ser chamado de protocolo, o que foi reconhecido pelo próprio governo. “O protocolo precisa ser algo cartorial, com obrigação de cumpra-se. O que estamos fazendo é orientação”, disse a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação, Mayra Pinheiro. Como lembra o Estadão, a aprovação real de um Protocolo Clínico de Diretriz Terapêutica teria que passar por um rito próprio, e um dos pilares seria a  comprovação científica da eficácia da droga. O que é impossível, já que essa comprovação não existe. Mesmo a Anvisa, agência que regula e registra medicamentos, reconhece que a “segurança e eficácia” do tratamento ainda precisa ser comprovada.

Mas como esperar decisões guiadas pela ciência justo no governo Bolsonaro? Pinheiro justificou ontem a elaboração do documento como resposta a um “clamor da sociedade“. Que a principal propaganda da cloroquina seja feita à sociedade pelo presidente da República em pessoa, é um mero detalhe. “Nós não estamos nos afastando da ciência“, garantiu ela, completando: “Estamos nos aproximando da necessidade de garantir a vida em tempos de guerra”. Foi a mesma metáfora usada por Jair Bolsonaro no Twitter, quando reconheceu a  falta de “comprovação científica” para a decisão. “Estamos em guerra: Pior do que ser derrotado é a vergonha de não ter lutado”, escreveu.  A comparação com um estado de guerra tem sido usado há meses por autoridades de outros países em referência à pandemia. Mas, por aqui, não é bem contra o coronavírus que o governo está lutando…

“É uma posição de altíssimo risco tomada por quem faz política com a saúde. A medida tem objetivo político e não o bem-estar dos doentes. Se quisessem o bem-estar das pessoas, as sociedades médicas teriam sido consultadas”, resume Renato Grinbaum, da Sociedade Brasileira de Infectologia.

O documento lançado ontem até fala na falta de evidências, mas ao mesmo tempo traz indicações precisas de dosagens diferentes conforme os sintomas e o período da infecção. Segundo as orientações, tanto a cloroquina como a hidroxicloroquina devem ser administradas junto com o antibiótico azitromicina – apesar de que no mês passado o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA contraindicou a combinação, pela sua potencial toxicidade.

A discussão que o Brasil trava agora está praticamente vencida no resto do mundo. Ontem a OMS se pronunciou a respeito: “Uma nação soberana tem o direito de aconselhar seus cidadãos sobre qualquer medicamento. Mas gostaria de destacar que, até agora, a cloroquina e a hidroxicloroquina não foram identificadas como eficazes para tratar a covid-19. Diversas autoridades já emitiram alertas sobre efeitos colaterais. A OMS aconselha que esse medicamento seja utilizado apenas em estudos clínicos supervisionados por médicos em ambiente hospitalar, como já ocorre em diversos países”, disse Michael Ryan, diretor do programa de emergências do organismo, quando perguntado sobre a decisão do governo brasileiro.

O médico e biofísico Antônio Carlos Campos de Carvalho, que até esta semana era secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, pediu demissão. “No momento em que o ministro pede para sair e as coisas começam a se agravar, com interferência direta em decisões que não se baseavam em critérios científicos, não dava para continuar (…). Se não interessa qual a opinião do ministério, a opinião do corpo técnico, é ‘eu quero porque quero’, torna-se impossível qualquer grau de racionalidade. É como o menino que pega bola na pelada e diz ‘acabou porque a bola é minha’”, disse à Folha.

De fato, não seria fácil conseguir alguém para se responsabilizar por essa fixação de Bolsonaro que já ajudou a derrubar dois ministros da Saúde. Cláudio Lottenberg, lobista do setor privado cotado para assumir o cargo após a queda de Luiz Henrique Mandetta, também considera “um absurdo” a mudança.

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