Parol de jatobá, garrafa de chita

Armazenada em raros reservatórios de madeira brasileira, fermentada com fubá e limão capeta. Na boca, a sedutora dança de doces e amargos. Breve viagem com a Colombina, tradicional e centenária caninha de Minas Gerais, que também é dada a novas ousadias

Foto: Mapa da Cachaça

Por Maurício Ayer, no blog Molhando a Palavra

No texto anterior aqui do Molhando a Palavra, contei um tanto de histórias (e especulei outro tanto) sobre a cachaça Colombina a partir de um velho rótulo. Convido você a lê-lo, aqui. Aquela prosa foi construída, digamos, garrafa-afora. Foi o rótulo e as histórias que a família produtora guarda nos seus tonéis de lembranças que fazem uma ligação das mais interessantes com o vibrante período do modernismo brasileiro, cujo centenário comemoramos este ano.

Agora, quero inverter a direção: a intenção é mergulhar garrafa-adentro, ou seja, investigar um pouquinho as histórias que estão destiladas no próprio líquido da cachaça. No mundo esvaziado em que domina a mercadoria, percorrer os caminhos que uma cachaça faz desde a produção da cana até a nossa boca pode ser um modo de, ao mesmo tempo, desmistificar e reencantar. A gente reencontra com os sentidos os rastros materiais dessa história, que passa a fazer corpo com a bebida, e é a partir dessas sensações que a gente pode construir um nexo, uma inteligibilidade que transcende um julgamento entre o meramente bom ou ruim. Se a sensação é do corpo, acontece no nosso imediato contato com o mundo, é também ela que nos abre a uma inteligência com as coisas. Então a gente desenvolve como que uma inteligência com a cachaça, em que ela nos ajuda a pensar o mundo.

A tradição dos paróis de jatobá

A Colombina é uma cachaça produzida do modo mais tradicional. O caldo é extraído da cana que melhor se adapta à região – no caso, a variedade é conhecida lá como “cana branca” –, a fermentação é a caipira e a destilação, em alambique de cobre aquecido por fogo direto. Além de tudo isso, a bebida é armazenada em grandes recipientes de madeira, que são a sua principal marca: os paróis de jatobá. Então vou começar por aí.

Você já viu um parol? Não é um tipo de recipiente muito comum, em geral as destilarias utilizam barris ou dornas. O parol é como uma caixa de madeira, construída por peças de madeira intertravada, sem nenhuma peça de metal. São encaixes e travamentos. No site da Colombina há um pequeno videozinho mostrando essa “arquitetura” com uma animação ilustrativa. Trata-se de uma tecnologia herdada dos romanos, que o usavam para armazenar água.

Ao fundo, o centenário parol de jatobá de 12 mil litros; à frente, as novas dornas

Os paróis da Fazenda do Canjica, onde é produzida a Colombina, provavelmente são mais antigos que a própria marca da cachaça, que está comemorando os seus 100 anos. Luciano Souto, o produtor, conta que quando o seu sogro comprou a fazenda, os mais velhos da terra diziam que os dois paróis “sempre estiveram lá”, e que eles tinham ouvido o mesmo de seus avós. Então essas peças de madeira, certamente oriundas de árvores centenárias, foram elaboradas na forma dessas portentosas caixas capazes de armazenar até 12 mil litros de cachaça.

A Colombina Tradicional é uma caninha que descansou três anos num desses paróis. Após tanto tempo de uso, a madeira se expressa de um modo especial. Não se deve esperar o brilho e exuberância de uma madeira jovem – como os doces carvalhos que estamos acostumados a provar na cachaça e em outras bebidas –, mas sim uma composição de aromas e sabores de grande profundidade, algo que só o tempo ensina aos espíritos.

É uma cachaça de cor amarelo claro, entre o palha e um caramelo pouco denso. No nariz, um aroma doce traz, à distância, a cocada morena, em composição com uma característica herbal que vai se revelar plenamente quando trouxermos o líquido à boca. No paladar, a Colombina se desmascara, mas, olha, ela joga entre o mostrar-se e esquivar-se, num jogo sedutor ao qual é preciso se entregar.

A Colombina Tradicional tem corpo médio e preenche a boca com duas regiões de sabores bastante distintas, mas que não polarizam, ao contrário, parecem combinar-se. Uma região doce, frutada, puxando para as frutas secas como o figo rami ou o damasco, mas também trazendo algo de cítrico, com essa interpenetração de acidez e doçura que a laranja tem, e uma outra região mais amarga, que traz a memória de raízes e ervas, como um chá intenso, preparado por uma velha senhora sabedora dos poderes escondidos na mata.

A singularidade desse convívio de opostos, sem que isso pareça uma gritante contradição, ao contrário, sem arestas, como um paradoxo cuja estrutura é o movimento ininterrupto entre os opostos complementares, é algo que as madeiras antigas podem, às vezes, proporcionar.

Digo isso porque essa integração dos vários matizes de aroma e sabor tem relação com o tempo de maturação. Com madeiras jovens, as características da madeira logo se incorporam à bebida, mas é necessário o tempo da oxigenação lenta para que se eliminem as arestas que, às vezes, incomodam na boca.

A cachaça também é oxigenada. Uma bomba faz circular a cachaça no tanque de 3 mil litros – por pelo menos uma semana para a Tradicional e, para a Cristal, um mês. Uma hora por dia.

A exuberância da fermentação caipira

Durante muitos anos, a Colombina Tradicional foi o único rótulo comercializado pela casa. Surgiu a ideia de dar um passo além dessa centenária tradição e aí o impulso é o de voltar à origem: a cachaça branca.

Devo confessar que a Colombina Cristal é uma das minhas branquinhas preferidas. Saiu há poucos dias o ranking da Cúpula da Cachaça: ela ficou em sétimo lugar entre as brancas de todo o Brasil.

Embora seja uma cachaça que segue uma tradição caipira, que por vezes gera uma bebida mais rústica, ela é extremamente delicada, com acentuado frescor, um aroma de cana suavemente doce. Tem também um toque picante e notas herbais do milho, e até do palmito.

Toda essa riqueza de micro-histórias herbais vem da fermentação. Luciano dá uma atenção muito grande a essa etapa do processo. Ele utiliza, como mencionei, a tradicional fermentação caipira, que recorre à cultura de leveduras que está presente na microflora do próprio lugar. Na formação do “pé-de-cuba”, o processo começa com um preparado de fubá de milho, um caldo de cana mais “fraco”, diluído, e uma pequena quantidade de suco de limão. Ele utiliza o “limão capeta”, que aqui em São Paulo eu conheço como limão cravo.

Toda a complexidade da Colombina Cristal, coisa nada trivial em uma cachaça branca, surge ali na fermentação. Porém, o cuidado com a destilação é que vai assegurar a delicadeza e preservar esses aromas e sabores.

No caso, o alambique é o de fogo direto, ou seja, que é aquecido pela queima do bagaço da cana sob sua bojuda panela. Trabalhar com fogo direto não é fácil. É preciso manter um olhar constante, sustentar a temperatura, nem muito alta que queime o caldo e estrague a cachaça, nem muito baixa que torne todo o processo demasiado lento. Mas o fogo direto dá um sabor ligeiramente defumado ao líquido, que pode ser percebido de modo sutil.

O alambique de fogo direto da Colombina

Camadas de tempos e sabores

A Colombina tem outros três rótulos, com outras camadas de histórias. A família de Livia Megre também é proprietária de uma das mais tradicionais fábricas de chita em Minas Gerais, foi aliás o que levou a família para lá. A chita é um tecido popular, caracterizado pelas estampas floridas e muito coloridas. O casal resolveu fazer uma garrafa que fosse adornada pela chita, de modo a homenagear Alvinópolis e contar essa história.

A Colombina Chita é um blend de três cachaças maturadas em jatobá. Além da tradicional, que fica três anos nos paróis de 12 mil litros, a mistura leva uma porção de uma cachaça descansada 10 anos nos mesmos recipientes e uma terceira armazenada em tonéis de jatobá novo de 700 litros. O blend foi preparado pelo próprio Luciano e finalizado pelo master blender Armando DelBianco. Foram produzidas 3 mil garrafas, agora sairá mais uma fornada de 1,5 mil.

Colombina Chita, em suas três cores

Devido à presença do jatobá novo, esse blend oferece mais doçura no início, até lembrando o carvalho e suas notas de baunilha. Mas mantém o amargor como uma espécie de cama na base da boca. É mais frutado também.

A Colombina 10 anos também está disponível no mercado em garrafas especiais, de formato quadrado. Mesmo mantendo o parentesco com os outros rótulos da casa, essa cachaça é certamente a mais complexa de todas. Ela tem o teor alcoólico mais alto, pouco abaixo dos 45%. Na região frutada, ela oferece um inesperado sabor de pera, ou mesmo pêssego, que se pronuncia sem apagar de todo as frutas secas, e que se tempera com uma picância notável. Surpreende ainda é um toque de sal, que vem contrastar e, com isso, realçar os sabores doces sem deixar que eles dominem completamente a cena.

É toda uma dança na boca. Sinto como que uma vibração entre uma leve acidez que se vê cancelada pela adstringência dos amargos, mas que depois retorna abrindo o leque de aromas. Sensações contraditórias que aqui ganham como que um movimento, uma dinâmica.

A mais recente filha da casa foi uma edição comemorativa dos 100 anos da marca, lançada em 2020. Trata-se de um blend de jatobá e umburana, uma das mais tradicionais madeiras utilizadas no envelhecimento da caninha. O blend foi elaborado pelo Marcelo Pardin, um produtor paulista que é um verdadeiro poeta das misturas. Ainda teremos a oportunidade de falar dele mais demoradamente aqui. O blend foi envasado em uma garrafa de 375 ml com design exclusivo, e vendido num “kit centenário” com outros dois rótulos da casa.

Novidades por vir

“Quem tem 100 anos de história não pode ficar olhando para trás”, diz Luciano Souto, “tem que olhar é pra frente”. De fato, a longa e bela história da Colombina não aparece de modo algum como um peso a se levar, ao contrário, está sempre a ser destilada e reinventada pelos herdeiros dessa tradição.

A Colombina tem várias novidades em preparação. Não vou ficar aqui dando spoiler, mas é certo que ainda teremos a oportunidade de degustar muitas histórias futuras, a temperar estes e outros tempos.

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2 comentários para "Parol de jatobá, garrafa de chita"

  1. Luciano Souto disse:

    Que beleza de texto! A cachaça vista com olhos, paladares e olfatos tão sensíveis, conquista os nossos corações. Viva a cultura brasileira e o nosso nobre destilado!

  2. Flávia Megre Mascarenhas disse:

    Que texto perfeito! Cada palavra tão bem acompanhada da outra, e juntas nos levam a viajar por essa história linda, e quando acaba, ficamos com um gostinho de quero mais! Muito bonita toda a saga por trás de uma simples garrafa de cachaça, mas que dentro dela, juntos, o sabor perfeito e a história se misturam! Parabéns!

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