Dirley Fernandes, o jornalista que decifrou a cachaça

O jornalismo e os alambiques se despedem de um bamba, falecido no último dia 15. Para brindar à sua trajetória, servimos uma fantástica crônica que ele preparou, misturando o aventureiro inglês que traduziu o Kama Sutra, o memorialista mineiro e, claro, a branquinha

Nesta quinta, ao longo de todo o dia, centenas de cachaceiros homenagearam o jornalista carioca Dirley dos Santos Fernandes nas redes sociais. Não era pra menos. A cachaça perdeu o seu maior repórter, um devotado defensor e um profundo conhecedor da cultura que envolve o destilado brasileiro.

Editor do site Devotos da Cachaça, cofundador do grupo Cúpula da Cachaça (que organiza um importante ranking bienal da bebida), e personalidade conhecida por todos os profissionais e outros tantos apreciadores da caninha, Dirley faleceu na quarta-feira, dia 15 de fevereiro, às 20h15, em consequência de atropelamento, ocorrido em São Paulo, na semana anterior. Ele estava internado no Hospital das Clínicas, onde foi constatada a sua morte cerebral. Deixa a mulher Anna Maria e três gatas (Anita, Clarice e Branca). 

Dirley ocupava um lugar singular no meio cachaceiro. Jornalista experiente e experimentado, de uns anos para cá organizou sua vida para se dedicar à caninha em tempo integral. Em seu site, o Devotos da Cachaça, publicava notícias diárias, elaboradas com o mesmo rigor jornalístico que ele trouxe dos importantes veículos da imprensa onde trabalhou. Sua ausência será sentida por todo o setor cachaceiro, pois o Dirley era mesmo insubstituível. 

Mas não só. Era um profundo conhecedor da cultura brasileira. Músico amador, podia lembrar a letra de um samba secular puxado aleatoriamente por alguém no balcão do bar, e ainda discutir detalhes de alguma anedota controversa envolvendo uma personagem histórica do Brasil. Seu repertório era inigualável. E foi também um renhido e marrento defensor do Rio de Janeiro – mesmo quando ninguém imaginava criticá-lo, o Dirley se antecipava para defender sua terra, cuja cultura, geografia e história corria no seu sangue como o bolinho de bacalhau e a patrícia.  

Entre tantos personagens que se “sentaram” à mesa recriados pelo imaginário de nossas conversas, certamente não posso deixar de mencionar o carioquíssimo Aldir Blanc. Foi para falar do Aldir e de cachaça, em 2020, já sob pandemia, que o Dirley me convidou a participar de uma live do Devotos da Cachaça. Pela primeira vez trocamos ideias e celebramos nossa fascinação compartilhada pelo Bardo da Muda. 

Quase um ano depois, nos encontramos no Rio, junto com nossas companheiras, Cris e Anna. Sem dizer nada, ele nos levou a um bar na esquina da Rua dos Artistas, em Vila Isabel, onde o Aldir Blanc viveu parte fundamental de sua infância e registrou tantas histórias. Ali o Dirley me contou das vezes que encontrou o Aldir no lendário bar da Maria, ali pela esquina da rua Garibaldi, onde o letrista morava, muitas vezes acompanhado do Moacyr Luz. Dizia o Dirley que lá ia “tomar lições” – não sei se de carioquice, de brasilidade ou de cachaceirice, só sei que ele escolheu os melhores mestres. Depois disso, nos reencontramos algumas vezes em São Paulo. 

Em homenagem ao amigo, propomos a degustação de um de seus textos memoráveis. É a história de uma bebida de nome estrambólico e receita misteriosa, que permitiu a um hábil mixologista de anedotas reunir, no mesmo copo, o aventureiro inglês Richard Burton e o escritor mineiro Pedro Nava. Um texto para saborear e brindar à maravilhosa trajetória do grande cachaceiro Dirley Fernandes. 

Charge do Ykenga, membro da Confraria do Copo Furado, em homenagem ao jornalista e cachaceiro Dirley Fernandes

Crambambali, a misteriosa bebida com cachaça de Burton e Nava

Por Dirley Fernandes

Foi o colunista da Folha Daniel de Mesquita Benevides quem puxou o fio da meada que vamos seguir nesse post, que fala sobre os sinais que a cachaça vai deixando por aí na vida brasileira, o que a patrícia já faz há cinco séculos.

Daniel colheu de Baú de Ossos, livro do brilhante memorialista Pedro Nava, uma citação a uma misteriosa receita cujo nome soa tão teutônico: crambambali. A bebida foi assinalada pelo autor como “sagrada”.

Nava, que passou a juventude entre o Rio de Janeiro da belle époque e as Minas Gerais, onde nasceu, dedica largo espaço em sua obra memorialística aos usos e costumes de sua família, inclusive aqueles que se referem à comida e à bebida.

Em uma passagem do Baú de Ossos, por exemplo, ele revive o mexidinho que a escrava Laura prepararia para Luís da Cunha, seu bisavô materno:

E a Laura levantava, atiçava o fogo, fervia a banha onde refogava os restos do feijão, do angu, do arroz, da carne seca, do cará, punha mais sal, misturava um ovo, nacos de toucinho, rodelas de linguiça e de banana-ouro. Depois ia jogando a farinha aos poucos e num instante o mexidinho estava pronto. Antes, uma lambada de cachaça.

Nava também dá uma informação importante, ao falar do termo “batida”, que no livro batiza uma iguaria feita com rapadura e preparada por Dona Nanoca, a avó do escritor, cearense de origem.

Ele descreve uma preparação alcoólica, para diferenciá-la da receita cearense. A descrição transcorre com indisfarçado prazer:

“Batida”, no Sul, é o aperitivo feito com pinga, limão e açúcar, a clara facultativa posta em neve, o gelo contado, pesado e medido e o gênio que transforma esses ingredientes pobres na bebida altiva e já simbólica, que não pode ter gosto nem cheiro de cachaça, do limão, do açúcar ou do ovo que nela entraram e passaram por mutação.

Como se vê, a descrição de Nava se refere à Caipirinha. A bebida vem com receita semelhante à encontrada em Drinkologia dos Estrangeiros (1945), onde é referida como “batida brasileira”, indicando um uso mais recente do termo “caipirinha”.

Mas vamos ao crambambali, antes que o post se perca pelos intrincados canaviais da história da cachaça.

Crambambali: receita

A passagem sobre o crambambali é notável. A bebida é citada como o acompanhamento da “abóbora da noite de São João” – a qual é recheada com rapadura, embrulhada em folhas de bananeiras e moqueada ao estilo indígena. Nava localiza a região de uso da bebida geograficamente no Centro de Minas.

Comia-se no fim das festas de junho bebendo crambambali e cantando até cair ao pé das brasas que morriam. O crambambali é bebida sagrada – um quentão legitimamente do centro de Minas. A receita? Uma travessa cheia de pinga, rodelas de limão, lascas de canela e rapadura. Toca-se fogo na cachaça e deixa-se esquentar bastante. Apagar, coar e servir em canequinhas de gomo de bambu. Ela teve, aí pelos vinte, pelos trinta, uns tempos de voga no Rio, quando foi adotada em casa de Eugênia e Álvaro Moreyra, que a descobriram no relato dos viajantes do princípio do século passado. Até que Manuel Bandeira espalhou esse segredo de estado pelas colunas da Para Todos

Bandeira, de fato, se referiu ao crambambali em 1929, na edição 55 da Para Todos, revista ilustrada publicada no Rio de Janeiro famosa pelas capas desenhadas por J. Carlos.

Dizia o poeta em sua coluna que faltava ao Brasil que vinha se abrasileirando naquela década com “o samba, o choro e o cateretê tomando conta do carnaval” uma bebida “que não fosse um desses ‘drinks’ de importação estrangeira, manipulados por mãos cosmopolitas de barman argentino”.

O poeta dá os ingredientes do “drink da brasilidade, drink estylo-colonial”. Mas tropeça na tradução da receita originalmente escrita por Sir Richard Francis Burton e fala em “rum”.

E chegamos a essa figura fantástica que é Richard Francis Burton, o homem que falava 29 línguas, o tradutor do Kama Sutra, o etnólogo que explorou África e Ásia e também o diplomata que deu com os costados em Santos e viajou por Minas e Bahia, a serviço de Sua Majestade e de sua insaciável curiosidade.

Crambambali em Lagoa Dourada

Na obra que o erudito britânico publicou em 1869, Explorations of the highlands of the Brazil with a full account of the gold and diamonds mines, ele fala do crambambali, que bebeu no Natal do ano da graça de 1867, em Lagoa Dourada. “Um brulé nativo, altamente aconselhável naquelas frígidas altitudes”, diz ele.

Em nota de pé de página, descreve a receita com evidente entusiasmo.

Despeje em uma terrina uma garrafa da melhor cachaça, acrescente-se uma quantidade suficiente de açúcar, queime-a. Ponha, aos poucos, uma garrafa de vinho do Porto e, quando a chama enfraquecer, um pouco de canela e umas talhadas de limão. Apague, e terá a maravilha dos ‘crambambali’.

Da libação com crambambali, Burton passou a uma serenata e a noite parece ter ido longe. O inglês recorda assim: “Passei muitos ‘alegres Natais’ menos alegres na Alegre Inglaterra e não esqueceremos logo aquele dia do meio do verão em Lagoa Dourada”.

No livro em que recorda suas incursões às Minas, Burton faz várias referências valiosas – nem todas elogiosas – à cachaça, mostrando a centralidade da bebida na vida social de Minas no século XIX. Descrevendo a venda como um dos pilares da vida mineira, ele diz que o estabelecimento tem de tudo, “desde alho e livro de missa, até cachaça”. E explica o que é a bebida:

A cachaça é “schnapps”, o “kwass” do Brasil. O tipo mais comum é destilado de refugo de mel, metido em um alambique velho como as pirâmides e rico em azinhavre. O peculiar óleo volátil ou éter não é retirado da superfície; o gosto é de cobre e fumaça, em igual proporção, e, quando a catinga contamina a bebida, não sai nunca mais.

Burton dividia a cachaça em dois tipos: “a comum, feita de cana-caiana, e a ‘crioulinha’ ou ‘branquinha’, da velha cana madeirense; esta última é preferida, por ser mais ‘fresca’ e fazer menos mal”.

Como se percebe, essa cachaça a que Burton se refere era feita com melaço (derivado da produção do açúcar) e sem tantos cuidados. Em seguida, ele fala de algo mais próximo da nossa cachaça atual.

A ‘caninha’ ou ‘cana’ espanhola é um artigo superior, feito de caldo de cana fermentado em tonéis; é o nosso rum e, quando conservado por alguns anos, especialmente enterrado, o cheiro lembra o rum de Jamaica. Os antigos viajantes habitualmente preferiam essa ‘pinga’ ao vitriólico gim e aos adulterados conhaques que tinham penetrado no país; como a garrafa é vendida por um ‘penny’ ou dois ‘pence’, não há vantagem em adulterar o conteúdo. Bebida com moderação, especialmente nas manhãs frias e nas noites úmidas, faz mais bem do que mal.”

Memórias inventadas?

Agora, façamos uma reflexão: o crambambali que Burton tomou foi preparado, em Lagoa Dourada, por um inglês, Mr. Charles Copsy, de Cambridge. E o ar teutônico da palavra que batiza a receita certamente não é casual. Krambambula é o nome de uma bebida que mistura vinho tinto e vodca. A bebida teria se originado em Gdansk, na Polônia, no século XVI.

A palavra, acompanhando bebidas com receitas mais ou menos semelhantes, passou pela Polônia, por Lagoa Dourada, acabou numa coluna de Manuel Bandeira na década de 1920 e reviveu nas memórias de Pedro Nava, publicadas na década de 1970.

O quentão “brulé” certamente foi bebido por Nava e Burton. Mas a palavra não terá sido uma “falsa memória” de um ou outro? Ou ainda não será apenas a palavra da qual o sr. Copsy se valeu ao oferecer a Burton a calorosa bebida para não ter que vocalizar a seu compatriota o termo quentão, com esse ditongo de tão difícil pronúncia para os anglófonos?

Vai saber…

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P.S.: Recentemente, Outras Palavras publicou um texto seu sobre o conglomerado empresarial que tenta se apropriar da marca de uma renomada pequena produtora de Paraty, no Rio de Janeiro. Leia aqui

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