Contramemória: Um sopro no coração do modernismo

Exposição retoma a Semana de 22, em tensão crítica. Artistas indígenas protagonizam. Violência bandeirante é exposta. Projeto modernista, que renovou horizontes sem romper com pactos sociais de origem colonial, é tomado pelo avesso. Para liberar novas energias criativas.

Detalhe da obra Figura de Convite III (2005), de Adriana Varejão, presente na exposição Contramemória

É como uma exposição à contraluz da história que Contramemória ocupa os salões do Theatro Municipal de São Paulo. Com curadoria de Jaime Lauriano, Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, o evento revela outros contornos de alguns temas centrais do debate em torno do projeto modernista brasileiro. A escolha do lugar da centenária Semana já coloca os espaços físicos e simbólicos do modernismo em tensão crítica. 

No centro, a obra Tião (2017), de Flávio Cerqueira

Na entrada, as esculturas em bronze de um menino armado, sem camisa e de rosto coberto e de uma prostituta ao lado de um poste de rua recepcionam os visitantes – em vez das esculturas de musas ou anjos das artes. As obras de Flávio Cerqueira trazem para dentro do teatro o contraste do que se vê fora, nas ruas da cidade – ou de um imaginário da exclusão. Afinal, que projeto é este de sociedade moderna que não produziu a proteção mínima da infância e que convive sorridente com a superexploração dos corpos? 

O modernismo contra o espelho, narciso imperfeito, num apaixonamento agônico pelo que não foi, mas que insiste em não ficar calado. Pulsando nos tempos e contratempos –  a exposição é organizada em núcleos, cada um procurando dar lugar a um tema pertinente ao projeto modernista. Obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral convivem com criações de artistas contemporâneos, em contraleituras de imagens ou traços clássicos dos modernistas.

Exposição Contramemória, no Theatro Municipal de São Paulo

Assim, o índio personagem há 100 anos aqui toma pé como criador/sujeito de visagens próprias do Brasil e suas histórias. Nos Encantados, Denilson Baniwa inscreve, como palimpsestos, desenhos de inspiração xamânica sobre figurações históricas dos conquistadores. Daiara Tukano corta os ares com a obra sonora “Respira”: o imperativo evoca a presente pandemia (um sentimento que há 100 anos visitava o lugar), mas também outros sufocamentos ainda mais radicais e devastadores, como a destruição colonial das florestas e rios e das culturas que os habitam. 

Na contramão, surgem os bandeirantes, com quem os modernistas paulistas, ligados às oligarquias cafeeiras, não deixaram de se identificar como desbravadores de novos territórios da cultura. Na exposição, esses violentos sertanistas são reposicionados, aparentados historicamente com forças repressivas e devastadoras contemporâneas, como as polícias enquanto agentes de chacinas – pungentemente atuais – e os jagunços armados do pujante ruralismo brasileiro.  

Fotograma de 475 Volver, de Cinthia Marcelle

Neste espaço de contramemória, é particularmente impactante o alegórico vídeo 475 Volver, da Cinthia Marcelle: uma retroescavadeira rasga a terra num mesmo sulco eternamente percorrido – e como abunda em nossa cultura a iconografia que estetiza a destruição… Mas este mesmo vídeo tem o seu avesso: outro vídeo da mesma artista figura uma encruzilhada – ponto de decisão ou indecidibilidade essencial e vigorosa de um povo que é convergência de infinitos cruzamentos?

O evento põe em cena muitos avessos de avessos desses temas e de muitos outros. Este é o último final de semana para visitar essa exposição vibrante e exuberante. Se o governo federal de turno quer aprofundar pelo pior caminho as contradições de uma história de violência e apequenamento, Contramemória mostra que há contracultura em cada gesto vivo de artistas – que insistem em plantar, nas fendas do asfalto, florestas simbólicas que nos permitem respirar. 


Exposição Contramemória

Lilia Schwarcz, Jaime Lauriano e Pedro Meira Monteiro, curadoria

Em cartaz de 18/4 a 5/6

Visite a exposição de terça a sexta, das 11h às 17h (permanência até 18h). Sábado e domingo, das 10h às 15h (permanência até 16h). Fechada às segundas.

O agendamento, que permite o acesso somente a exposição, é feito através da retirada de ingresso gratuito aqui no site, disponível dois dias antes da data da visita, com limite de 2 ingressos por pessoa.

Para saber sobre a visita educativa à exposição Contramemória acesse aqui.

Classificação livre
Ingressos gratuitos retirados com antecedência aqui

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