O delinquente amador e as bruxas da República

Uma cena urbana, vista do alto dos prédios: um homem em fuga é capturado por seguranças do comércio e populares enfurecidos. Mas três mulheres, qual pedra no caminho dos potenciais justiçadores, costuram para ele um outro destino

Por Maurício Ayer

– Ê, ê, êêêêê!

– Aê, aê!!

– Ó aí, ó aê!

A rua lá embaixo de repente invadiu o nosso escritório, como macacos que cruzam o parque em bando a pular pelas árvores.

– Pega ele! Pegaaa!

Uma berraria, uma algazarra de vozes em polvorosa que vinha da esquina da rua de baixo e tomou a sala, como respingos de uma tromba d’água descendo o rio. Corri pra janela, meus colegas também, deu tempo de ver aquela correnteza de gente ser interrompida bem na esquina de cá. Os dois leões de chácara do restaurante, um de colete o outro sem, se deslocaram para o centro da rua, junto com mais um tanto de pescoços longos que obstruíram a zona, e assim fechou-se o bloqueio. O homem que escorria pela rua com os predadores ao seu encalço titubeou e acabou atrapado na malha grossa da segurança privada.

O leão que o mordeu não chegava a ser um cara grande, mas mostrou que dominava o metiê do microcontrole social. Não sei bem como, mas trancou o homem no chão com o joelho e, ato contínuo, passou a estapeá-lo com a ida e volta da mão. E as pessoas acorriam, se juntavam, qual um enxame protegendo uma rainha inexistente, mas com o mesmo instinto suicidassassino desses aglomerados de peçonhas. 

Trancou-se a rua. Se havia escapatória, o homem a perdeu alguns segundos antes. Agora estava encurralado, e não era pouca gente que o cercava. As motos e carros paravam, tinham que manobrar e buscar outras rotas.

– Solta o cara! – gritou um dos nossos, mas aqui do terceiro andar, nessa janela da República, no centro de São Paulo, a rua sobe ao primeiro vento, mas o inverso não acontece, não conseguimos agir sobre o que há lá embaixo. Aquela aglomeração não cheirava bem. Ainda se ouviam os gritos, o rosnado de um cara mais nervoso que quase alcançava o cativo de uma unhada, por trás de outros igualmente inquietos, um berro inconcluso – e o zumbido disperso, odiento, em volta da caça prestes a servir de baixo repasto. Quase um empurra-empurra. A tensão que antecede o estouro da boiada. Basta que o leão de chácara abandone o corpo no centro do terreiro. Ou apenas faça menção.

– Ninguém mexe nele!

O grito irrompeu, e uma fração de segundo depois entrou em cena uma mulher de saia estampada, florida. Sentiu-se a marola percorrer a massa. Que era aquela pedra no caminho? Inquieta, a alcateia ainda farejava a carne no centro da clareira. O leão de chácara sem colete interrompeu as pancadas, mas manteve o homem sob seu jugo. Chegou outra mulher, toda de branco, não, usava uma saia amarela, suave a ponto de ela parecer uma idosa, mas a leveza de seus gestos mostrava que não. Ela se colocou em ângulo com a primeira, fechando a porteira de acesso ao homem. Não disse nada, só ficou ali, formando uma espécie de eixo de proteção.

– Vamos chamar a polícia! – gritou a da saia florida. A palavra esfriou um pouco mais o caldo, amarrou mais um freio no bando.

O capturado era um homem negro, magro, via-se que já não era um menino. Protegia a cabeça com as mãos, mas não lutava, rendido ao inexorável. Perdeu o desejo de escapar? Nenhum de nós sabia se ele cometeu algum delito, mas é bem capaz que fosse um amador, alguém sem nenhuma experiência nas artes do furto. Seria um velho principiante? Se ele tivesse ultrapassado aquele limiar, teria sido bem difícil pegá-lo. Mas ele parecia já não querer fugir.

A sanha circulava, mas sem ímpeto sanguinário o suficiente para uma investida que rompesse a barragem. Será? Um senhor de meia idade, com sapato, calça preta, camisa branca e calva como coroa deu voz ao seu partido:

– Ah! Desse jeito o Lula vai acabar ganhando mesmo!

– Vai sim, graças a Deus! – rebateu a saia florida, intempestiva.

Esse choque entre polos pareceu soltar faísca, descarregou energia potencial, desmobilizou um tanto mais. A de branco… parecia até uma jovem freira, seria? Não, mas seu figurino era o de alguém capaz de desaparecer – e quanta atenção me tomou por isso! A branca – vou chamá-la assim – já se movia num pequeno círculo, resguardando com seu corpo, sua presença, a defesa de um princípio. A essa altura alguém já estaria chamando a polícia, não identifiquei quem. A saia florida centralizava os olhares, estava no comando. Uma palavra assertiva e os dois leões de chácara certamente a obedeceriam sem lapso. Eles guardavam o homem para a polícia – era a ordem a cumprir.

O povo ao redor não arredava pé, seguia bloqueando a rua. Mas já se movia diferente. Guardaria ainda alguma brasa de rapina? Ou apenas a curiosidade de ver como a coisa ia acabar? Já que estamos aqui… Creio que também contava o espanto por essa rápida mudança de posições no pequeno tabuleiro político que ali se formou, magnetizado por um homem em fuga e a voz de uma mulher. Era um novo agrupamento, ao modo de constelação, todos buscavam posições para olhar a cena, mas sem nenhum ímpeto centrípeto, a cena ficou multipolar. Um jovem casal, ele de chinelo e ela de bolsa de pano, comentava da posição norte; um gordão de vermelho e muito alto se aproximou, a sudeste; notava-se uma senhora idosa agora da calçada de cá. E toda uma nebulosa entre brancos, cinzas e alguma cor eventual, estatelando uma angulosa a rosa dos ventos. Organizando a ciranda, a saia florida. E nós, de camarote.

O homenzinho que gritou, o careca, estava inconsolável. Olhando daqui, reparei que era o próprio sósia do Wilson Witzel, até as adiposidades distribuídas por todo o corpo, que parecia meio emborrachado, ele imitava. Agora praguejava com algum vizinho, que o ouvia, concordando ou não, vestido do mesmo jeito que ele, só que bem mais magro. Mas logo o Witzel saiu, sem alongar a conversa, ficou rondando, tentando achar uma brecha pra dizer alguma coisa. Olhou por um outro ângulo, praguejou da mesma maneira.

A polícia demorava. O homem, que não tivera força de fugir, não demonstrava nenhuma resistência. Um conformado. Tanto que o ergueram do asfalto e assentaram no banco do ponto de táxi. O leão sem colete sentou-se ao seu lado, e do outro, em pé, colocou-se uma mulher – uma terceira. Magra, não muito alta, negra, de idade indefinida, ao menos daqui de cima. O modo como apareceu e se colocou ali dava até a impressão de que ela conhecia o homem, e que tinha por ele algum afeto, era seu filho ou marido, a ponto de ele apoiar a cabeça em seu ombro e se entregar ao choro. Era descabido, mas coube, com açúcar com afeto. O homem assentou em sua própria pele. O mundo, pra ele, ficou um nadinha mais macio.

Sem afetar esse elo, a branca agora se pôs bem de frente para o homem, olhando-o nos olhos. E começou seu solo. Falava, gesticulava, sem deixar qualquer dúvida: estava ali descascando o homem, passando-lhe um baita de um sabão. Ele abaixava os olhos, sofrendo mais com essas palavras que lhe alvejavam o moral do que os tapas de minutos antes. Não pude ouvir o teor das palavras, mas a bronca era pesada. Ela apontava para o canto da rua de onde eles tinham vindo, lá onde ele tinha feito algo, lá na origem desse rolo todo. O homem fazia um gesto ritmado com a cabeça, assentindo, e é provável que começasse a querer que a polícia chegasse logo. Mas nessa demora ele ia ouvir, ô se ia. A moça-mãe permanecia ao lado, amparando-o. Não havia contradição entre as mulheres, nem disputa nem qualquer joguete do tipo bate-assopra – na verdade, a branca e a moça-mãe davam corpo a duas formas de cuidado.

A saia florida, que tinha saído do núcleo por um momento, voltou. As três agora formavam um elo inquebrantável. Ao redor delas, o que a comunidade poderia fazer? Olha, se uma delas puxasse um canto é até capaz que começassem a dançar ou a cantar junto, e se alguém sacasse um instrumento toda aquela energia se reverteria num terreiro em festa. 

Só o Witzel, solitário em seus grunhidos, seguia às voltas como um urubu, à distância, já sem esperança de que o bicho morra, por isso mesmo com uma raiva ainda maior de todo o reino animal. Alguém o chamou, ele entrou num carro, entendemos: era taxista naquele ponto de esquina. Mas nem nessa hora quis pegar algum cliente e abandonar a cena, preferiu manobrar, levar seu carro ao fim da fila e continuar naquela beirada do jogo onde ele acreditava ainda ter um papel. O que ele ainda queria?

– Acho que quer contar a sua versão para a polícia – disse minha colega.

Minutos depois a polícia chegou, em três ou quatro viaturas, um efetivo enorme para a situação. Puseram o homem contra a parede, revistaram, depois o fizeram ficar de frente para a rua com as pernas muito abertas, como se fosse abrir um espacate, mantendo o corpo ereto. Ali ficou, exposto, humilhado, mas vivo.

As três mulheres costuraram o seu destino, ele deveria viver. Salvaram também um bando de homens de se converterem em linchadores. Já o Witzel, que não conseguiu um único policial que o ouvisse, nem por isso deixou de falar suas verdades, mas para um desatento colega, que talvez olhasse para as meninas quando, num átimo, elas sumiram no vento.

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