No Municipal, a revolução que Mário de Andrade sonhou

Ópera Café põe em cena um país arrasado pela crise do capitalismo global, que condena o povo à fome e sepulta as ilusões da prosperidade ruralista. Mas não liberta o violento delírio dionisíaco que o autor de Macunaíma imaginou

A montagem da ópera de Café, de Felipe Senna sobre libreto de Mário de Andrade em adaptação de Sérgio de Carvalho, no Theatro Municipal de São Paulo merece uma leitura que discuta, minimamente, o intricado jogo de perspectivas postas em cena, seja como espetáculo – obra artística – seja como gesto – acontecimento político. Arte e política: indissociáveis, por suposto, mas não impassíveis a olhares focais que ressaltem as especificidades de cada dimensão, inclusive algumas permeabilidades entre elas. 

Desde logo, é louvável que a ópera seja um campo de experimentação e dê lugar a criações novas como esta. Café não é um caso isolado, a composição de novas óperas está na agenda das duas casas especializadas de São Paulo – o Municipal e o São Pedro – e de festivais como o de Belém e de Manaus. Não há dúvida de que o gênero, surgido no século XVII e que deixou sua marca principalmente no XIX, ainda encontra vitalidade criativa neste primeiro quarto de século XXI. O que é salutar. A obra de Felipe Senna, por exemplo, me lembrou muito Alban Berg, eventualmente Luciano Berio e até, por vezes, Mozart. É que, havendo composições de agora, o repertório histórico passa a ser lido não como apego a um passado que insiste em não passar, mas em resposta às questões ético-estéticas e poético-políticas de hoje.

Neste caso, a escolha do texto do “último” Mário, inevitavelmente inserida nos festejos do centenário da Semana de Arte Moderna, mostra-se tremendamente potente, pois desde logo põe em análise o Brasil das commodities, tão antigo quanto contemporâneo. E aqui abre-se um leque de questões. A começar porque, como é sabido, o evento que arejou a cultura brasileira há cem anos aconteceu com o apoio de parte da burguesia cafeeira, tendo sido sua financiadora – e também o público a ser “escandalizado”. Mas se em 1922, a rubiácea era promessa de felicidade, não tardou para que, logo ali na esquina, na grande crise do capitalismo global de 1929, entrasse em derrocada. E lá estava a “nação” sempre pronta a abandonar seus “filhos” para tomar no colo os chupins-proprietários que infestam os círculos de poder. É essa virada distópica que Mário retrata no seu texto, a partir da qual projeta um devir utópico revolucionário, afirmando a ideia de que “um dia o povo não teve mais força para não se revoltar”. 

Em suma, Café levou ao palco do Municipal o texto mais declaradamente pró-revolução do principal líder do movimento modernista. 

Não resta dúvida quanto à atualidade e a necessidade da escolha. Sobretudo considerando que hoje vivemos um novo ciclo distópico em que a nação, rendida e aprisionada nas mãos de banqueiros e de empresários do agronegócio – os velhos latifundiários de sempre, agora não à cavalo e de garrucha mas montados em SUVs e fornidos de armas bem mais pesadas –, vê seu povo lançado ao-deus-dará. O sonho de um futuro grandioso para o Brasil assentado sobre a exportação de commodities (o grãozinho dourado agora é a soja, ou o milho etc.), que permitiu melhorias na vida dos trabalhadores sem mudanças estruturais, é esgarçado aos farrapos. E o povo, em abandono e desespero por falta de alternativas. 

Essa contradição de origem é parte do projeto modernista, que tinha caráter a um só tempo renovador e conciliatório, era popular sem deixar de ser elitista. E é especialmente interessante reconhecer que Mário de Andrade já tinha a visão dessa falha, e a enunciou inequivocamente em Pauliceia Desvairada. Deixou-a de lado, temporariamente, para retomar depois, no final de sua vida em alguns textos, dentre os quais Café. Já estava lá o ódio de classe destilado na Ode ao Burguês (que tanto transtorno causou ao jovem poeta quando o publicou, já que na década de 1920 ganhava a vida como professor de piano… das filhas da burguesia paulista). E muito do projeto de sua ópera pode ser reconhecido no original poema Enfibraturas do Ipiranga, no qual Mário desenha um irrealizável oratório coral em que já estão em cena personagens coletivos a se enfrentar num delírio alegórico, apinhados pelos barrancos do Vale do Anhangabaú, logo ali debaixo do Theatro Municipal. O poeta cria uma polifonia de coros e perspectivas inconciliáveis em um Brasil que, com muita dor, dava à luz a si mesmo como nação desejosa de se enunciar. 

Montar Café é trazer à tona esse curto-circuito modernista, um dos aspectos mais atuais do evento centenário, pela trágica repetição cíclica de sua falha, a provar que ainda não empreendemos a análise deste recalque – ou o seu combate revolucionário. Segundo escreveu no programa o diretor Sérgio de Carvalho, este foi um projeto longamente maturado e que encontrou no Municipal o entusiasmo que o fez acontecer. Embora, por convenção – e evidentemente não sem méritos – a assinatura primeira da ópera seja do compositor, está claro que se trata de um espetáculo que tem muito do seu diretor cênico, e traz muitas das marcas que Sérgio de Carvalho imprimiu à sua trajetória, principalmente em toda a experiência da Companhia do Latão: um teatro político, construído com métodos de trabalho e soluções coletivas, com uma base conceitual brechtiana e, também não se exclui o tema histórico. É sobre este bastidor que Felipe Senna vai bordar seu trabalho. E ambos enfatizaram o trabalho coletivo a mobilizar diretores, artistas, trabalhadores do teatro e colaboradores do projeto. 

Pode-se aventar que o propósito geral do espetáculo é enunciado, com simplicidade e precisão, na fala inicial do personagem “Ator”, vivido por Carlos Francisco. Ele entra em cena caminhando em silêncio e diz, apontando didaticamente para aquilo que nomeia: “O público, os artistas, os técnicos, a orquestra, o maestro, o teatro é do povo!”. Se ao povo pertence, que ao povo tudo seja devolvido. 

Música 

Inicia-se o espetáculo com as belas texturas, escritas com muita competência por Felipe Senna. Mencionei Alban Berg pensando, claro, em Wozzeck e Lulu, sobretudo por essas texturas cênico-orquestrais, mas também pelos campos harmônicos que parecem transitar de densos aglomerados sonoros para algumas, menos numerosas mas muito marcantes, clareiras de memória tonal. É quando de repente o coro parece adentrar o território de Villa-Lobos – até chegar, será?, só de relance, em Tom Jobim… Villa-Lobos está certamente presente nos exercícios nacionalistas, por exemplo na releitura orquestral do ritmo de catira, realizada com energia pela Orquestra Sinfônica Municipal sob a condução do maestro Luís Gustavo Petri. São evocações a partir do que pude perceber, pois infelizmente não tive a oportunidade de analisar a partitura. 

Este jogo colorístico-harmônico entre sonoridades densas/fechadas e luminosas/abertas constitui o cerne do artesanato melodramático da obra (refiro-me à construção interseccional de música e drama). Parece que o compositor, com uma linguagem harmônica que nada deve à tonalidade, opta por aplicar essa oposição básica que é de certo modo herdada da oposição dominante/tônica, dissonância/consonância, o que é eficaz no tecido dramático do espetáculo. Embora, à medida que avance, sobretudo na primeira parte do Segundo ato, Senna busca um caminho mais tradicional, ao menos assim me pareceu, talvez acompanhando o modo como a cena se precipita na virada da distopia (Primeiro Ato) para a utopia (Segundo Ato), e que também corresponde a um avanço na direção de maior dramaticidade na própria fatura do espetáculo. 

O coral que conclui esta parte inicial é exemplar deste jogo melodramático, pelo modo como dá corpo ao belo texto do Mário. Produz-se como que uma conclusão suspensiva, “em dominante” (no sentido de sua função, descolada da sintaxe tonal), sobre a palavra “Vingança”. É quando produz-se também uma virada de uma longa cena estática para a precipitação dramática, articulada justamente por esta palavra. 

Drama e narrativa

Acontece que todo o Primeiro Ato é construído sobre uma situação carregada de conflito latente, porém que não chega a se realizar. A questão central está posta: a fome, o abandono, o desemprego, a falta de saída para os trabalhadores. Primeiro, no porto: os estivadores – e principalmente suas mulheres – manifestam a fome e o desamparo, cercados de sacas e mais sacas de café que, sem vazão, ficam amontoadas como os escombros da prosperidade que prometiam. Depois, no cafezal, a colheita interrompida para que os donos cheguem e digam que não pagarão os atrasados, e que os trabalhadores têm “novos donos”. Depois na Câmara-Balé – com o sarcasmo a virar do avesso os discursos non-sense dos políticos, e a tragicidade do belo solo da Mãe. Finalmente, a estação de trem “Progresso”, onde os trabalhadores se reúnem em busca frustrada de saída daquela cruel realidade. 

Todo este percurso se dá, como disse, de um modo não dramático, pois o que vemos é a exposição de um impasse, a situação de descalabro em que o conflito é latente e potencial. O tempo é estirado a partir dessa situação e o texto marioandradino parece situar-se no num registro francamente lírico, ainda que adjetivamente épico. Não há propriamente uma narrativa, pois a catástrofe já aconteceu e nenhuma saída se desenha – até que a vingança se abra como possibilidade.

Daí que o lindo momento da Mãe (no solo de Juçara Marçal) adquira uma centralidade imantadora do conjunto deste ato. A ária cantada por ela sintetiza toda essa condição, e corporifica em uma pessoa aquilo que não se transfere para o coletivo, que é o sofrimento – vivido em cada pele e cada alma, ainda que solidariamente compartilhado. A Mãe alegórica no proscênio não vai substituir sua classe, mas permitirá aproximação, identificação, compaixão. Essa síntese, densamente passional, enuncia, também, o conteúdo épico vivido coletivamente pela sua classe, e permite-lhe formular a semente da revolta revolucionária que virá depois: “Raça culpada, a vossa destruição está próxima!”. Esta enunciação se faz ao modo da profecia, precedido da fala “Eu sou aquela que disse”, que desdobra o discurso do ponto de vista da enunciação, deixando de lado a individualidade para dar lugar a uma temporalidade histórica. Mas a transformação da dor pessoal em dor coletiva já está presente desde o início de sua ária, cujo assunto passa do próprio filho aos muitos que vão constituindo esse sujeito coletivo [1]:

Depois que o grão apodreceu no galho
A miséria chegou com seus dias compridos
E as noites curtas por demais que a forme acorda.
Nunca mais o meu filho fugiu da horta
Amassando na boca as alfaces.

Os peitos das mães já secaram
Caíram as cercas das hortas
Vendeu-se a vaca, fugiu o sabiá dos pomares
E muitos homens jazem podres
Nos botequins de beira-estrada
Nos armazéns do cais vazio
Nas grunhas do conluio da noite.

Falai si há dor que se compare à minha!…

Nos caminhos da noite pressaga
Os infelizes vêm chegando, vêm chegando
Conduzidos pela estrela da cidade.
São todos os que abafaram o sonho, meninos
Todos os que só amaram no susto e no arrependimento
Os que se viram já velhos sem ter o que recordar.
São os famintos, são os rotos, são os escravos,
São os mil e um cativos da vida em procissão.
Falai!…

Falai si há dor que se compare à minha!…
(p.417-8)

No seio dessa estaticidade dramático-narrativa, em que nada exatamente acontece, o espetáculo apresenta uma variedade de situações. Há a inserção francamente popular na cena da colheita: a partir do ditado recolhido por Mário, “Laranja no café, tá azeda ou tem vespeira”, um grupo de percussão sobre o palco acompanha em ritmo de baião uma peça musical claramente inspirada num canto de trabalho, com a chamada pela cantora e a resposta em coro pelos demais trabalhadores. Essa peça é precedida por uma interessante construção musical nos graves, com forte marcação do pulso pela orquestra, que prepara, sem tirar a surpresa, o momento popular. 

Outros eventos que criam variações (ou diferentes visões) surgem na Câmara-Balé (denominação sarcástica que será sublinhada pelo Ator, vocalizando as didascálias do texto original do Mário). Um político fará um discurso non-sense e infantiloide (cheio de “xixis”, “cocôs” e “puns”) numa espécie de antiária cômica, e ouvimos um maravilhoso choro-canção com o tema da “Ferrugem nas panelas da cozinha”. Os versos do Mário são deliciosos, voltam-se sobre si mesmos ao modo da embolada criando um outro tipo de non-sense como uma pergunta recalcada que insiste em se colocar: afinal, como explicar esse mistério, que as panelas estão juntando ferrugem? E Senna compôs uma espécie de choro-canção de linguagem harmônica contemporânea, mas cujo desenho melódico evoca claramente a tradição popular (e me trouxe à memória a também irônica “Diamante verdadeiro” de Caetano Veloso). Copio aqui as duas primeiras estrofes, pra dar um gostinho:

Sobre a ferrugem
Das panelas de cozinha
Do país maior mistério
Diremos uma cousinha
O assunto é sério
Que as cozinheiras já rugem
Coléricas com a ferrugem
Das panelas de cozinha

Sobre a cozinha
Com ferrugem na panela
Tragédia gloriosa e bela
Desta pátria queridinha
Ouvide! embora
Nossas palavras que surgem
No tremendal da ferrugem
Das panelas de cozinha
(p.414-5)

A cena da Mãe, no entanto, é a que guarda a maior densidade dramático-narrativa. O uso do microfone, explicável por ser a solista uma cantora popular e não lírica, favorece o desequilíbrio do espetáculo em favor desta cena. É de se pensar se uma outra solução poderia de ter sido buscada, ou pelo menos um uso apenas de apoio da amplificação, pois é inevitável que o uso do microfone hierarquize os discursos em favor daqueles com maior potência sonora – inclusive conferindo-lhe maior pregnância na memória. 

Talvez por isso, Sérgio de Carvalho tenha sentido a necessidade de introduzir aí a mais ostensiva quebra da assim chamada ilusão cênica. Logo após a ária da Mãe, tudo se interrompe, há silêncio repentino, então o microfone da coordenadora de palco é aberto ao público, ela entra em cena, e expõe-se didaticamente um momento da labiríntica operação dos bastidores do palco de uma montagem cênica; retiram-se as estruturas que compõem a cenografia, além dos objetos e das próprias artistas que estão em cena, no caso, três dançarinas do Balé da Cidade de São Paulo. Essa quebra é certamente incomum no Municipal, embora a ilusão cênica e sua passionalidade permaneçam sempre num termo moderado.  

Mesmo o solo da Mãe, sedutor e inspirador de compaixão, não chega a ser inebriante – por belo e comovente que seja. Por quê?  

O coro, a recusa do delírio e o happening

Certamente, a recusa da passionalidade é desejada e se instaura como um nó no cerne do tecido multissemiótico do espetáculo. Trata-se fundamentalmente de uma ópera coral – algo enfatizado pelos seus criadores em seus textos no programa de concerto. Aqui, o coro não é, como paradigmaticamente na tragédia clássica, uma voz conservadora da pólis que vem contrapor o bom senso à hybris do herói. Nada disso, aqui o coro é o povo, o protagonista de um destino coletivo, primeiro catastrófico, depois, trágico. É o coro que cozinha em fogo brando a indignação e o ódio que levarão à revolta, mas ainda não chegou o momento em que ele “não tem mais a força de não se revoltar”. Esta representação do coro como massa, sempre presente em cena desse modo ostensivamente coletivo e estático, também confere um peso arquitetural à sua presença. Daí certa lembrança histórica das grandes cenas românticas, porém excluída a figura do herói. 

Essa concepção cobra seu preço, todo o início do espetáculo segue um passo pesado. Pois, na ópera, a compreensão do texto cantado é sempre problemática. Sem uma narrativa que transforme os personagens e seus cantos – em geral carregados (e até saturados) de conteúdo afetivo – é difícil transformar a grandiloquência da cena – da qual Café não abdica – em um discurso eloquente. Creio que a montagem parte, em alguma medida, de uma certa recusa de diversas dimensões do que tradicionalmente é conhecido como operístico, que vai como regra recorrer a redundâncias, repetições, esquematizações, literalidade do gesto, entre outros recursos – e que tem na fábula, aristotelicamente, colada com a música, um de seus principais instrumentos de conquista do público.

Se a ação cênica do Primeiro Ato talvez possa ser resumida em dois enunciados – “Eu tenho fome!” e “Vingança!” – é a palavra “Vingança” que catalisa a dramaticidade do espetáculo. O Segundo Ato vai dar lugar a essa revolta sonhada por Mário, que oniricamente figura-se como uma revolução plenamente vitoriosa. No texto, as cenas se precipitam, num delírio trágico dionisíaco, que vai deformar as máscaras na embriaguez da vitória revolucionária. O texto de Café é, neste momento quase expressionista. A cena se precipita como uma espécie de delírio, até atingir o ápice.

E vem, mas até parece outra, no delírio da vitória, vem a Mãe no seu vestido vermelho estraçalhado, um seio todo à mostra, o lenço verde da cabeça caindo num dos ombros, vem completamente louca, delirando, com uma enorme bandeira vermelha e branca nas mãos. Avança, corre, seguida de muitas mulheres tão selvagens como ela, tão assanhadas, tão doidas, manchadas de sangue, rasgadas, muitos revoltosos as seguem cercando o grupo feroz. Ferozes, ferozes, todos rindo em esgares horríveis, caras numa exaltação primária, são monstros admiráveis, irracionais, faz medo olhar. Todas as janelas do fundo estão abertas, iluminadas, com gente incitando os vitoriosos. Os incêndios tomaram tanto a cidade que tudo está claro agora, violentamente clareado numa luz vermelha. (p.398)

Esse crescente em direção à loucura, que toma tanto os personagens quanto a própria cidade na forma do incêndio, no entanto foi levado ao palco de outro modo, mais esquemático e sóbrio, ainda que numa fragmentação e velocidade alucinantes. Os personagens estão “bêbedos de revolução”, gritam que “é guerra, é guerra”, a desejá-la tanto quanto a vitória. Outra passagem particularmente dionisíaca, quando as mulheres, ao modo de bacantes, vão “devorar” um soldado governista: 

O portão foi de novo sacudido com ansiedade. E o soldado fugitivo surgiu no alto do muro, trepado. Ao ver o grupo das mulheres, agora decididas, erectas, enérgicas, hesita. Mas sempre a um fugitivo governista um grupo de mulheres soará menos perigoso que gente bêbeda de revolução, o soldado pula no pátio. Mas logo atrás dele um revolucionário, um estudante apenas, seu blusão de esporte, tem dezenove anos, vem perseguindo o covarde, apenas com um pau na mão. Pula no pátio. Um clarão fortíssimo de um segundo ilumina toda a cena. Foi uma granada que arrebentou bem perto, mas que a música, por elevação de arte, desdenhará fazer soar. E o covarde atemorizado com a criança que lhe vai bater de pau, como ele apenas merece, atira a carabina ao longe e se joga de joelhos aos pés das mulheres pedindo a vida. Elas caem sobre ele e o estraçalharão sem piedade, sanhudas. 
(p.395-6)

Há uma ruptura mais radical, apenas, na segunda metade do Segundo Ato. A partir daí, a cena toda ganha outra eficácia: transforma-se em algo como um happening, deflagrado com a entrada em cena do Rapsodo na figura de um entregador de app, vivido em cena pelo poeta Negro Léo. Ele chega de moto ao palco, toma o microfone e enuncia um texto, em paralelo com a fala-canto da Mãe-Juçara, e de uma reconfiguração total do teatro. Do fundo e da lateral, entram músicos-ativistas com suas foices e enxadas, camisas, bandeiras e bonés do MST, marcando o ritmo da marcha no chão e nos cabos das ferramentas. 

Certamente, a grandiosidade épica do MST é o emblema vivo dessa revolução vitoriosa de trabalhadores que já não têm mais a capacidade de não se revoltar. Que não conciliam, que tomam a terra e a fazem viva. É justíssima a sua presença em cena, em marcha alegórica a tomar o teatro por todos os lados, até encher o palco com suas bandeiras. 

Fico a perguntar se essa ruptura não poderia ter sido preparada ou antecipada, se a ópera não poderia ter tomado conta dos espaços da sala, se cada elemento não poderia ter sido transformado livremente. Por que manter essa relação palco plateia quase intacta durante tanto tempo? A legítima violência revolucionária, que talvez seja o grande tema do “Dia Novo” do Mário, certamente poderia ter sido aquecida por dentro desde o início. Seria possível explorar as micronarrativas presentes no texto do Mário, que faz dos personagens coletivos, mais do que massas, algo como enxames. As situações se sucedem, e o foco dança sobre elas, resolvendo-se numa multiplicidade dinâmica. Mas aí são especulações minhas.

Uma última palavra sobre o público 

Assim que passou o momento happening, o público começou a gritar o ansiado (e previsível, mas nem por isso menos prazeroso) “Fora Bolsonaro”. Parecia o fim do espetáculo e de algum modo era. Mas havia ainda o encerramento, retomando o coro do início para fechar com a sua enunciação final. Aí gritamos muito “Fora Bolsonaro” e, como não poderia deixar de ser, a saída conciliadora e indispensável para nós, hoje: um coro de “Lula lá”, a lembrar que estávamos entre nós. Certamente o texto do Mário e a montagem são bem mais radicais do que a Frente ampla de Lula, mas ali era o momento de marcar território.

Ficava claro que, sendo os seus criadores quem são, Café levou à plateia do Municipal muita gente que provavelmente não são públicos habituais de ópera. Saindo do teatro, vejo um casal, uma senhora e seu marido, provavelmente se sentindo como penetras numa festança que acontecia em sua própria casa, mostrando que o Municipal ainda reúne seus bourgeois para serem devidamente épatés. Pareciam fugir antes que os convivas resolvessem mudar de fase no jogo modernista e devorar suas asinhas e coxas-creme ali mesmo. 
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[1] Todas as citações de: Mário de ANDRADE, Poesias Completas, São Paulo, Círculo do Livro, 1976.

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