Na Funai, a luta para conseguir trabalhar

Cortes de gastos e aumento de burocracia impedem trabalho de servidores — que chegam a pegar carona de caminhão para conseguir entregar cesta básica a indígenas. Leia também: falhas na atenção básica aumentam amputação por diabetes

Foto: Arquivo Funai
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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ESTICANDO AS DISTÂNCIAS

“As entregas de cestas [básicas] só foram realizadas porque peguei carona com um caminhão que estava indo para a aldeia prestar outro serviço. Não pude usar a viatura oficial nem comunicar oficialmente o deslocamento”. O depoimento de um servidor da Funai à Agência Pública ilustra a dificuldade que tem sido trabalhar no órgão desde que, em outubro, o governo determinou que todas as viagens devem ser autorizadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública ou pelo presidente da fundação. E os deslocamentos precisam ser solicitadas com 20 dias de antecedência. “Estou dando margem para que invasores entrem em terras indígenas porque tenho que obedecer a um fluxo de 20 dias. Mesmo que eu alegue que é uma urgência, vai ser muito mais difícil que a presidência analise meu processo”, prevê outra servidora, do Amazonas.

De acordo com vários funcionários ouvidos pela reportagem, a burocracia e a lentidão do novo processo já começaram a atrapalhar o fluxo, principalmente nas Coordenações Técnicas Locais e nas Frentes de Proteção Etnoambiental, que atuam diretamente com as comunidades indígenas. Assim, elas demoram mais para receber o atendimento de que precisam, e alguns servidores acabam viajando mesmo sem autorização, para não interromper suas rotinas – como o que abre esta nota. Os entrevistados acreditam que, mais do que conter gastos, as novas regras buscam controlar o trabalho realizado nas comunidades. “Sinto que há uma postura de desconfiança em relação a certos órgãos – Funai, Incra, Ibama –, com quem trabalha com meio ambiente ou com pessoas em situação de vulnerabilidade e que clamam pela diferença. A gente vê que há o interesse de controle e até de desqualificação do órgão dentro do próprio governo. (…) É desmotivador, você se pergunta ‘por que estou me desgastando?’. Estamos ficando loucos para fazer o que a instituição em si parece não estar interessada. Parece que é quase interesse pessoal seu que as coisas aconteçam na Funai”, diz uma servidora do Centro-Oeste.

UMA COISA LEVA À OUTRA

Um dos sinais de que a atenção básica vai mal é a quantidade de amputações entre pacientes diabéticos. Isso porque o excesso de açúcar no sangue provoca complicações como a perda da sensibilidade, que atinge 25% dos pacientes; doença arterial, que prejudica a circulação sanguínea de 30% deles; e, finalmente, a infecção, que se agrava sem atendimento – e tudo isso poderia ser monitorado e tratado de modo a evitar ao máximo a perda de membros. Mas os números no Brasil revelam um quadro bem ruim: o país registrou 30,4 mil amputações em 2018, uma média de sete internações com esse propósito a cada 100 mil habitantes, com uma taxa de mortalidade de 13%. Os estados onde o problema é mais grave são Sergipe (onde a taxa de internação chega a 23,59), Alagoas (22,52) e Rio Grande do Norte (18,26), seguido de perto pelo Rio de Janeiro (18,05). 

A reportagem feita por O Globo foca nos números fluminenses, que vêm piorando. Em 2018, a cada três horas, uma pessoa foi internada no estado para amputar dedos, pé ou perna por conta do comprometimento gerado pela doença. E no primeiro semestre de 2019, o intervalo diminui ainda mais para duas horas e 40 minutos. Segundo Carlos Eduardo Virgini, chefe do serviço de cirurgia vascular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a piora está ligada ao encolhimento da cobertura da atenção básica — de 67%, em 2017, para 52,8% atualmente, segundo o Ministério da Saúde. No fim do ano passado, a prefeitura reduziu o número de equipes de saúde da família de 1.283 para 967 e, hoje, 139 estão incompletas. “A atenção primária é a primeira barreira para evitar complicações. Com educação das equipes de saúde e das famílias, conseguiríamos evitar 85% das amputações”, disse ele ao jornal.

QUEM VAI SER CORTADO?

Medida do pacotaço de Paulo Guedes, o corte da carga horária e dos vencimentos dos servidores públicos em 25% por até dois anos, se aprovado, será mais uma arena de disputa entre os próprios trabalhadores. Isso porque caberá a governadores, prefeitos e chefes dos Poderes decidir quem será afetado. Quem declarar emergência fiscal precisará editar um decreto especificando que órgãos serão afetados e por quanto tempo. Será possível, de acordo com O Globo, reduzir jornadas e salários só do pessoal administrativo, preservando quem trabalha em áreas consideradas essenciais, como policiais militares e professores. Mas também pode acontecer de quem está com a caneta na mão ceder a pressões das categorias mais organizadas.

Em alguns lugares, porém, não há para onde fugir. “Tem municípios em que 80% dos servidores estão na saúde e na educação. Quem presta esses serviços são professores, enfermeiros, médicos e merendeiras que terão o salário congelado sem reajuste durante dois de cada quatro anos de cada prefeito”, previu o especialista em financiamento da educação Luiz Araújo, em entrevista ao Portal da Escola Politécnica da Fiocruz.

A medida é inspirada no shutdown, que acontece nos Estados Unidos quando o governo não tem autorização do Congresso para executar o orçamento. Lá, a própria lei estabeleceu prioridades, e os primeiros atingidos são trabalhadores dos parques públicos e museus. O shutdown aconteceu pela última vez esse ano, depois que o governo incluiu no orçamento a construção do muro na fronteira com o México – e foi barrado pela maioria democrata na Câmara. “O shutdown tem sido um problema recorrente desde a administração Obama, porque a lei que o permite tem sido utilizada de forma política pelos partidos, e foi usada assim pelo Trump. Isso significa que, de tempos em tempos, a depender de como estejam as brigas políticas no Congresso, gera-se uma situação de instabilidade imensa. Isso transplantado para a realidade brasileira, dependendo das brigas políticas, poderia gerar situação de shutdown o tempo todo”, analisou a economista Monica de Bolle em entrevista a O Globo.

EFEITOS QUE AUMENTAM

Um estudo sueco publicado no American Journal of Psychiatry sugere que pessoas transexuais submetidas a cirurgias de adequação de sexo têm efeitos benéficos sobre sua saúde mental – e que eles aumentam com o passar dos anos. Os pesquisadores afirmam que, no geral, pessoas trans são seis vezes mais propensas do que o resto da população a procurar atendimento médico por transtornos de humor e ansiedade; têm três vezes mais chances de receber antidepressivos prescritos; e seis vezes mais chances de ser hospitalizadas após tentativas de suicídio. Mas, entre as que passaram por cirurgias, todas essas probabilidades diminuíram. E seguiram diminuindo ao longo de um período de dez anos: “a probabilidade de ser tratado por um transtorno de humor ou ansiedade foi reduzida em 8% a cada ano desde a última cirurgia”.

AGORA, RECOMENDADOS

O NICE – órgão do Departamento de Saúde do Reino Unido que, entre outras coisas, publica diretrizes sobre uso de novas drogas no sistema público de saúde britânico – recomendou pela primeira vez dois medicamentos à base de Cannabis: o Epidyolex, para dois tipos raros de epilepsia, e o spray Sativex, para espasmos musculares associados à esclerose múltipla. Este último é registrado no Brasil com o nome Mevatyl. Os medicamentos foram aprovados para uso no ano passado, mas até agora poucos médicos os prescrevem. Para a nova orientação, o NICE analisou o uso de produtos para várias doenças e condições, mas constatou que faltam evidências para o uso de derivados da Cannabis no tratamento da dor crônica. De modo que ativistas de associações de pacientes até celebraram a recomendação, mas criticaram esse aspecto.

Enquanto isso, por aqui o juiz Fabrício José Pinto Dias concedeu liminar que permite que uma mulher em Ubatuba (SP) cultive maconha em casa para produzir óleo usado no tratamento da filha, que tem até 20 convulsões violentas por dia. O medicamento à base de canabidiol receitado pelo médico que acompanha a jovem é produzido nos EUA e custa até R$ 5 mil, valor fora do poder aquisitivo da família. “A potencialidade profilática da substância é conhecida mundialmente e existem diversos relatos que seu uso devolveu qualidade de vida aos pacientes. Nessa irresistível vereda, o direito à saúde e à vida humana devem prevalecer, porque são valores soberanos e inegociáveis, dignos de uma sociedade que acima de tudo busca a humanidade como centro de todas as questões jurídicas e políticas”, escreveu o juiz na sentença.

MAIS UM SUSPEITO

Não terminou a novela sobre a doença pulmonar que está afetando e matando gente nos EUA com o uso de cigarros eletrônicos. Agora, as autoridades de saúde identificaram mais um possível culpado: o acetato de vitamina E, usado como aditivo ou espessante em alguns fluidos vaporizados. Ele apareceu em todas as amostras de fluido pulmonar de 29 pacientes com problemas ligados aos cigarros eletrônicos. A substância é frequentemente usada em suplementos e cremes para a pele e, embora não pareça causar danos quando ingerida ou usada topicamente, pesquisas sugerem que sua inalação pode prejudicar os pulmões.

O Centro de Controle de Doenças dos EUA afirma que a descoberta ainda precisa ser confirmada por mais pesquisas e que ainda é cedo para descartar outros suspeitos. Substâncias como o THC e a nicotina também foram achados em amostras e continuam sob investigação. Até o momento, houve 2.051 casos confirmados e prováveis ​​da doença e 40 mortes ligadas ao surto.

NÃO TÃO FÁCIL

Na sexta-feira, Margrethe Vestager, chefe do órgão de regulação antitruste da União Europeia, expressou preocupação em relação à compra da Fitbit pela Google. Em entrevista num evento de internet, ela revelou que concorrentes da empresa ligaram aos órgãos europeus de controle pedindo um tratamento mais rígido do que o que a Google está recebendo nos EUA. Isso porque a montanha de dados de saúde acumulada pela Fitbit pode desbalancear a competição. “A aquisição de empresas para absorver dados em uma só companhia é uma preocupação urgente para os reguladores”, disse Vestager que, nos últimos dois anos, multou em 8 bilhões de euros empresas de tecnologia com práticas anticoncorrenciais.

VERTICALIZAÇÃO

Fundadores da Amil – vendida à UnitedHealth – os Bueno anunciaram na sexta-feira a fusão de duas empresas controladas pela família. A rede de laboratórios Dasa e a rede de hospitais Ímpar devem se unir numa tentativa de atrair planos de saúde, num modelo em que as empresa pagam os prestadores de serviços por pacotes, de acordo com os resultados. No ano passado, o faturamento combinado das empresas foi de R$ 7,1 bilhões e o valor de ambas é estimado em R$ 29 bi. “Nosso objetivo não é ter um tamanho maior para ganhar poder de barganha”, disse Pedro Bueno, que será presidente da holding, em entrevista ao Valor, completando: “Queremos trazer para o mercado mais soluções com foco no desfecho clínico.” 

DESINFORMAÇÃO

Pesquisa de opinião encomendada ao Ibope pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBI) e pela Avaaz entrevistou 2.002 pessoas em todo o país. E sete em cada dez brasileiros ouvidos afirmaram que já acreditaram em pelo menos uma notícia falsa sobre vacinas. O levantamento aponta ainda que 57% dos que não se vacinaram citaram um motivo relacionado à desinformação. E 48% falaram que têm as redes sociais e os aplicativos como uma das principais fontes de informação sobre imunizações. Para Isabella Ballalai, vice-presidente da SBI, apesar de o movimento antivacinas ser pequeno no Brasil, há uma hesitação mais generalizada provocada por falta de informação ou informações erradas que circulam nas redes e levam as pessoas a deixarem de se vacinar.

AGENDA

Hoje, na Fiocruz Brasília, acontece a VII Jornada de Economia da Saúde, com o tema “Políticas de austeridade e seus efeitos na seguridade, estratégias para o fortalecimento do SUS”. O evento é promovido pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).

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