O constrangedor depoimento de Mayra Pinheiro

“Capitã Cloroquina” mostra que fez de tudo no Ministério, menos o que seria sua obrigação

Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado
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depoimento de Mayra Pinheiro à CPI da Pandemia, ontem, girou em torno daquilo que já deveria ser um tema vencido: o uso de hidroxicloroquina contra a covid-19. A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde da pasta foi apontada pelo general Eduardo Pazuello como responsável por sugerir e alavancar o desenvolvimento da plataforma TrateCov, que indicava a prescrição do kit covid até para cães. Esse foi, portanto, um dos pontos de maior discussão. Questionada sobre seu papel nisso, a “Capitã Cloroquina” respondeu que “quem criou a plataforma foram os técnicos da minha secretaria”. Não se perguntou quem aprovou o lançamento.

Ela foi mais longe do que Pazuello ao explicar o caso do “hacker”, e acusou nominalmente o jornalista Rodrigo Menegat de ter “extraído indevidamente” dados da plataforma. Segundo Mayra, ele na verdade “não conseguiu hackear porque o sistema é seguro”, mas fez “simulações completamente indevidas, fora de contexto epidemiológico”. A acusação é uma besteira sem tamanho. O aplicativo ficou disponível no site do Ministério entre os dias 11 e 21 de janeiro, como lembra a ótima checagem do Aos Fatos. Várias pessoas, jornalistas ou não, fizeram simulações jogando na plataforma sintomas diversos e recebendo sempre o mesmo resultado. 

No dia 19, Menegat relatou no Twitter que tinha inspecionado os elementos da plataforma e, analisando sua estrutura, explicou por que o kit covid sempre aparecia no final. Mas isso não é extração indevida de dados, uma vez que a inspeção de elementos está disponível a qualquer pessoa, em praticamente qualquer site, em qualquer navegador de internet. O jornalista pegou essa informação, que era pública, e a arquivou em uma outra plataforma, onde está até hoje.  

O fato é que ela reconheceu não ter havido nenhuma alteração no conteúdo do aplicativo, como havia alegado Pazuello. Ou seja: o TrateCov sempre foi, como o nome indica, um aplicativo destinado a sugerir a prescrição de tratamentos para a covid-19. Tratamentos que não têm eficácia comprovada. E dinheiro público foi usado nisso. “É muito claro que a senhora acredita no que fala, mas só acreditar não transforma isso em verdade. Então eu lamento muito que a política pública de saúde brasileira seja conduzida desta forma”, disse o senador Alessandro Vieira  (Cidadania-SE), numa triste constatação.

Em tempo: sobre sua ida a Manaus – onde o TrateCov foi lançado e o tratamento precoce foi amplamente divulgado –, ela desmetiu Pazuello em relação à crise do oxigênio. De acordo com Mayra, a empresa White Martins, que fornece o insumo, comunicou o problema no dia 8 (e não no dia 10, como diz o ex-ministro).

Recomendar, jamais

Na tentativa de eximir o governo federal de sua responsabilidade na indicação irrestrita do kit covid, Mayra recorreu a uma questão semântica: argumentou que o Ministério nunca “recomendou” o uso desses medicamentos, apenas “orientou”. Vale lembrar que Jair Bolsonaro chegou a prometer um protocolo oficial: “Amanhã cedo, o ministro da Saúde vai assinar o novo protocolo da cloroquina. (…) Esse novo protocolo é a partir dos primeiros sintomas”, disse, em maio de 2020. A questão é que foi impossível publicar um protocolo de fato, pois para isso o documento teria que passar por um rito próprio, e um dos pilares seria a  comprovação científica da eficácia das drogas. Um documento de “orientação” foi a solução encontrada pelo governo na época. Mas a verdade é que o próprio Ministério fala em “recomendação” em seus canais oficiais.

Segundo Mayra, o objetivo não era recomendar que as drogas fossem usadas, mas sim informar as dosagens seguras, uma vez que a população já estava procurando o falso tratamento por conta própria. É claro que, em locais onde não se faz propaganda massiva desse uso, ele não é feito… Ao mesmo tempo, porém, ela admitiu ter dito que era “inadmissível” não “tratamento precoce” durante a crise em Manaus. 

A discussão científica sobre a hidroxicloroquina, durante a sessão, foi uma perda de tempo. Mayra continuou citando pesquisas mal feitas e os senadores em geral não estavam preparados para se opor da melhor maneira, à exceção de algumas intervenções, como a do senador Otto Allencar (PSD-BA). Rogério Carvalho (PT-SE), por exemplo, a confrontou com um estudo publicado no periódico The Lancet que mostrou aumento da mortalidade de pacientes internados que tomaram cloroquina.

Foi uma péssima escolha, pois essa pesquisa teve vários problemas e foi até retratada pelo Lancet. Mayra achou espaço para argumentar que a OMS desistiu de continuar pesquisando o efeito dessa droga por conta de tal “estudo fraudulento”, o que teria sido um erro da Organização. Não é verdade: na época, a OMS suspendeu os estudos por precaução, mas voltou logo em seguida. A interrupção definitiva se deu, tempos depois, porque a revisão de todas as evidências apontava para a ausência de benefícios. 

Imunidade de rebanho

A discussão foi mais produtiva quando focou outros aspectos. O relator Rena Calheiros apresentou um vídeo em que Mayra Pinheiro claramente defende a imunidade de rebanho por meio da contaminação: “O que nós criamos, mantendo todas as pessoas em casa naquelas cidades, que até por medidas coercitivas agiram como legisladores em estado de exceção, foi causar mais pânico na sociedade, e nós atrapalhamos a evolução natural da doença naquelas pessoas que seriam assintomáticas, como as crianças, e que a gente teria um efeito rebanho”, dizia ela.

Mayra se defendeu afirmando que sua colocação só valia para as crianças, o que não faz muito sentido, já que, mesmo que esse tipo de defesa fosse ética, seria preciso considerar que crianças não são numericamente suficientes para conferir “efeito rebanho” à população. A secretária deu a entender que não mudou de ideia: segundo ela, a tese da imunidade de rebanho “não pode ser aplicada indistintamente”, mas, “em pequenos grupos populacionais, isso pode ser usado”. Seria interessante ouvi-la explicar com mais detalhes em que grupos, afinal, considera seu uso razoável. 

Além disso, ela declarou que “no contexto atual, nós sabemos que a doença confere uma imunidade mais eficaz do que a vacina que nós estamos utilizando”. Bem similar ao que diz Jair Bolsonaro, quando ele afirma que teve “a melhor vacina, o vírus”. Mayra também reconheceu que não se lembra de ter visto o presidente incentivar em algum momento o isolamento social.

Secretária de quê?

Cloroquina, aplicativo para tratamento precoce,  efeito rebanho… Nada disso está relacionado ao papel que, teoricamente, Mayra Pinheiro exerce no Ministério: o de comandar a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, responsável por pensar a formação e qualificação dos trabalhadores. 

O relator Renan Calheiros (MDB-AL) mencionou que, segundo a Fundação Getúlio Vargas, 72,6% dos profissionais de saúde não receberam treinamento relacionado à covid-19 até março deste ano; e que uma pesquisa da Fiocruz e outras instituições mostrou que apenas 34% dos profissionais da atenção primária havia recebido treinamentos sobre covid-19 e sobre o uso correto dos equipamentos de proteção individual. Mayra disse que foi oferecido treinamento, mas “ninguém pode obrigar um profissional de saúde a fazer a formação”.

O senador Humberto Costa (PT-PE) foi além, e pediu que ela detalhasse quantos treinamentos foram realizados. Segundo Mayra, foram 14 cursos de manejo clínico na atenção especializada, 21 ações de orientação para população,15 cursos para médicos intensivistas e 16 cursos de orientação para cuidado à saúde mental.

“Esses cursos que a senhora fez não fazem nem cócegas na necessidade que nós temos dos profissionais da área da saúde. Os países pobres que conseguiram controlar a pandemia utilizaram a atenção básica como uma área fundamental. O agente de saúde, que vai lá, que faz o teste, que isola as pessoas, que dá orientação… No Brasil, atenção básica no Brasil ficou naquela de ‘fica em casa’. Agente comunitário de saúde no Brasil não foi treinado para trabalhar na pandemia. Os agentes comunitários de saúde no Brasil não receberam suporte desse governo para poder ir, de comunidade em comunidade, fazendo o esclarecimento de como se faria a prevenção. Essa é a realidade do que aconteceu no Brasil. E, no Brasil, nós temos médicos, agentes comunitários, enfermeiros nos mais de 5,5 mil municípios. O que era da sua alçada, infelizmente a senhora não fez; o que não era, a senhora estudou, a senhora chefiou um grupo de médicos para ir para Manaus”, retrucou ele.

O senador também foi muito feliz em fazê-la reconhecer que não tem a menor ideia de quantos profissionais de saúde morreram de covid-19 no Brasil. “Na última atualização, foram mais de 300 profissionais. Eu não tenho o número exato de hoje”, afirmou ela, quando perguntada sobre isso.

Era um número completamente fora da realidade: “Até março de 2021, morreram 1.292, sendo 622 médicos 200 enfermeiros e 470 auxiliares técnicos de enfermagem. Até a metade de março deste ano, no site do CFM, já estão registrados 810 óbitos médicos, quer dizer, são 150 a mais, e, no Cofen, 783 [profissionais de enfermagem]. A soma dessas categorias dá 1.593. Só de técnicos de radiologia, morreram 76; e agentes comunitários de saúde morreram mais de 200”, enumerou ele, perguntando em seguida: “E aí eu queria saber: a senhora fez alguma análise comparativa desses números com o resto do mundo, as mortes em outros países?”. A resposta foi não. 

O objeto inflável

O que mais ganhou fama nas redes sociais foi o áudio, resgatado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em que Mayra Pinheiro fala mal da Fiocruz. A história é antiga, e foi rrevelada pela revista Piauí no ano passado, quando Mayra e outros bolsonaristas tentavam intervir nas eleições para a presidência da instituição. Mayra reconheceu ser sua a voz em um áudio denunciando que, na Fiocruz, “todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara, as salas têm figurinhas do Lula Livre, Marielle vive” e, o principal, há “um pênis na porta da Fiocruz”.

Em seu depoimento, ela disse que a Fiocruz tem contribuído “agora, no momento que nós vivemos”, para a vacina, mas que na época isso (Che, pênis, Lula) “era uma constatação”. Por aqui, ficamos nos perguntando o que poderia ser o “objeto inflável” reafirmado pela secretária na Comissão. Uma estratégia de campanha sobre câncer de pênis, talvez? Uma internauta parece ter matado a charada (a confirmar):  prevenção ao HIV. 

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