Por que o grande estudo sobre cloroquina está sendo contestado

Cientistas pedem explicações sobre uso banco de dados de empresa desconhecida. Em nota, Lancet e NEJM expressaram preocupação

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Quando o maior trabalho já realizado sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina foi publicado no mês passado, o impacto foi gigantesco, ainda mais por conta do caráter político que esses medicamentos ganharam. A imprensa repercutiu imediatamente a conclusão de que os pacientes tinham mais riscos de morrer usando esses remédios, e no Outra Saúde também demos destaque ao tema. Havia ressalvas, como contamos por aqui. A questão mais relevante, reconhecida pelos autores à época, era o fato de se tratar de um estudo observacional (a partir da realidade observada nos hospitais, com os remédios que estavam sendo oferecidos a pacientes) e não um ensaio clínico randomizado, conforme dita o ‘padrão ouro’ da ciência.

Mesmo assim, o volume enorme de pacientes analisados tornava os resultados muito relevantes. A publicação na prestigiosa revista The Lancet, com revisão de pares, conferia credibilidade. E os riscos encontrados para o uso desses medicamentos eram tão preocupantes que vários ensaios randomizados em curso foram interrompidos. Por precaução, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a suspensão temporária da hidroxicloroquina de seu ensaio clínico internacional.

Acontece que, aparentemente, a falta do ‘padrão ouro’ não era o único problema do estudo, e ontem duas prestigiosas revistas científicas expressaram preocupação a esse respeito. Como dissemos aqui, na quinta-feira passada, um grupo de mais de cem cientistas cobrou explicações dos autores e do Lancet, citando inconsistências. É importante notar que muitos deles tiveram suas pesquisas com cloroquina e hidroxicloroquina interrompidas, o que poderia ser um viés motivando a reclamação. Mas os problemas apontados de fato fazem vista, especialmente as diferenças encontradas entre o número de casos registrados por alguns países e o número de pacientes observados no trabalho em questão.

Ontem, esse conjunto de cientistas publicou nova carta voltando suas críticas a outro trabalho publicado semanas antes no New England Journal of Medicine. Escrito pelos mesmos autores, essa outra pesquisa tratava da análise de dados de nove mil pacientes hospitalizados até março em três continentes. Concluía que doenças cardiovasculares aumentam o risco de morrer, mas que pacientes que tomam medicamentos chamados inibidores da ECA têm maiores chances de sobreviver (contrariando uma suspeita de outros pesquisadores).

As informações usadas nos dois trabalhos vêm de um banco de dados privados administrado pela Surgisphere, uma pequena empresa desconhecida entre especialistas e que pertence a um dos autores. Mas ninguém conseguiu ter acesso a esses dados.

Ainda ontem, editores do New England Journal of Medicine publicaram uma “expressão de preocupação“, afirmando que pediram aos autores evidências de que os dados são confiáveis. No fim do dia, o Lancet fez o mesmo, e informou que seus editores encomendaram uma auditoria independente dos dados. O co-autor dos trabalhos e proprietário da Surgisphere, Sapan Desa, disse que concorda com a auditoria e vai permitir aos editores do NEJM o acesso aos dados completos.

Existe ainda um terceiro estudo usando dados da Surgisphere de vários países que já levanta suspeitas. Esse ainda é uma pré-publicação (não passou por revisão de pares) e conclui que o vermífugo ivermectina reduz drasticamente a mortalidade em pacientes com covid-19, mas, como nos trabalhos anteriores, há o mesmo tipo de inconsistência em relação ao número de pacientes observados. Mesmo que ainda não tenha sido publicado em um periódico científico, o artigo teve forte repercussão. Governos de países como Peru e Bolívia já incluíram o medicamento em seus protocolos, e pacientes brasileiros também recebem prescrição.

O caso todo põe em foco a corrida por publicações, que é mais verdade do que nunca nessa pandemia. “Os periódicos médicos geralmente sentem pressão para ser relevantes e publicar aquilo que vai ser discutido. Acho que precisam responder à urgência dessa pandemia, mas também para manter seus padrões, o que exige cautela“, comenta David Glidden, professor de bioestatística da Universidade da Califórnia, no New York Times.

Em tempo: nada disso muda o fato de que a orientação brasileira no sentido de estimular o uso precoce de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes, fora de ensaios clínicos, é absurda. Continua não havendo nenhuma evidência científica que suporte essa ideia.

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