De bicicleta, na rota brasileira da cachaça de alambique

Plano de uma viagem em curso: partir do pé da Mantiqueira, no estado do Rio e subir Minas adentro, visitando os lugares onde se produzem algumas das melhores cachaças do país

Barris de carvalho da Reserva do Nosco, em Engenheiro Passos (RJ), primeiro alambique a ser visitado.

Por Maurício Ayer

Confesso, sou um procrastinador de meus próprios projetos; mas nunca dos compromissos que assumo com os outros, seja de trabalho, diversão, um favor… Acontece que eu tinha um desejo do qual não queria abrir mão: viajar a Estrada Real de bicicleta, visitando os alambiques de cachaça. Para ser mais esperto do que eu mesmo e driblar minha capacidade de autoboicote, pus em prática um plano: comecei a anunciar o projeto para amigos e amigas, para os parentes e alguns conhecidos; assim, se não o realizasse, o assunto já não era só meu, eu teria que me haver com todos eles, amargar a vergonha, inventar desculpas convincentes – seria bem mais fácil fazer a viagem. Pois deu certo, consegui me enganar direitinho, e aqui estou eu, na estrada.

Cachaciclismo e sua ética

Mas cachaça com bicicleta? Isso não combina! É invariavelmente a reação que encontro. Calma, gente, ninguém está falando em encher a cara de cachaça e depois cambalear na bicicleta em qualquer beira de estrada. Quando alguém diz que vai fazer determinada “rota do vinho” e vai de carro, não vejo ninguém se desesperar e achar que as pessoas vão misturar as duas coisas. No máximo dar um cheiro na visita e guardar a garrafa pra degustar mais tarde.

Visitar o alambique, como visitar a vinícola, é ir à fonte conhecer como aquele precioso líquido se formou, quem fez, em que lugar, com que cuidados. É a cultura que envolve a bebida e que, uma vez apreendida, passa a fazer parte da cor, do aroma, do sabor. Quando tomo uma cachaça que eu “vi sair do alambique”, são outros afetos que se movem, é outra a profundidade da apreciação. É isso que estou buscando. Portanto, partamos desse pressuposto: ninguém vai encher a cara, é para degustar, apreciar, aprender, conhecer.

O que parece não encaixar no mau prognóstico da viagem cachaciclística é que ainda não nos acostumamos a distinguir a cachaça da bebedeira. O fato é conhecido: as cachaças vagabundas (Corote, Barrigudinha e outros venenos produzidos em escala industrial) são extremamente baratas e, por isso, são elas que você vai encontrar nos braços de um bêbado em situação de rua. A cena é a síntese de uma tragédia pessoal – ou social, quando ganha escala nas calçadas das grandes cidades. Do fato, no entanto, decorrem os preconceitos. Se o indivíduo enche a cara de cerveja de milho ou de uísque com energético e enfia o carro no poste, não faltará quem vaticine: “olha o cachaceiro!”. Também é a coisa mais comum encontrar gente que toma um uísque que na Escócia seria considerado “lixo para exportação” e torce o nariz para uma cachaça artesanal de altíssimo padrão de qualidade. Mesmo quando não nos enquadramos plenamente nesses perfis, é difícil aceitar o cachacicloturismo, ou simplesmente cachaciclismo, como uma possibilidade das boas.

Mountain bike na estrada

Aí vem a parte da bicicleta. Alambiques, quase todos eles, ficam em áreas rurais, próximas dos canaviais e onde se consegue uma dinâmica interessante com outras atividades de uma fazenda (por exemplo, usar o bagaço da cana e o vinhoto, que é o líquido que sobra no alambique após a destilação, para adubar a terra ou alimentar o gado). Portanto, cachaciclismo diz respeito a cicloturismo rural, em áreas perfeitas para o mountain bike, onde vou conhecer os produtores de cachaças que eu já admiro ou que vou começar a admirar (ou o contrário também, a decepção ao se conhecer a cachaça na fonte não está descartada).

Em resumo, quando falo em cachaça, falo da apreciação responsável e bem informada de um produto de tradição multicentenária, profundamente integrado na história e na cultura brasileiras, com interessantíssimas peculiaridades regionais e locais. Quando falo em cicloturismo, nesse caso, estou pensando em uma prática de esporte e turismo que exige preparação e conhecimento técnico, condicionamento físico e equipamentos adequados, mas sobretudo falo de adentrar paisagens rurais e urbanas de grande beleza, com uma riqueza cultural e vivencial à espera de ser degustada. Passo por serras e vales, cidades históricas, construções do século 18, 19 e início do 20, histórias familiares únicas, ligações inesperadas com personagens históricos.

A ética do cachaciclismo está em saber decidir a cada momento o que se pode ou se deve fazer e o que não se pode ou não se deve fazer, para viajar com segurança, prazer e apreciando a riqueza cultural e natural que se apresenta. Um pouco é o senso comum, outro pouco a gente vai aprendendo.

Aí, sem nenhuma sociologia, aparece aquele meu amigo velho e diz às gargalhadas: “Você???? Vai visitar um alambique e não vai sair bêbado??? Conta outra!”. Pois é, todos temos um passado… Minhas históricas cachaçadas me ensinaram a beber bem hoje e a querer beber melhor amanhã. Ética diz respeito a cuidar de cada aspecto da felicidade – do corpo, das relações de afeto, do haver-se consigo mesmo, com seus desejos e seus valores. Haverá ética sem um compromisso com o porvir? Acredito que não. Portanto, confiem em mim, meus amigos! Sei me cuidar um pouco, e aprendo um pouco mais a cada dia.

Estrada Real e a cachaça

Rio Paraíba do Sul, em cujas margens começaram os caminhos do ouro, quando bandeirantes cruzaram a Mantiqueira, guiados por índios, para chegar às minas de Ouro Preto.

Não escolhi por acaso esse percurso, que tem como referência a chamada Estrada Real. É importante esclarecer que não estou pensando apenas na rota oficial turística que recebeu o nome de Estrada Real. Aquilo a que se convencionou dar esse nome começa, na realidade, como caminhos coloniais por onde circulam pessoas e mercadorias em um país organizado em torno da extração do ouro na região da antiga Vila Rica, atual Ouro Preto. Não era uma linha traçada num mapa, mas sim um processo histórico e geográfico de ocupação de uma região vasta. Eram caminhos com diversas ramificações, talvez menos charmosas do que um percurso que vai direto de Ouro Preto a Paraty, mas que historicamente traz mais sentidos à tona.

Todo o Vale do Paraíba, por exemplo foi parte da cultura que se formou em torno dos caminhos do ouro. Houve também o hoje ignorado Caminho da Bahia, que ligava a região de Ouro Preto e Sabará a Salvador, num percurso que acompanhava o rio das Velhas de suas nascentes até desembocar no rio São Francisco, depois subia pelas suas margens adentrando o estado da Bahia, cortava a leste ao sul da Chapada Diamantina, e assim chegava até a cidade que, no início do século 18, era a capital da colônia. A mineração e toda a circulação de gente por esses caminhos eram abastecidas por cachaça produzida em alguns locais e que circulavam em tropas de burros e mulas. Hoje, as três regiões brasileiras com reconhecida denominação de procedência para a cachaça fazem parte desses circuitos: Paraty (RJ), Salinas (MG) e Abaíra (BA).

Cidadezinhas pelos caminhos da Mantiqueira (vilarejos de Campinas, MG).

Uma das inspirações para a minha viagem é o belo documentário Estrada Real da Cachaça, dirigido por Pedro Urano, que mostra como a cachaça permeia relações culturais, de amizade, comunitárias, econômicas, religiosas etc. no eixo de circulação de pessoas e bens que se formou com o Ciclo do Ouro. O documentário mostra tradições que se formaram em algum momento ao longo desses séculos e que permanecem vivas, presentes.

Não vou procurar todas essas tradições. O que quero, neste momento, é conhecer o caminho e os produtores das cachaças. Também não vou percorrer toda a Estrada Real dessa vez, vou fazer em etapas. No ano passado, percorri de bicicleta uma região que se referencia no Vale do Paraíba, mais precisamente de São Luiz do Paraitinga, e fui até Paraty, passando por Cunha. Neste percurso, visitei ao todo seis produtores de cachaça (um em São Luiz do Paraitinga, cinco em Paraty).

Pedalar pelos caminhos da Mantiqueira, com morros, estradas de terra, cachoeiras e araucárias

Agora vou adentrar Minas Gerais. Começo novamente no Vale do Paraíba, no pé da Serra da Mantiqueira, e daí subir, passar por Aiuruoca, por Cruzília e chegar pelo menos até a região de São João del Rei, Tiradentes e Coronel Xavier Chaves, talvez mais longe. Talvez bem mais longe, quem sabe? Vai depender de como a viagem se desdobrar, do meu rendimento no pedal pelas estradas e trilhas, das necessidades momentâneas, das oportunidades inesperadas.

O que eu juntei para levar

Técnicas de bikepacking para pedalar mais leve nas estradas e trilhas.

A bagagem numa jornada como essa é, principalmente, aquilo que a gente aprendeu. Quanto mais você se prepara, menos peso desnecessário carrega. Não só isso, tem que saber planejar os percursos, evitar e solucionar problemas mecânicos básicos da bicicleta, administrar seu condicionamento físico no caminho a percorrer, saber a cada dia a hora de sair e a hora de chegar. Saber também cuidar da própria saúde, uma vez que o seu corpo é, além de seu corpo, o seu motor, logo, estar bem disposto é um imperativo. Daí, para retomar a conversa do início, o cuidado com a saúde e o corpo vai muito mais longe do que não ficar bêbado e sair tresloucado pilotando uma bicicleta. É o cuidado de descansar bem, se alimentar e se hidratar bem, pedalar corretamente, com a postura certa e o esforço bem direcionado, o tempo todo.

Meu veículo é uma bicicleta boa mas básica, sem muitos recursos tecnológicos. Talvez o item mais avançado com o qual eu conto seja um bom freio a disco hidráulico, que me dá tranquilidade e segurança para descer. No mais, ela provavelmente seria descrita como uma bicicleta “ultrapassada”. Mas até outro dia era com bicicletas assim que todo mundo pedalava por esse tipo de caminho, então, se o corpo humano ainda é o mesmo, por que a bicicleta não serviria? Vou humildemente seguir esse caminho.

Fiz e refiz roteiros, pensei e repensei os equipamentos que ia precisar, fiz curso de bikepacking na escola de aventura Kalapalo, com meu mestre e amigo Guilherme Cavallari. Comprei uma mochila e sacos estanques (desses impermeáveis que podem cair dentro do rio que tudo bem), roupas leves mas que aguentam o frio. Estou levando barraca, sleeping bag e isolante térmico, para me sentir seguro para toda eventualidade.

Levo, também, tudo o que estudei sobre cachaça nos últimos anos, os ensinamentos do mestre Jairo Martins, toda a litragem degustada, os livros do Guimarães Rosa, as conversas com parceiros e parceiras de copo.

Levo também minha ancestralidade mineira, o nome de minha avó Elísia Ayer, cuja presença sei que vai estar comigo pelo caminho; as histórias que meu pai me contou e recontou; as tias e primas que espero encontrar no final do percurso.

Decidi uma data, juntei as tralhas, beijei a mulher e parti.

Acompanhe a viagem de Maurício Ayer de bicicleta pela rota da cachaça neste blog.

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16 comentários para "De bicicleta, na rota brasileira da cachaça de alambique"

  1. DIRCE BARROSO FRANCA disse:

    GENIAL!!! Adorei a matéria e fiquei morrendo de vontade de partir também em uma aventura dessas! Vai contando para gente como está sendo… assim, nós que não temos como ir agora, viajamos junto com você!
    Dirce, de Brasilia.

    • Vera Cruz disse:

      O interesse por tal fabricaçao cabocla era, também, chegar no seu Alambique Marizabel…O caminho sobre a cachaça é brilhante

    • Vera Cruz disse:

      O interesse por tal fabricaçao cabocla era, também, chegar no seu Alambique Marizabel…O caminho sobre a cachaça é brilhante

    • Vera Cruz disse:

      O interesse por tal fabricaçao cabocla era, também, chegar no seu Alambique Marizabel…O caminho sobre a cachaça é brilhante

    • admin-mau disse:

      Obrigado pela leitura, Dirce, a aventura vai seguir ainda por algumas centenas de quilômetros e outros tantos alambiques! Um abraço, Maurício

    • admin-mau disse:

      Obrigado pela leitura, Dirce, a aventura vai seguir ainda por algumas centenas de quilômetros e outros tantos alambiques! Um abraço, Maurício

  2. Anselmo Massad disse:

    Que manifesto! Que projeto bonito! Que ética inspiradora!
    Parabéns.

  3. Anselmo Massad disse:

    Que manifesto! Que projeto bonito! Que ética inspiradora!
    Parabéns.

  4. Anselmo Massad disse:

    Que manifesto! Que projeto bonito! Que ética inspiradora!
    Parabéns.

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