Reserva do Nosco, história destilada no Vale do Café

Na primeira parada da viagem ciclística aos alambiques da Estrada Real, a descoberta de uma cachaça rara, produzida por um descendente de noruegueses que seguiu, ao contrário, a trajetória de Rimbaud

Acervo de garrafas de cachaça antigas encontrado na sala de envelhecimento da Reserva do Nosco.

Por Maurício Ayer

Contei em outro post como nasceu minha aventura cachaciclística pela Estrada Real. Estou de bicicleta na rota dos alambiques, e aqui se inicia a narrativa da viagem, com o relato de meus (des)caminhos até a excepcional Reserva do Nosco.

Um longo caminho até Engenheiro Passos

Domingo, 25 de junho, seis e meia da manhã. Entro no Metrô Butantã com mochila, capacete, bicicleta e as minhas “malas” (os sacos estanques) amarradas nela. Nos alto-falantes, avisam: “o serviço de trens não será prestado entre as estações Fradique Coutinho e Paulista”. Caramba, o tempo que era tranquilo de chegar na rodoviária de repente ficou bem curto! Subi as escadas quase aos pulos com bicicleta e tudo e saí pedalando alucinadamente pela avenida Rebouças acima, e então voltar ao metrô.

Precisamente às 7h20, horário da saída de meu ônibus para Resende, eu estava no guichê da companhia trocando meu bilhete. Rolei a bicicleta pelo saguão, carreguei-a escadas abaixo e pronto, cheguei. A plataforma 12 era a mais pura paz. Do outro lado do vidro, um funcionário guardava as coisas. Gesticulei, ele esboçou um meio sorriso solidário apontando a plataforma: o ônibus partiu e não tem com quem chorar. Mas me tranquilizou, dá pra trocar a passagem para o próximo ônibus, duas horas depois.

Desci em Resende às 13h15. Agora era aprumar a montaria e pedalar para Engenheiro Passos, bairro que fica a 25 km da parada do ônibus (uns 10 km a mais do que eu tinha calculado, mas tudo bem). Tudo pronto, só falta colocar a mochila nas costas e… uma alça se solta! C@#$%&!!!! Logo a mochila alemã novinha, provavelmente meu melhor equipamento de viagem! Verifiquei que a alça é presa por uns parafusinhos plásticos, que eu tratei de rosquear, mas não dava aperto! Ficou mais ou menos preso e, insatisfeito e inseguro, tomei a estrada – com mais uma hora de atraso, mas tudo bem, tudo bem.

Segui pelo acostamento da Rodovia Presidente Dutra (coisa que eu não gosto, prefiro sempre os caminhos de terra). Em frente a Itatiaia, uma dançada na roda de trás anunciou mais problemas: pneu murcho! Uma pecinha metálica pontiaguda perfurou o pneu e fez vários rasguinhos em toda uma parte da câmera. Mais certo era trocar, mas onde estavam as câmeras reservas? Não achei: esqueci as câmeras! Que diabo!!!! Um item tão básico, eu tinha certeza que tinha separado duas… Maurício, Maurício, não adianta resmungar, foca na solução, só resta remendar. Mas a câmera estava toda esfolada, gastei cinco remendos e novos furos pareciam surgir do nada. Saí em busca de uma bicicletaria, mas me bateu uma luz: lembrei de ter colocado a câmera reserva em um dos compartimentos – era só a síndrome do primeiro dia, quando tudo parece que vai dar errado. Mais um perrengue superado, pneu consertado, de volta à estrada.

Sem glamour: nos primeiros quilômetros, pneu furado na beira da Dutra.

Isso não foi tudo. Acabou a bateria do celular e fiquei sem as indicações para chegar ao alambique. Me perdi, voltei, perguntei, me achei. Quando vi a placa Alambique do Nosco na estradinha de terra já mal dava pra ler, o dia estertorava. Topei com a porteira mergulhado na noite escura e o frio me alcançou assim que eu parei de pedalar.

Não deixava de ser uma vitória chegar ao destino depois de tantos percalços acumulados. Mas onde eu ia dormir? Mesmo no escuro, vi que tinha um largo pátio logo na entrada da propriedade, pensei em pedir para acampar ali. Marcelo Nordskog chegou à porteira gesticulando, entre irritado e descrente da minha chegada. “O que eu posso fazer por você uma hora dessas?” Ele mesmo deu a solução: jogar a bicicleta na caçamba da caminhonete para me dar uma carona até um hotel ali perto e deixar a visita ao alambique para o outro dia. Ainda me serviu um café, e antecipamos um pouco a prosa.

Entre trechos em São Paulo, estradas de asfalto e de terra, caminhos e descaminhos, pedalei 48 km nesse primeiro dia. Depois da sequência de perrengues, estava satisfeito, pois, por bem ou por mal, nada parou minha magrela! Senti-me preparado para seguir.

Viagem no tempo, do café à cachaça

Antigo pátio de secagem do café, na entrada do alambique do Nosco.

Na manhã seguinte, pedalei 15 km desde o hotel até cruzar novamente a porteira do alambique, às 9h30. Sob um belo sol de inverno, vi o amplo pátio que outrora fora um largo para a secagem do café. Naquela calmaria, imaginei as carroças chegando e os trabalhadores a distribuir o café por ali, percebi que a viagem tinha começado – a cada passo nas instalações desse “jovem” alambique com 10 anos de funcionamento, mais longe no tempo eu me transportava.

Marcelo Nordskog é um homem corpulento, de cabelo grisalho, olhar incisivo e fala direta. Parecia contente em me mostrar o alambique. “Essa fazenda foi construída entre 1830 e 1845”, época em que o café era o principal produto do país e o Vale do Paraíba, umas das principais regiões produtoras, também chamado de Vale do Café. “Meu avô comprou essa terra em 1917”, há exatos 100 anos, “mas só foi conhecer quando se mudou da Noruega para cá, em 1939, por causa da guerra na Europa”. O avô Erik e principalmente o bisavô Karl lidavam com comércio internacional, e escolheram o lugar lá da Noruega, entre outras razões, porque a fazenda se chamava Valparaíso, nome de uma cidade portuária chilena que acolhia os navegantes daquele tempo após vencer o turbulento cabo Horn, na Terra do Fogo. O nome lhes parecia alvissareiro. Nosco foi como os habitantes do lugar aclimataram o sobrenome da família.

Ao lado do pátio, duas construções novas abrigam a caldeira e a moenda, além da sala de fermentação. Elas se acoplam à construção original, uma antiga tulha que era usada para empilhar as sacas de café e que foi restaurada para abrigar o alambique e a área de envelhecimento da cachaça. É como um longo galpão, com uma peculiaridade: para ventilar o café e não o deixar em contato direto com o solo, havia um porão sob o piso de madeira acompanhando toda a extensão da tulha. Marcelo recuperou essa parte subterrânea, colocando à mostra as paredes de pedra originais, construídas por homens escravizados naqueles meados do século 19.

Paredes de pedra originais, construídas por escravos entre 1830 e 1845.

As colunas de tijolos também são originais, assim como as espessas vigas de madeira do telhado, que foram encontradas ali na fazenda e aproveitadas na reconstrução. Como o piso de madeira ao rés-do-chão foi retirado (exceto por uma área ao fundo, que dá ideia de como era o lugar no passado), a tulha ficou com um pé-direito de mais de 8 metros, ambiente com uma quietude e uma temperatura sempre mais baixa, ideal para deixar as cachaças maturarem suas qualidades. Ali repousam algumas dezenas de barris de carvalho europeu, além das dornas de aço inoxidável, que armazenam as branquinhas.

Nas escavações para a restauração da tulha, foram encontradas correntes de ferro, provas materiais da escravidão na fazenda.

A maravilhosa Reserva do Nosco

Marcelo Nordskog trabalhava no mercado de mercadorias e futuros no Rio de Janeiro, depois de uma temporada neste ramo em Chicago. Caminhou bem com isso até que os negócios começaram a não responder mais como antes, e ele quis fazer outra coisa. Convocado de volta à terra pelo avô e pelo pai, resolveu investir, restaurar a fazenda e produzir cachaça. Vendeu propriedades, juntou o dinheiro e restaurou a tulha, comprou o alambique e os demais equipamentos. Também está restaurando aos poucos o belo casarão-sede da fazenda.

A cana é orgânica e de produção própria. O fermento é “caipira”, ou seja, preparado a partir da cana usada para a cachaça, apenas criando um ambiente propício à cultura de leveduras, em um processo que leva cerca de duas semanas no início da safra. O alambique de cerca de 800 litros é aquecido por caldeira, onde se queima o bagaço da cana e algum eucalipto de reflorestamento crescido na própria fazenda. O vinhoto (o líquido que sobra na panela do alambique após a destilação) vai adubar o canavial. Tudo muito bem estruturado, de modo que o dono, sozinho, consegue cuidar de todo o processo (exceto a colheita da cana, que é feita por outros trabalhadores).

Foi em 2007 que escorreram do alambique as primeiras gotas da Reserva do Nosco. “Até hoje, o primeiro lote é um dos que eu mais gosto”, diz Marcelo, que assinala diferenças entre as produções ano após ano. A safra de 2007, premiada diversas vezes no Brasil e no exterior, estabeleceu o patamar de qualidade que é perseguido a cada alambicada. E assegura: “Para se avaliar uma cachaça, tem que tomar a branca, que não tem nada mascarando”.

A branca do Nosco é fina e brilhante, muito macia, com acentuada nota cítrica e um toque anisado, sem esconder em nenhum momento o sabor doce e frutado de garapa fresca. Ao meu paladar, é sem dúvida uma das melhores brancas que já tomei, uma das poucas que têm complexidade e riqueza de aromas sem perder seu sabor matriz, a cana-de-açúcar. Eu já a conhecia muito bem, antes da visita. Mas o Marcelo mostrou mais do seu arsenal.

Sala de envelhecimento de cachaças, em uma tulha do século 19, onde eram armazenadas as sacas de café.

Primeiro, uma cachaça ouro envelhecida pelo menos 2 anos em tonéis de carvalho. Depois, a mesma cachaça maturada 5 anos. Os barris foram adquiridos de um lote que havia sido usado para envelhecer Chivas Regal, e algo do whisky influencia na evolução da Reserva do Nosco, conforme ela ganha uma coloração dourado-avermelhada. As notas da cachaça branca estão lá, e a elas se somam um sabor de malte defumado, café e um toque picante perfeitamente integrado ao conjunto. Simplesmente excelente.

Ou melhor, achei que se tratava de excelência, só que ainda não tínhamos chegado ao ápice. “Estes dois barris de 500 litros são diferentes, vieram da produção do brandy espanhol Pedro Domecq. Após 5 anos, eu provei, vi que era muito boa, mas escapava do padrão das outras, então resolvi dar mais tempo a ela.” A cachaça da safra de 2007 ali permaneceu por 10 anos. O resultado me obrigou a repensar o meu parâmetro do que seja uma cachaça de longo envelhecimento em carvalho. É um destilado denso, quase cremoso à boca, com notas de banana e especiarias doces, de modo que a nota cítrica tende à laranja. A cor é muito intensa, de um dourado avermelhado. Isso tudo sem que a madeira se mostre agressiva, a cachaça é uma obra prima, perfeita em todos os requisitos.

Qual o segredo?

O que faz a Reserva do Nosco ser o que é? “Eu não aprendi a fazer cachaça ruim”, diz o seu criador, que garante não existir um segredo. “É só não avacalhar, por desleixo ou má-fé, como tanta gente faz”, dispara, “e ter o máximo cuidado e rigor nos detalhes”. A produção é pequena, o que permite que Marcelo cuide pessoalmente de cada etapa, do momento que a cana chega ao alambique, após ser colhida nas terras da própria fazenda, até a seleção das melhores porções que irão para as garrafas.

Mas não haverá algo mais do que rigor? Do contato que tive, formei a impressão de um homem extremamente instintivo que, sem abdicar um milímetro do conhecimento e da competência que sabe ser necessários, acredita em sua intuição e a segue com ímpeto – talvez transportando à cachaça a assertividade do homem de negócios que ele foi. Confia no seu próprio paladar e seleciona só o melhor de sua produção: “engarrafo apenas cachaça que eu considero excepcional”, assegura. Assim estabeleceu o seu padrão. Uma cachaça que primeiro convence o seu criador, sem qualquer concessão, depois vai conquistar outros adeptos.

Não é pouco, é o que faz uma cachaça autoral. Mas aí me deparo com uma questão: como esse cara incisivo e direto veio a produzir uma cachaça tão macia e, mesmo, delicada? Talvez por vício literário, teimo em buscar uma coerência entre o homem e sua obra…

A resposta pode estar na complexidade. Mesmo dizendo as coisas na lata, em nenhum momento deixou de ser bem humorado e afetuoso, seja comigo ou com os trabalhadores da fazenda, com os fiscais da prefeitura que apareceram para fazer o controle dos mosquitos ou com a gatinha fujona Zezé, que entrou de surpresa nesta história, mas não sem dar um trabalhão para ser encontrada na hora de ir embora.

Marcelo Nordskog, o criador da Reserva do Nosco.

Ocorre-me uma referência literária. Marcelo Nordskog parece ser um Rimbaud às avessas. O poeta francês produziu toda sua obra muito jovem e mudou os rumos da poesia francesa, depois abandonou tudo o foi ser um aventureiro no comércio internacional de metais preciosos. O mestre da Reserva do Nosco fez o caminho inverso: começou como homem de negócios, um aventureiro atento à circulação dos metais preciosos do mundo, e, sempre ao sabor do ímpeto, virou sua vida do avesso e voltou à terra de origem – para destilar ali sua magistral poesia.

De volta à estrada

Marcelo estava de saída para Itamonte e me ofereceu carona. Como já estava terminando a manhã, aceitei. E fiz bem: a estrada que vai de Engenheiro Passos a Minas Gerais é de bom asfalto, mas com poucos trechos de acostamento, portanto, nada convidativa para se pedalar com segurança. Economizei uns 13 km de caminho. Desci na Garganta do Registro, bem na divisa entre Rio e Minas e me despedi de novo amigo. Ali, por volta do meio-dia, segui por terra, subindo na direção do Parque Nacional de Itatiaia.

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13 comentários para "Reserva do Nosco, história destilada no Vale do Café"

  1. Leandro Nagata disse:

    Fantástico, estava faltando alguém com a sua dedicação literária e entusiasmo ciclístico para fazer algo diferente e com um impacto grandioso para o mundo da Cachaça. Parabéns!!

  2. Leandro Nagata disse:

    Fantástico, estava faltando alguém com a sua dedicação literária e entusiasmo ciclístico para fazer algo diferente e com um impacto grandioso para o mundo da Cachaça. Parabéns!!

  3. eder k. disse:

    O texto parece cachaça, pois me abriu um apetite …

  4. eder k. disse:

    O texto parece cachaça, pois me abriu um apetite …

  5. Aline Batista disse:

    Aqui é a Aline Batista, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.

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