WikiFavelas: Folia de Reis também é da quebrada

Dicionário Marielle Franco analisa a tradicional festividade, típica do interior, no contexto urbano do RJ. Fruto do fluxo migratório de MG para a metrópole, folia é mantida viva na periferia, que a ressignifica, e ocupa ruas e casas como resistência da arte popular

Foto: Elisângela Leite/Maré de Notícias
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Marcada por suas tradições e espetáculos, as festividades populares encantam os olhos e o imaginário daqueles que a presenciam. O lúdico, o sagrado e a história se encontram nestas datas festivas. Para aqueles que participam das festas, além de apenas uma data comemorativa, elas são cruciais na formação da identidade do grupo. Manifestações culturais como as festividades são capazes de abrigar diferentes circuitos de produção e circulação de bens e pessoas.

A folia de reis também é conhecida como “festa de Reis” e “Reisado” é uma festividade presente nas regiões rurais, nas cidades o dia de Santos Reis “anda meio esquecido” como cantou Tim Maia. A tradição da Folia de Reis, contudo, é mantida por gerações em algumas favelas do Rio de Janeiro. Um exemplo é a Folia de Reis no Morro Santa Marta, mantida há mais de três décadas. O Dicionário de Favelas Marielle Franco também reúne outras histórias de Folias de Reis, por exemplo, no Morro da Formiga e no Morro do Chapéu-Mangueira.

A Folia de Reis é recheada de uma iconografia única, repleta de elementos religiosos e um trabalho artístico ímpar. Deste elementos sobressaem as bandeiras, o palhaço e o grupo de foliões, que reúne crianças, jovens, adultos e idosos.

Conforme descrito no verbete Folia de Reis do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a festividade possui dois momentos distintos que são os Giros, ou jornadas, e o Arremate. Os Giros, se iniciam no dia 25 de dezembro e tradicionalmente tem a data de término prevista para o dia 6 de janeiro (Dia de Reis). Porém ,no Rio de Janeiro os giros se prolongam até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade. Neste período as folias realizam circuitos de visitação, levando suas bandeiras às casas dos devotos.

O segundo momento é o arremate que marca o fechamento do ciclo da folia e uma festa de rua que integra as folias, os adeptos e os bairros que estão localizados nas folias. O arremate pode ser compreendido como um momento de reciprocidade da folia representada pelo seu mestre para com os foliões e devotos. Dentro do arremate se apresentam outras figuras de caráter religioso como o palhaço da folia que é o seu guardião.

Com o que foi apresentado nos dois momentos da festividade, podemos compreender a folia como não somente uma festa, mas um exercício de repetição e manutenção de tradições. O historiador Luiz Gustavo Mendel, ao analisar o impacto do fluxo migratório de pessoas para a região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, evidencia a capacidade de um grupo de foliões de ocupar e formar novos territórios e criar novas folias.

Como já apresentado, a existência da folia está intimamente ligada à família dos mestres das folias e a comunidade em que se encontra inserida. É através do exercício de manutenção da memória por parte dos foliões a existência das folias, mesmo em cidades predominantemente protestantes como São Gonçalo é garantida.

Assim como outras expressões culturais relatadas aqui no Outras Palavras, a exemplo o Carnaval, o Funk e os Slams, e também a Festa de Cosme e Damião, a Folia de Reis mantém vivas tradições que formam comunidades e resistem à individualidade e impessoalidades das grandes cidades.

Com a apresentação da festa, podemos ver que quando se trata da folia de reis a vida, o público e privado se misturam, a casa e a rua pertence a festa. Na folia lugares são modificados e tradições são mantidas vivas. Na Folia de Reis – Os Penitentes do Santa Marta, podemos ver como a tradição da folia e a história de um grupo estão ligadas. (Introdução: Marlon Manhães)

Na Folia de Reis – Os Penitentes do Santa Marta

A tradição de Folia de Reis no Morro de Santa Marta é muito antiga, e encontrou aqui [no Santa Marta] as condições para sua sobrevivência: pessoas que vieram de São Fidélis, Itaperuna, Miracema, Sul de Minas puderam reencontrar suas raízes culturais, agora adaptadas às condições da cidade grande.

Em meados dos anos 60 a Folia de Reis do mestre Zé Cândido, morador da Ilha do Governador, convidou pessoas do Santa Marta para integrarem a sua Folia de Reis: Luiz, Dodô, Zé Diniz, Borrachinha, Clarisse, Manoelina, Machado, Joãozinho, manezinho, entre outros se incorporaram e assumiram aquela missão. Muito rapidamente a maioria dos componentes da Folia de Reis da Ilha do Governador era de foliões do Santa Marta.

Com a morte de Zé Cândido, o Sr. Luiz assumiu a posição de mestre e a Folia passou a sair de sua casa, no Santa Marta. Pode-se dizer que aí começou oficialmente a Folia de Reis dessa comunidade. Mestre Luiz manteve este posto até quando a saúde lhe permitiu. Foi substituído pelo mestre Joãozinho, que depois de anos dedicados ao ofício de palhaço, assumiu a tarefa de conduzir a Folia de Reis. Após sua morte, o cargo ficou sob a responsabilidade de Mestre Dodô, que desempenhou com orgulho a função de dar os versos e puxar a cantoria na Folia do Santa Marta. Quando morreu, o lugar de mestre foi ocupado por Zé Diniz que, desde o início, exercia o cargo de presidente da referida Folia. Até hoje Mestre Diniz acumula o posto de mestre e de presidente dos Penitentes do Santa Marta.

As mulheres sempre tiveram um papel importante na Folia de Reis do Santa Marta. A responsabilidade de carregar o símbolo máximo da Folia, a bandeira dos Reis Magos, esteve sempre a cargo de mulheres dedicadas. Várias delas já desempenharam esta função: Clarisse, D. Neusa, Marina e, atualmente, D. Eva cumpre a missão de carregar a bandeira da Folia. No entanto, a presença das pastorinhas, como são chamadas as mulheres neste cortejo, foi além da bandeira, formando o coro de cantoria, outros nomes se incorporaram: D. Maura, D. Rosa, Marina, Rita , Maria Bela, Delfina, Eunice e duas recentes participações – Eliane e Roberta – se agregaram, alterando definitivamente o perfil desta Folia de Reis.

Os palhaços são um capítulo à parte: na origem da Folia do Santa Marta está o nome de Totonho, lembrado com admiração pelos que lhe sucederam. A linha de sucessão foi preenchida por Joãzinho, que durante muitos anos foi mestre dos palhaços, dividindo as atenções com seus contemporâneos: Borrachinha, Zezinho Capirai , Zé Carlos, Macalé.

Com apenas nove anos de idade, Ronaldo, filho do mestre Diniz, começou a sair como palhaço nessa Folia. Desde muito cedo mostrou que seria um grande palhaço. Nos últimos 30 anos, Ronaldo reinou como palhaço e, de certo, estará na galeria dos melhores palhaços de Folia de Reis do Rio de Janeiro.

Seguindo seus passos, seu filho Júnior, iniciou-se na vida de palhaço aos sete anos de idade. Nos últimos 15 anos, pai e filho, juntamente com o companheiro Guinho, se transformaram no cartão de visita dos Penitentes do Santa Marta.

A Folia tem hoje , como suporte básico, um núcleo familiar formado a partir do Mestre Zé Diniz, reforçando a importância dos laços familiares na transmissão das tradições culturais: Mulher, filhos, netos, irmãos, primo e amigos compõem o grupo Os Penitentes Foliões do Santa Marta: Zé Diniz, Arlindo, Riquinho, Maura, Eva, Gilson, Ronaldo, Junior, Borrachinha, Cosme (Macieira), Inácio, Jorge, Russo (sanfoneiro), Mário, Daniel, Dudu, Haroldo, Fábio.

Dinâmica das apresentações

A folia sai no dia 25 de dezembro a meia noite e encerra sua jornada no dia 20 de janeiro, realizando a procissão de São Sebastião.

Diferente dos hábitos da “Roça”, onde os foliões saiam de casa no dia 25 de dezembro e só retornavam no dia 6 de janeiro (dia de Reis), a Folia urbana, como é o caso desta do Santa Marta, sai em todos os finais de semana e feriados existentes no intervalo entre o dia 25 de dezembro e 20 de janeiro. Esta adaptação tem a ver com a disponibilidade de tempo dos participantes, como também daqueles que lhes vão receber.

A Folia visita casas no Morro de Santa Marta e também em outras favelas: Rocinha, Morro 117, Tavares Bastos, Trapicheiro, Ilha do Governador.

Homenagem a cinco foliões históricos que deixaram saudades pelo falecimento nos últimos três anos: Jofiene ( Manézinho) – Sanfoneiro, Delfina ( Tia Delfina) – A viola era a sua marca, D. Eunice, D. Maria Bela e Mário – A devoção aos Reis Magos e ao mártir São Sebastião uniu-os a este grupo.

O contexto urbano

As grandes cidades, como o Rio de Janeiro, receberam uma população que veio da área rural seja do Norte e Nordeste ou de áreas adjacentes a esses núcleos de crescimento urbano. No caso da Cidade do Rio e, em particular o Santa Marta, recebeu uma população rural do norte fluminense, sul de Minas e adjacências, no primeiro movimento migratório ( 1939/1960).

Cada grupo trouxe a sua cultura: seu jeito de viver, de ver a vida e de celebrar. A Folia de Reis é uma das muitas expressões dessa população. No entanto, as condições físicas e materiais são diferentes da roça e, muita coisa fica perdida. A Folia de Reis do Santa Marta é um núcleo de resistência da arte popular. E, no mínimo há três décadas, mantém essa tradição no morro de Santa Marta.

Objetivos do grupo

1 – Tornar o Morro de Santa Marta uma referência no que diz respeito a Folia de Reis na área urbana. Trazendo para esta favela outras Folias de Reis existentes no estado. Definir o Santa Marta como o lugar de encontro das Folias de Reis. Dessa forma, ampliar a percepção dos moradores do Morro, pondo-os em contato com outros grupos populares, que lutam pela sobrevivência da cultura popular.

2 – Formar novos conhecedores e admiradores de Folia de Reis, estabelecendo com as escolas pública e particulares da Cidade uma parceria onde o encontro do foliões com professores e alunos seria um canal para qualificar as informações sobre as manifestações populares de nosso Estado.

Texto a partir de entrevistas com Riquinho (Mestre da Folia de Reis), Ronaldo e Junior (palhaços da Folia de Reis) e Adair Rocha (Santa Marta):

De Mestre para Mestre: “Joãozinho foi uma das pessoas mais inteligentes que conheci, dentro de sua capacidade”. Do Mestre Zé Diniz, na hora derradeira do Mestre Joãozinho.

Inicialmente, “jornada” e “profecia” são palavras importantes para se compreender a existência da Folia de Reis, no Santa Marta e em toda parte.

A grande viagem dos Reis Magos para visitar o Menino que havia nascido em Belém e que seria o Salvador, chamada também de Messias, segundo as “profecias”, durou doze dias, do Natal ao Dia de Reis, para levarem seus presentes: ouro, incenso e mirra. Gaspar, Melquior e Baltasar eram seus nomes.

Os antecedentes e a trajetória dessa folia foi descrita pelos mestres Dodô, um dos primeiros moradores do Santa Marta, quando em 1941 foram construídos os primeiros barracos, e pelo Mestre Zé Diniz, Filhos da “Quinha”, uma espécie de matriarca ou sacerdotisa, guia da família Silva, abre caminhos conduzindo a Bandeira dos Três Reis, abria os caminhos para seus filho Zé Diniz e sua esposa Maura, que comanda as pastorinhas. Seu neto Ronaldo e o bisneto Juninho, palhaços da Folia e o Mestre atual Riquinho, também seu neto, conviveram com “Quinha”.

Segundo Dodô e Zé Diniz “nós vamos começar pelos fundamentos da Folia. Essa Folia de Reis do Santa Marta é nascida lá na Ilha do Governador, do pai do finado Mestre Joãozinho. Nós saíamos lá, na folia dele. Depois ele faleceu e nós fomos sair numa outra folia. Ele se chamava João Lopes Israel. Então aprendemos a cantar na Folia de Reis com ele. Já o Joãozinho é quem armou a Folia, com o Luis Santos Silva, que passou para mim (Dodô) e depois, o finado Joãzinho. Cantamos em seguida numa Folia do Leme, do Chapéu Mangueira, com o Manoel Balbino, também falecido. Então descobrimos que tínhamos sabedoria para armar nossa Folia. Inicialmente, fomos ajudados pelo birosqueiro João Silva que nos deu o ‘fardamento’. Então o fundamento dessa Folia tem: o Luis dos Santos, José Hilário dos Santos (Dodô), Zé Diniz, Paulinho e Joãozinho.Dodô cantou quatro anos e passou para o Joãozinho (grande Mestre). Depois, Dodô e Luis se revezavam de Mestre o contra-mestre. Tiveram a mesma escola”.[1]

O mestre seguinte foi Zé Diniz, que faleceu também, mas é memória viva da Folia, que tem hoje, em seu filho Riquinho o Mestre que mantém a “jornada” sempre mais viva e atual, na parceria de Juninho e Ronaldo liderando a escolinha que agrega a criançada que dá futuro a essa tradição.

A trajetória do 25 de dezembro ao 6 de janeiro ainda celebra um devoto e padroeiro, o Mestre São Sebastião, com a Procissão de 20 de janeiro, organizada e conduzida pelos Foliões e Penitentes do Santa. Reúne-se novamente na metade do ano para o ‘Descante” ( para cantar de novo no ano seguinte).

Com Mestre, contra-Mestre, o cordão das vozes, pastorinhas e percussionistas, e ainda com dois ou quatro palhaços, mascarados que representam os soldados de Herodes e, portanto, distraem e divertem, especialmente a criançada, que faz a festa, essa composição da Folia de Reis representa uma atitude de fé e cultura, que atualiza a anunciação, o nascimento, a perseguição, o sofrimento, a morte e a ressurreição, na sabedoria da palavra que o Mestre domina, cantando em versos a significação do presépio e a sequência da profecia, conforme o acolhimento doméstico ou institucional.

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