Saltburn: Os aristocratas se divertem

Um jovem menosprezado pela elite universitária de Oxford é convidado para à um castelo de veraneio. Esse é o mote para desvelar os jogos de poder de uma aristocracia, alienada e extravagante, que busca manter seu status com estratégias perversas

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Em seu aguardado segundo longa-metragem, Saltburn (2023), a talentosa cineasta Emerald Fennell, vencedora do Oscar de melhor roteiro original, mergulha nas águas turvas da aristocracia britânica, traçando paralelos com períodos históricos marcados por desigualdades e intrigas de poder. Remetendo à tradição literária gótica, que frequentemente explorava as nuances sombrias da sociedade, Fennell desafia as expectativas do público ao revelar a complexidade de sua trama. Após seu aclamado trabalho como roteirista na segunda temporada de Killing Eve (2019) e sua ousada estreia como escritora e diretora em Bela Vingança (2020), Fennell traz consigo a promessa de provocação e subversão, elementos que ecoam movimentos sociais e políticos que questionam as normas estabelecidas.

A trama gira em torno de Oliver Quick (Barry Keoghan), um personagem enigmático cujo anseio por pertencimento e poder é personificado pelo carismático Felix Catton (Jacob Elordi). A habilidade de Fennell em prender a atenção do espectador é notável, utilizando um marketing provocativo que inicialmente insinua um romance homoerótico, apenas para subverter essas expectativas através de revelações impactantes por meio de flashbacks. O filme desenrola-se como uma fábula gótica, repleta de reviravoltas e nuances que prestam homenagem a diversas influências, desde o clássico italiano Teorema (1968) até a adaptação de O Talentoso Ripley (1999).

Oliver, o protagonista fabuloso, transita da pomposa Universidade de Oxford para o âmago de uma família ultrarrica burlesca. A dinâmica familiar naturaliza instintos e desejos com luxúria, seguindo suas próprias regras sociais e sexuais, refletindo a segurança e extravagância característica da elite tradicional. A diretora habilmente instiga simpatia pelo personagem interpretado por Keoghan, enquanto ele entra na universidade como bolsista, destacando a diferença de classes por meio de sua vestimenta, sua timidez e desconforto, contrastando com a opulência dos estudantes ricos em um mundo repleto de tradição e sobrenomes.

Diferentemente de seu trabalho anterior, Bela Vingança, onde Fennell empregava didatismo para abordar questões sociais, em Saltburn a diretora opta por manter o público imerso em uma atmosfera de conto gótico, antes de surpreendê-lo com reviravoltas. A trama se desenrola na imponente mansão Saltburn, título do filme, onde a cineasta aprofunda a tensão social entre o protagonista, Oliver Quick e a tradicional família Catton, cuja relação com a aristocracia é explorada com nuances perturbadoras. Fennell tece uma rede narrativa que, de maneira gótica, revela a decadência e os conflitos de não-pertencimento de Oliver, remetendo a clássicos literários como O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, e Rebecca, a mulher inesquecível, de Daphne Du Maurier.

Ao utilizar um marketing provocante que sugere um romance homoerótico, Fennell explora o poder da representação e visibilidade LGBTQIA+, refletindo as mudanças sociais e culturais ocorridas nas últimas décadas. A subversão das expectativas, característica da obra, pode ser associada a movimentos que desafiam normas sociais preestabelecidas.

Ao abordar a aristocracia e seus jogos de poder, Fennell, de maneira caricata, faz uma crítica à alienação e à dinâmica manipuladora dos personagens, refletindo paralelos com momentos históricos em que a elite buscava manter seu status por meio de estratégias ardilosas. A participação especial de Carey Mulligan (protagonista de Bela Vingança) como Pamela adiciona um toque extravagante a esse retrato, sugerindo que Fennell está criando um padrão ao reunir elencos chamativos para suas histórias.

A ambientação em 2007 é uma escolha inteligente, proporcionando referências culturais da época, como o fenômeno de Harry Potter e Crepúsculo. Fennell utiliza essas referências de maneira sutil, incluindo o livro Harry Potter e as Relíquias da Morte, lançado naquele ano, como preferência de leitura dos personagens, enquanto adiciona elementos atemporais/clássicos e trechos que se conectam à cultura pop, como o memorável momento musical com karaokê.

A cinematografia de Linus Sandgren destaca-se, reforçando a atmosfera gótica do filme. A diretora, mesmo com alguma obviedade em suas subversões, entrega um espetáculo visual, explorando momentos de repulsa e morbidez que superam as manipulações e sadismos de Oliver. A dualidade entre falsa inocência e perversidade é magistralmente retratada, especialmente em cenas como o momento do orgasmo na banheira.

No entanto, apesar da estética cativante e do elenco talentoso, Saltburn não é isento de críticas. A narrativa, estruturada em clipes e reviravoltas, por vezes se perde, deixando a sensação de uma nova proposição clássica desprovida de substância. Fennell, ao tentar disfarçar o jogo de sedução e manipulação, corre o risco de criar um drama desconexo, mais focado na estética do que na coesão narrativa.

Em suma, Saltburn é uma obra que desafia convenções, oferecendo uma experiência cinematográfica única e provocante. Emerald Fennell, mesmo com alguns tropeços, continua a se destacar como uma diretora visionária, explorando as complexidades da natureza humana em um cenário luxuoso e gótico.

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