WikiFavelas: Genealogias do funk carioca

Dicionário Marielle Franco uma reinvenção cultural. Os vibrantes “bailes de corredor” dos anos 90 ressurgiram e canalizam a voz das favelas. Texto mostra: mais que festa, são espaço de promoção de lazer e solidariedade das comunidades

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A última semana foi marcada por inúmeras homenagens que celebraram os legados e as bandeiras de Marielle Franco. Ao longo da vida, Marielle lutou pela defesa dos direitos humanos e pelo direito à vida nas favelas, apresentou formulações de projetos de leis em defesa dos direitos da população LGBTI e das mulheres pretas e faveladas, além de ter defendido ativamente as políticas de esporte, cultura e lazer em uma perspectiva popular e favelada.

Na esfera cultural, Marielle tinha uma relação forte com o funk que marcava sua trajetória e militância. Ela viveu o período no qual as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e o lado B nos famosos bailes de corredor. Durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, como conta Luyara Franco, sua mãe Marielle foi “garota furacão 2000”. Anos depois mãe e filha fizeram juntas parte do bloco da Apafunk. Como sintetiza Luyara: “na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, vi minha mãe, Marielle Franco, construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente ‘cria do funk’”.

A trajetória acadêmica de Marielle também foi marcada por reflexões sobre o funk que ela apresentou na dissertação “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”. Ao analisar a experiência das UPPs, Marielle evidenciou como proibições, censuras e perseguições ao gênero musical afirmavam-se como recorrentes nos territórios “pacificados”. A proibição dos bailes funk, tradicional expressão sociocultural da juventude da favela, foi denunciada na época pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. A denúncia, como mostrou Marielle, indicava uma lista de problemas como os abusos policiais na relação com os funkeiros, a ausência de diálogo franco, a dificuldade em ampliar as possibilidades de eventos e editais que gerava uma relação de “não direitos” que se estendia ao campo econômico, com a falência de equipes de som de pequeno porte.

Um ponto central da análise de Marielle foi destacar a importantíssima luta dos funkeiros ao longo de décadas, em especial através da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK), entidade por eles criada para fortalecê-los em suas reivindicações, que levaram ao reconhecimento legal do funk como expressão cultural do estado do Rio de Janeiro, em legislação aprovada em 2009 (LEI 5543, ALERJ 2009). Ela lembrava, contudo, que a despeito dessa lei, os bailes continuavam sendo fechados nas favelas pacificadas, “figurando como mais uma atitude de desrespeito do Estado frente às expressões da cultura popular”.

Assim como fez parte da trajetória política e acadêmica de Marielle Franco, o funk também vem configurando e reconfigurando as vidas e lutas de muitos daqueles que protagonizaram os bailes de corredor dos anos 1990. Para entender as transformações recentes que vêm ocorrendo no mundo funk carioca, é preciso lembrar que os anos 90 foram marcados pela perseguição e criminalização dos bailes, sob o argumento de dar fim ao cenário de violência institucionalizada contido nos corredores.

Nesse sentido, conceitualizar o baile de corredor significa revelar que galeras, ou milhares de jovens, se encontravam com a finalidade de brigar nos finais de semana. Seus heróis eram retratados por meio da inspiração daqueles que se destacavam nas brigas e assim se tornavam os representantes das suas respectivas comunidades. Cada favela capturava sua força, por meio de um desabafo que era extravasado nos clubes. A afirmação dessa mesma força, era feita por meio da quantidade de pessoas e da união que faziam com laços afetivos com outras favelas.

Por ausência da valorização de políticas culturais, muitos jovens perderam suas vidas, outros tantos tiveram suas trajetórias marcadas pelo sistema prisional, mas alguns conseguiram reconfigurar a relação com funk e hoje se autodenominam como Guerreiros das Antigas (GDAs). Eles criaram a união do baile das antigas, mais conhecida como UBA, que é responsável por organizar e promover encontros que acontecem a cada mês em uma favela diferente. A agenda dos bailes, hoje chamados de resenha, é cuidadosamente montada e registrada com a antecedência de um ano, gerando um total de doze encontros oficiais. Além disso, há a promoção de festas todos os finais de semana em favelas espalhadas pelo Rio de Janeiro.

Surge, assim, uma nova configuração do funk carioca que tem marcado os finais de semana de milhares de pessoas espalhadas. O formato das festas consiste no resgate dos raps e montagens que antes eram tocados nos famosos bailes de corredor. Contudo, agora há um novo visual marcado não mais pela violência, mas pela união entre as comunidades.

Os atores, que antes compuseram os bailes funk de corredor e marcaram os anos 90, conseguiram algo impensável para o contexto daquela época. Os espaços que antes eram disputados e marcados por meio da violência que intencionava promover autoafirmação local e pessoal, atualmente se reconfiguraram em espaços de promoção de lazer e sororidade nas favelas.

Os eventos começam à luz do dia, tem hora para terminar, não possuem relação com o tráfico local e tem como marca o emblema da família. Inclusive, toda reunião também é integrada por um público infantil: são os guerreirinhos. Nas resenhas os guerreirinhos encontram brinquedos, lanches, churrasco e muita alegria. Além de tudo isso, há um cunho social, pois o ingresso é um quilo de alimento não perecível que é convertido em cestas básicas distribuídas entre a população do entorno. Cada evento promovido aquece a economia local e acaba por gerar empregos indiretos, o que também é uma forte marca do movimento.

Esse novo movimento mostra como o funk segue sendo capaz de se reinventar e canalizar a voz das favelas, com seus sujeitos expressando dores e valores por meio de sua cultura. Cultura essa que segue com resiliência frente a perseguições constantes. Integrantes do coletivo dos “Guerreiros das Antigas” narram que são recorrentemente criminalizados e ainda encontram muitas barreiras para promover seus encontros. Contudo, mesmo habitando o olho do furacão, o funk vai seguindo na contramão do controle colonial. Para alegria de muitos, por meio dos batidões, a cultura funk continua como um rio em curso que busca desaguar em sua tão sonhada liberdade.

Confira o verbete “Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de Janeiro, década de 1990”, criado por Norma Miranda, que nos ajuda a compreender um momento importante da história dessa expressão cultural e de toda sociabilidade mobilizada a partir dela. Além de pesquisadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, Norma é mestranda da Universidade Federal Fluminense e faz atualmente uma pesquisa em torno do “Funk das antigas e a reconfiguração do funk no Rio de Janeiro a partir de 1990 à 2023”. (Introdução: Norma Miranda, Palloma Menezes e Caíque Azael da equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco). Leia a seguir o verbete na íntegra, também disponível no Dicionário de Favelas Marielle Franco:

Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de Janeiro, década de 1990

A década de 90 marcou a vida de muitos jovens da periferia quando o assunto é diversão e entretenimento. No escopo do público que frequentou os funks de corredor, sempre existiu certa preocupação ou peculiaridade pela parte da sociedade que os rotulava versus o Estado que os criminaliza. Isso porque a violência foi uma das características que pautou o movimento cultural e o comportamento do aparelho estatal, da mídia, mercado e da sociedade como um todo. Participei deste movimento e ainda carrego alguns estigmas que me foram deixados como legado (favelada, marginal, selvagem) e o que me motivou a querer repartir o que acontecera pela parte de dentro dos salões e também pela parte de fora deles foi a ideia de trazer a importância de se derrubar paradigmas e elos estatais/sociais em torno do público periférico. Também se faz muito necessário que haja assistência social e políticas públicas que possibilitem mobilidade em torno destas mesmas áreas, ao invés de exclusão.

No fundo político desses bailes, havia o governo de Fernando Henrique Cardoso que tendo não só o cargo de Presidente da República, mas sólida formação acadêmica em Ciências Sociais, pouco contribuiu para a inclusão destas camadas no aparelho social como um todo. Muitos jovens perderam suas vidas em busca não só de diversão, mas principalmente de visibilidade e status. O valor, a honra, o respeito e a dignidade do ser humano estavam operando em seu limite mínimo e nesta mesma linha a violência os devolvia tais sentimentos.

História do funk e especificamente do baile de corredor

Os bailes funk de corredor nasceram na década de 90 (no Estado do Rio de Janeiro) e foram gerados no seio dos festivais de galera. Festival de galera era o nome que se dava aos encontros dos bailes funks que, organizados por equipes de som, semanalmente traziam um tema social midiático para as galeras (comunidades). Cada “galera” desenvolvia a sua própria criatividade para expressar o tema proposto através de maquetes, bolas coloridas e uma pessoa ficava incumbida de fazer um “grito” (uma música/rap voltada para o tema).

Do palco, o DJ ou o organizador do baile chamava grupo por grupo (conforme os laços de união das comunidades) para se apresentarem. Nesta hora, o volt mix era aberto para uma pessoa cantar enquanto sua galera (grupos de comunidades) pulava e então desfilava. O termo desfilar era dado pelo entendimento da organização das comunidades na qual cada uma tinha seu momento e também um tempo para mostrar o tamanho de seus integrantes que se organizavam com um tema do desfile que era designado pela equipe de som, sempre com antecedência, para mostrar o trabalho que desenvolveu para aquele tema específico.

O final do “festival” que durava cerca de um mês cada, com 4 apresentações em média por mês, consistia em dar um troféu à galera que tivesse tido mais imaginação, criatividade, organização e união. Assim, ao final de cada festival se estabelecia o grupo de galeras campeãs. As rivalidades geralmente ocorriam na hora do “desfile” onde a galera A poderia simplesmente cadenciar uma agressão em alguém da galera B. Isso porque cada parte do baile já era reservada para determinadas comunidades e a divisão inicial era imaginária, não havendo corda ou algo que os separasse de fato. Então, quando chegava o momento do desfile, ocorria daquela “galera” desfilar no espaço que não lhe “pertencia” o que gerava conflito. Músicas (raps e montagens), com letras dos nomes dos bairros, estimulavam que a “galera” x mostrasse sua força para a “galera” y e vice-versa. Neste contexto ainda não havia corredores de brigas que poderiam ocorrer de forma aleatória.

Trecho de música/rap de galera campeã de festival:

F de força
U de união
R de rainha do movimento que é bom
A de amizade
C de coração
A de autoridade, o
O de organização
O 2 não está sozinho
Está com os 000 em união
Campeões é o Lindo parque, Boa vista, Camarão

Alguns Mc ‘s destacaram-se na época e as melodias já tinham por finalidade enaltecer determinada localidade para que esta ganhasse visibilidade social e maior autoridade sobre outra região que poderia ser sua rival nas pistas dos bailes cariocas.

Segundo entrevista realizada com frequentadores dos bailes…

“Levantar o nome do meu bairro ou comunidade, e ganhar fama de um dos melhores! (…) Participar para mim era a oportunidade de representar a minha galera através das minhas composições musicais. (…) Defender o nome da minha galera”.

O rap convidava a massa funkeira a pensar em paz e em guerra de forma simultânea e quase que de forma inconsciente, tendo como fundo os cenários das favelas associados ao poder (neste caso específico, poder era o que as comunidades ganhavam ao se destacar nos festivais e corredores). Eram chamadas de “poderosas” as que ganhavam na briga ou nos desfiles. Havia um certo glamour a quem se vestia, cantava ou tinha uma criatividade maior/melhor. Enquanto as autoridades públicas colocavam o movimento, que arrastava milhares de jovens, à margem da lei e os criminalizava, algo maior acontecia.

O funk de galeras deu identidade e um norte cultural às pessoas que até então não haviam se encontrado de fato no meio dos seus em ambiente de diversão, pois as alternativas dentro das comunidades eram os bailes (funk, soul e charme), o samba, às vezes os estádios de futebol, terreiros ou qualquer outra atividade não elitizada.

Nas palavras de uns entrevistados:

“Não tínhamos opção de lazer. Então o baile era o lazer do pobre.”
(…) As letras, os ritmos. Quem gosta de funk já nasce funkeiro não é questão de se identificar e sim amar o funk. Já sofri vários preconceitos por frequentar bailes, sempre fomos vistos como favelados, sem estudo, sem conhecimento. Exemplo: final de semana, na maioria das vezes íamos para os bailes a pé, pois os motoristas de ônibus não paravam para nós funkeiros, isso era humilhante.

Mas ao passo que isso acontecia e saía nos veículos de comunicação, um “grito” por respeito e consciência virava melodia/protesto ao som do “tamborzão”. As comunidades do Rio de Janeiro, dividiam-se a fim de se enfrentarem nos finais de semana em lados A e B. Inicialmente tal divisão, para acontecer, não levava em consideração o tráfico de drogas e seu poder em territórios de Comando Vermelho, Terceiro Comando ou lugares considerados neutros. Porém a rivalidade ocorria fora dos clubes e as pessoas que residiam no lado A não poderiam transitar no lado B e vice-versa, sob pena de linchamento ou morte.

Há relatos encontrados em veículos de comunicação como TV e jornais sobre as brigas acontecerem somente no campo dos bailes, o que não condiz com a verdade, podemos afirmar isso por meio do material empírico coletado através do survey. O valor das pessoas que eram assíduas dos bailes e formavam a linha de frente dos “corredores”, estava pautado em levar o seu próprio nome ao conhecimento de todos, aumentar a visibilidade e a força que detinha o lugar do qual ele fazia parte. Reforçando a autoafirmação através da violência como a questão de tais grupos estarem desassistidos pelo poder público a ponto de arriscarem suas vidas a fim de conseguir visibilidade social e status. Com relação aos artistas, estes elaboravam os “gritos” contendo o nome de suas determinadas localidades de vivência para que o DJ mixasse e tocasse nas rádios.

Quando os festivais de galera alcançaram a rede televisiva, no canal da CNT com a Furacão 2000, a visibilidade das galeras em torno da violência cresceu ainda mais e, nesta época, nasceram os clubes de corredor, no ano de 1995. As autoridades públicas, que sempre souberam e lucraram com as festas, se viram no lugar de tomar “providências” e ao invés de reconhecerem que tinham participação (afinal a própria polícia militar sempre estava presente), tomaram a decisão de criminalizar os jovens e os bailes. Considerando o mundo funk como uma das maiores expressões socioculturais e entendendo a cultura como meio de significação do mundo, precisamos compreender o funk não como massa estacionária, mas como um veículo propulsor de ideias, símbolos, narrativas e uma gama de sentimentos como amor, ódio, gratidão ou revolta. Para que entendamos este universo precisamos ter uma certa sensibilidade ao nos debruçarmos em um passado não tão distante.

Realizando o esforço em narrar como funcionava a mecânica dos bailes de corredor, quero aqui trazer como eles eram organizados. Nasceram os clubes de corredor após o fim dos festivais de galera em 95 (aproximadamente). Durante a semana a antiga rádio imprensa FM, anunciava onde aconteceriam os bailes que eram realizados nos finais de semana e todas as equipes de som como Dudas, Cash Box, A Coisa, Pipo’s, Furacão 2000 etc. tinham, cada uma, o seu horário reservado para tocar os raps e montagens e também rivalizar umas com as outras. Enquanto as galeras eram fomentadas a se enfrentar o mesmo ocorria com as equipes, pois havia encontro de DJs onde uma equipe confrontava a outra através dos sons elaborados pelos DJs. O encontro tinha o nome de duelo de equipes, mas os empresários estavam em busca de lucro e não iam brigar no sentido literal da palavra.

Somente a rádio imprensa dominava este universo, DJs como Marlboro aproveitavam os diversos troncos e vertentes do funk para tocar o freestyle, raps românticos ou até de galeras, mas sem fomentar duelos. Entretanto este tipo de DJ e de trabalho à época hibernava e lucrava em programas de televisão. Afinal os agentes da mídia só queriam comprar este tipo de trabalho, que não está na cadência do que aqui está sendo trazido. Nenhuma outra rádio, além da Imprensa FM tocava as montagens e rap’s de corredor e de festivais. A ideia da rádio Imprensa FM era tocar somente as músicas/montagens das galeras e dar voz aos ouvintes a participar dos programas mandando seus “alôs”, convocando a sua “galera” para rivalizar com a outra e reforçando a mensagem de comparecimento nos bailes para fazer a sua “frente”.

Montagem Porto da Pedra, produzida pela equipe A Gota cerol fininho:

“Bonde dos pulas agora chegou de vez
Pardal e o Rubinho, o Paulinho que é Tailandês
Bolinho de frente que é pura disposição
Lado B caiu no chão com o ponta a ponta do Pezão
Fábio maluco quando pula cai uns 10
O Gordo e o Orelha só vem batendo com os pés
Corre otário, seus cambadas de buchas
Que aí vem Porto da Pedra com a vassoura da bruxa”

Ônibus eram alugados para que galeras de todo o Rio de Janeiro pudessem se encontrar de alguma forma nos vários clubes que eram organizados em diversas cidades espalhadas, ou seja, praticamente quase todo bairro já visitou algum lugar do Rio através desta premissa de ir até uma outra cidade e poder então fazer o seu nome. Os clubes eram planejados desde as entradas, enfermarias, bares e banheiros separados, um para o lado A e outro para o lado B e dentro dele uma corda já dividia o espaço. Os ônibus também possuíam seus estacionamentos separados e quando o clube era localizado em área de lado A, por exemplo, essa galera deveria entrar antes para que somente depois pudesse entrar a galera do lado B. Às vezes acontecia do Lado A expulsar o lado B ou o contrário e aí era êxtase total (significava a vitória plena de um lado e ficava estabelecido a sua força diante do outro). Geralmente isso acontecia quando um lado estava visivelmente maior do que o outro. Mas a polícia sempre estava presente para controlar os ânimos.

Em tese, havia troncos no cenário do funk onde a paz, a guerra, a união, o amor e o ódio se entrelaçavam e davam canal de voz para expressar tudo isso naquele ambiente, através dos raps e montagens. O funk era dono de várias vertentes que se encontravam e dialogavam com as diversas pessoas frequentadoras onde nem todas iam para brigar, pelo contrário, se sentiam representadas ou pelo funk da paz ou pelo funk do duelo que ali se misturava. O início do baile era marcado pelos sons das músicas mais calmas, enquanto as pessoas iam enchendo os clubes até que os DJs começassem a tocar as montagens que eram gravadas pela voz de uma pessoa comum de alguma comunidade. O trecho da montagem, acima citado, narra os melhores batedores da galera do Porto da Pedra (bairro localizado em São Gonçalo) que já era escola de samba e recebia esses mesmos atores nos seus ensaios para a Sapucaí dentro da sua quadra, onde às vezes também acontecia de ter briga caso alguém, que rivalizasse no corredor e fosse inimigo, aparecesse por lá. A sensação de identidade e pertencimento movia as pessoas a mostrarem que a sua localidade era de fato forte.

Nessa época a equipe de som furacão 2000, que ganhou espaço no canal televisivo (rede CNT), levava esses MC ‘s para cantar e através das músicas protestar sobre as matanças e covardias que ocorriam e a cantar para um público cada vez maior. Citavam nas letras as chacinas como a de Vigário Geral e clamavam pela vida das crianças de rua, tendo como intenção alcançar movimentos como o do Betinho que detinha um olhar sensível, e foi um dos responsáveis pela mobilização em torno da luta contra a fome e a miséria no Brasil, além de fundador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

“Foi através do funk que eu conheci a favela pela primeira vez. Tinha 15 anos, por volta de 1992. Foi o momento em que estourou o ‘alô Pirão, alô alô Boa Vistão’, lembra Pedro Monteiro, em referência ao “Rap do Pirão”, do MC D’Eddy.

O teatro Miguel Falabella, localizado na zona norte do Rio de Janeiro, prestou homenagens ao funk no ano de 2012 por meio de um espetáculo musical chamado de “Funk Brasil 40 anos de baile” baseado no livro de Silvio Essinger. É difícil localizar material sólido sobre os clubes de corredor (o livro não contempla), mas nesta notícia do G1 (de agosto de 2012) há uma narrativa sobre a homenagem que o funk receberia por meio deste musical (baseado no livro), e há também a mensuração dos festivais de galera narrada pelo M’C Buchecha:

“Vou me emocionar bastante [com a peça] porque vou ver minha história. Estou com 20 anos de funk, metade disso aí eu faço parte, comenta Buchecha, que era pagodeiro e foi convencido pelo parceiro Claudinho (1975-2002) a fazer funk e participar do Festival de Galeras no Clube Mauá de São Gonçalo, no início dos anos 1990 — ficaram em terceiro lugar com “Rap da bandeira branca” em 1993 e venceram com “Rap do Salgueiro”, dois anos depois.

O funk de corredor, em seu teor mais sólido, torna-se uma expressão direta do pensamento de BECKER (2008). No campo da exclusão e dos rótulos, há um aprofundamento nas tipologias de pré-conceitos, estabelecidos por quem dita as regras. A cultura, neste caso, é massacrada quando olhada somente pelo tronco da violência em evidência. Contextualizando a obra do autor pela perspectiva da rotulação que persegue os outsiders, temos o pensamento/reflexão no âmbito do universo das regras. Neste, é necessário compreender o lugar de posição das pessoas que seguem ou não tais regras, dentro do paralelo do imaginário que levanta a questão sobre quem estabelece essas mesmas regras e a quem estas podem vir a interessar.

O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que outras. Estudos da delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de área de classe média, quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros miseráveis. (BECKER, 2008, p.25)

Outsiders é o termo trazido para explicar o comportamento dos antissociais, aqueles que transgridem as regras estabelecidas pela sociedade que dita como se deve viver. Quem acusa quem? De fazer o quê? Quem define o que é ou não incorreto? – A sociedade. Ela define os valores morais que serão designados baseados em não importa qual regra. Dentro disso, o autor traça como funcional tudo o que traz estabilidade social e disfuncional, tudo o que gera instabilidade como elementos puramente políticos; afinal a organização de todo grupo é decidida dentro deste âmbito, onde todas as regras são resolvidas no corpo político.

“O próprio desvio é criado pela sociedade e a reação ao ato de alguém é o gerador do processo de rotulação” (BECKER, 2008, p.21).

O esporte que poderia ter conferido status a quem gostava de ir aos bailes para brigar, nunca chegou a esses lugares e poderia ter conseguido revelar muitos nomes se assim o fizesse. Os Mc’s que geraram um vulto de receita milionário às equipes de som, jamais conseguiram ascender socialmente. Através das redes sociais, é possível acompanhar as mobilizações em torno do combate à fome, o frio e afins. Contraditório ou não, os “selvagens” de ontem são hoje figuras importantes em plena pandemia, mostrando o quanto são importantes como organização social que arrecada cestas básicas e se esforça em levar dignidade para os menos favorecidos, quando esta obrigação deveria ser estatal, vide este post no Facebook (Julho. 2021). Os agentes da mídia que antes davam visibilidade negativa aos bailes de corredor, poderiam aproveitar para mudar sua posição de preconceito em detrimento de causas sociais no cenário pandêmico. No entanto, se isenta de falar sobre isso e a carta da vez é levar o funk para o lado pop onde não há voz para as mazelas e tristezas vividas nas favelas. Os corredores que ontem eram usados para expressar através da violência a autoafirmação de alguns, transformam-se em corredores que levam paz e dignidade em troca da visibilidade dos menos favorecidos. A sociedade manteve o rótulo sobre eles, mas os outsiders se mantiveram na luta contra o estigma que lhes foi conferido, mostrando no dia a dia que a maior selvageria é ter que lidar com a fome.

Comunidade, território e bailes de corredor

Montagem de “galera”

Luta livre é do Borel
Tailandês é o Usinão
Somos do bonde guerreiro e não aceitamos imitação
Com o 472 joga o Lado A no chão
O bonde dos pés gigantes
Na melô do macumbão
Usina cruel, 472 Borel

Na obra de Carvalho Franco (1997) há uma relação que demonstra que a parca integração com a sociedade mais ampla faz com que os frequentadores do baile de corredor encontrem nestes eventos uma forma mais livre de expressão. Nela, a violência opera como afirmação de princípios básicos de sociabilidade: como a amizade, a comunidade, o território e a honra. Os componentes da ralé trazem à luz os homens a rigor, que são dispensáveis e desvinculados dos processos essenciais à sociedade pois não ocupavam um lugar no mercado e nem nas relações dentro do latifúndio. E essa dispensabilidade faz com que esta camada não encontre canais institucionais e formais de apoio, seja em termos de justiça, de políticas públicas, assistência ou mesmo no mercado.

Se, há dois séculos, conseguimos observar que a violência se dava principalmente pela escassez de oportunidades de diversões independentes para aquela camada social, não há diferença ao observar o fenômeno aqui trazido (baile de corredor). Evocando o objeto científico deste trabalho para elucidar que os atores dos bailes funk de corredor querem se autoafirmar através da violência, temos esta magnífica obra que confere e explica esta forma cultural como um legado impresso ainda na imaginação de atores com meios de subsistência e de vida muito parecidos com os atores do início do século XIX. A produção da violência para a autoafirmação da pessoa se deu há séculos num cenário de abandono pelo poder público somado à falta de acesso a diversificação de outros meios de divertimento. O mesmo se percebeu no fenômeno que alcançou as favelas na década de 90 onde nos centros de sociabilidade, o desafio está presente, aparecendo novamente como o elo entre diversão e agressão.

“Amigos se metamorfoseiam em inimigos no curso da brincadeira que, insensivelmente, derivam para desavenças” (CARVALHO FRANCO, 1997, p.41).

Nos cenários onde há falta de acesso a meios de recreação civilizada, educação básica, recursos básicos de subsistência (responsabilidades estatais) etc. abre-se espaço para imperar a violência como meio de diversão entre os atores aqui trazidos desde os primeiros cenários de uma ordem de homens livres no contexto escravocrata.

Território e bailes de corredor (Lugar, consciência, pertencimento)

Trecho da música de Cidinho e Doca:

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”.

Trazendo à luz a etimologia da palavra território temos uma dupla conotação, onde o termo pode significar e estar ao mesmo tempo próximo de terra-territorium, quanto ao de terror-aterrorizar. Estando atrelada a dominação jurídico/política inspira terror/medo. E por extensão, o território se atrela ao significado de identificação ou apropriação para os privilegiados. Ou seja, território tem a ver com poder, onde o capitalismo se fundamenta na geografia da lógica estatal que controla as fronteiras empresariais (capital/espaço econômico e político) e em paralelo se mostra como um forte produtor de identidades. Tratando-se não só de ter, mas de ser. Neste caso, o território para além de ser político, através das relações culturais, também dá significado ao lugar e deixa de ser somente um componente do poder que se cria para se manter a ordem. “O indivíduo vive ao mesmo tempo ao seu nível, ao nível da sua família, de um grupo, de uma nação. Existe, portanto, multipertencimento territoria” (BAREL, 1986 p.135). O convívio de múltiplas territorialidades gera disputas, sendo assim lutas sociais convertidas em espaço diversos, culturais, sociais e políticos que produzem formas particulares de identidades territoriais.

“Pensar multiterritorialidade é a única perspectiva para construir uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas.” (HAESBAERT, 2004).

Trecho da música de Amilka e Chocolate:

“É som de preto, de favelado/ Mas quando toca, ninguém fica parado”.

Compreendendo a vida social também como um conjunto de sons e que os eventos sonoros expressam a cidade envolvendo a vida cotidiana e política, temos recursos argumentativos trazidos através do trabalho de Mendonça (2009) o cunho da ressignificação dos sons, que demonstra que é possível emergir todo o tipo de mensagem social desde a escuta do cotidiano até a expressão plena de poder e territorialidade. Para reforçar a ideia, há como exemplo o barulho do sino da igreja que transmite o seu recado demarcando a presença de domínio local, os eventos sonoros simples do dia-a-dia como consequência de ruídos sociais tais como os aeroportos, cartões de crédito,, e para além, traz os sons que nascem dos guetos como o rap e sons que alcançam as massas como os gêneros do pop e do rock.

É a música analisando a cidade, mas não se restringindo somente a ela, a partir do momento que cada som tem a sua importância e particularidade. Uma análise que soma os sons aos estilos e as formas de vida coletiva e dando como resultado o próprio conhecimento da vida urbana. O argumento de que a audição da cidade traz consigo uma imagem musical própria foi colocado nas entrelinhas para que se pudesse fazer um paralelo do retrato social, através do musical. Em que grau de hierarquia os sons estão organizados e a quem interessa determinados ruídos? A quem compete interpretar as metáforas sonoras do contexto urbano? São perguntas que o texto visa associar a antropologia sonora ao trazer uma atenção específica para diferentes vozes e significados das relações sociais. Ao afirmar que as sonoridades e ritmos transformam o estabelecimento da sociedade, que são marcadores de diferenças de espaço e cultura no meio das fronteiras das próprias cidades e ainda indicam múltiplas identidades, a autora expressa sua base de pensamento no âmbito do local como também do global. O MC Amilcka, autor do rap “som de preto”, colaborou com a pesquisa/trabalho aqui desenvolvido, dando sua visão dizendo:

“Eu sou Mc Amilcka, autor e intérprete da música Som de Preto. Vejo o movimento funk como uma forma de revelar um grito de liberdade, o funk sempre foi muito discriminado pois veio das favelas e morros do Rio de Janeiro. Um ritmo dos negros visto assim no início pela sociedade. Hoje essa barreira foi quebrada, negro, branco, pobre e rico, curtem e dançam funk. Ainda faltam muitas barreiras a serem quebradas. Mas o pior já passou e hoje somos cultura.”

Bailes funk/Resistência Cultural

O significado da festa, como contexto social que favorece as relações antagônicas, torna-se mais nítido quando se observa que ela é cenário conveniente às afirmações de supremacia e destemor: é a oportunidade para a realização de façanhas perante audiência numerosa e que tem em alta conta o valor pessoal. (CARVALHO FRANCO, 1997, p.40)

Como vimos, a década de 1990 ganhou nova roupagem e retomou os moldes de diversão por meio violento, como ocorrera no século XIX. Era quando a sociedade brasileira se estabelecia sem perceber a dominação e a subordinação presente até os dias atuais. Isso culmina em uma sociedade sem acesso a meios de integração com a ampla camada social para solução de seus eventuais conflitos básicos e que quer afirmar sua força a partir de meios violentos antes e depois. Esta mesma sociedade forjada no regime escravocrata transformou-se em um forte gerador da escravidão moderna e pode ser resumida como herança portuguesa onde há quem queira ainda, a partir dos seus próprios meios, insistir em combater. Os atores dos bailes de corredor, ainda que conscientes de suas ações, também veem o movimento como fonte de diversão, e não fazem ideia que estão reconfigurando o passado onde este mesmo comportamento foi fortemente adotado. Muito menos conseguem entender, assim como os antigos atores, o que os leva a recorrer a violência a fim de serem “fortes”. Isto revela o quanto a dominação pode resumir o homem à inércia e o quanto tais questões e referências são ainda questões abertas no Brasil, onde as condições de existência do homem pobre o induzem, no limite, a sua possível afirmação como pessoa.

Montagem de galera:

Andamos de Redley, viemos pegar mulher
Nilópolis, Chatuba é o bonde do Nike air
A Redley é tradição, do Nike todos gostam
A chatuba de Mesquita só veste o que está na moda

Nas montagens de galera é possível perceber em um sem número de músicas, o tambor, instrumento sagrado nos rituais da umbanda e dos cultos afro-brasileiros. Por meio do seu toque se estabelece a conexão com os orixás e foi pelo atabaque/tambor, presente nas montagens do funk, que percebemos sua forte influência de matriz africana. Em uma sociedade constituída no sistema de valores em que são altamente prezados a bravura e a ousadia, a ação violenta acaba por se tornar legítima e para além disso, imperativa. Antes, norteou a conduta dos caipiras, como visto na obra de Carvalho Franco (1997) e, no presente estudo nos dá norte e explicação para a compreensão do movimento funk de corredor. A maior parte do pano de fundo das montagens era o atabaque mixado, chamado de voltmix. O então voltmix era a base musical para que uma pessoa fizesse, em cima deste som, o seu grito de “galera”. Suas letras estão embasadas sempre em lutas, onde principalmente a capoeira tem forte presença. De forma inconsciente uma gama de pessoas, estão estabelecendo marcas africanas dentro deste movimento que acaba por também exprimir sua preferência pela cultura negra ou, até mesmo, a considerá-la como referência identitária. Em condições materiais de vida nas quais há um forte peso de desigualdade social, se estabelece por vezes a ignorância. No entanto, a característica do movimento visto pela elite como uma coisa, não impede que o grupo exerça sua luta em prol de manter suas raízes vivas ou de serem os ‘sobreviventes’ no cenário das etiquetas. O estilo de vida desses atores são também fortes geradores de riquezas quando o assunto é o mercado das indumentárias/roupas o que comove uma parcela da população/mercado a aceitá-los por conveniência. Relato de entrevistados contidos no survey:

(…) Através da roupa era possível reconhecer os funkeiros nas ruas, geralmente vestidos com roupas da Redley, Nike, Cyclone, bordados, botas e sandálias de marca. Nos bailes, alguns usavam protetor bucal, soco inglês e sungas da marca bad boy (indicando que eram “maus”).

Montagem de galera (atabaque e berimbau de fundo musical):

Aí compadre, tá ligado? Não tem pra ninguém não!
Só os guerreiros da capoeira, Boa Vista, Pedrinha e Abacatão
Vamos quebrar geral, só de mortal na cara dos otários
Pedrinha, Boa Vista, o Beco, Abacatão
Quarteto sinistro quebradores de “alemão”
Se ficar na minha frente eu não vou te perdoar
Somos do bonde guerreiro, o terror do lado A
Vanderley e Maycon, Leandro que dá rasteira
Pica pau é o terror, o mestre da capoeira
Bonde da realidade tá varrendo os “alemão”
Respeite a Boa Vista, a Pedrinha e o Abacatão

Na montagem dos guerreiros da capoeira (um clássico) que foi remixado com o nome de vários outros Bairros do Rio de Janeiro, é possível ver a forte tendência à aderência ao estilo africano, somado à necessidade de mostrar a cada galera a sua força em conjunto e individual. É possível notar que as letras das montagens, especificamente, demonstram em suas composições a soma de corpo e território. Pela parte do Estado não houve só perseguição e violência física contra esses atores, mas sonora. O silenciamento dos bailes funk de corredor não está somente ligado ao fato das brigas acontecerem em seu interior, isto está somado a um controle do território sonoro nos espaços urbanos, afinal o som é um meio pelo qual se produz espaços e acaba por estabelecer fronteiras invisíveis no tecido urbano e esse desfecho deságua na historiografia de uma antiga dominação estatal presente no ontem e no hoje. Estado esse que, através dos seus próprios ruídos, demarca ou desestabiliza territórios e atribui para si o único detentor do direito de produzir ruídos (helicópteros, bombas, tiros).

Trecho do rap dos Mc s Cidinho e Doca (Eu só quero é ser feliz):

Eu faço uma oração para uma Santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado e esculachado na favela
Já não aguento mais essa onda de violência

Considerações finais: Liberdade para todos nós, quebra dos grilhões/paradigmas

“Hoje tive um sonho, um sonho um pouco diferente. Eu sonhei, que todo mundo era gente” – Rap do sonho – MC Marcão e MC Davi

Elevando o estudo para as considerações finais, registro que o esforço em problematizar para compreender um movimento que durou mais de uma década consiste em manter vivo o espírito que não visa recordar, mas garantir que a memória não morra. E se há memória, que esta consista em revelar os mecanismos do movimento com o devido respeito aqui conferido, de forma científica e estratificada para a compreensão dos elementos que constroem o seu todo. “Precisamos ‘rejeitar’ o particularismo europeu fantasiado de universal” (GILROY, 2001).

Considerei criar um questionário onde algumas pessoas pudessem dar a sua colaboração neste trabalho. Ao todo 10 perguntas foram elaboradas e propositalmente perfis de diferentes papéis nos corredores dos bailes foram convidados a falar como enxergavam o movimento. São ex-integrantes das extintas galeras do Porto da Pedra, Boa Vista, Otto e Chatuba de Mesquita (São Gonçalo, Niterói e Baixada Fluminense). O survey foi desenvolvido para captar o sentimento dos frequentadores, como também firmar a visão que aqui trouxemos estabelecida dentro das ciências sociais sob o trabalho dos sociólogos citados, somando-se a empiria dos fatos. Os “personagens” são: uma mulher, um frequentador que não brigava, um líder de galera do lado A e um do lado B, um artista, um DJ, pessoas que eram linha de frente (mas não ocupavam liderança), uma pessoa que não foi (mas poderia ter ido), uma pessoa que não foi (mas gostaria de ter ido). As organizações dos lados A e B ainda existem e hoje estão nas redes sociais com o símbolo ‘GDA’ (Guerreiros das antigas), foi enviado o link do survey a esta rede onde também foram colhidos resultados que satisfazem o trabalho aqui elaborado quando reforça a visão que já fora desenvolvida.

A empiria deste trabalho se apoia no survey e há um link contendo todas as perguntas e suas respectivas respostas envolvendo os participantes no tópico ANEXO ao final desta obra. Os atores que compuseram o movimento, possuem legítimo lugar de fala. Bem como os trabalhos musicais visam trazer corpo e voz aos artistas. Isto segue versus a complexidade da aceitação do que é produzido no gueto frente às camadas sociais e ao aparelho estatal. A narrativa aqui trazida se encaixa em obras e parâmetros sociológicos e dialogam diretamente com outras frentes científicas, visando corroborar com registros, somados a diálogos que emergem da necessidade e da importância em dar liberdade e visibilidade à está forte e ainda firme expressão cultural que aquece corações saudosos e reprimidos. Abalar o tecido dos rótulos é função social, ainda que pareça utopia conseguir êxito neste campo. No entanto, a liberdade vem da quebra dos grilhões dos pré-conceitos que assombram e definem aquilo que é bom ou não.

Olhando para as letras, há gírias e dialetos que definem territórios urbanos dentro de uma sociedade com uma xenofobia e um racismo latente que, claro, quer repelir tudo aquilo que se julga estar a margem do bom senso estabelecido pela elite no cenário das etiquetas. No jogo ou luta pela disputa entre os lados A (representando o silêncio) e B (representando o ruído), no escopo social deixa claro que lado é mais poderoso. Um lado recrimina, limita, persegue, mata e faz barulho e o outro segue resistindo ou sendo silenciado. Um silêncio nos moldes coercitivos e com motivações políticas e territoriais. O baile de corredor acaba por perturbar uma certa estética/ética social e o funk de modo geral permanece perturbando. A exemplo disso, quando se completou um ano de pacificação do morro do Alemão, ofereceram à comunidade concertos de música clássica produzidos pela Orquestra Sinfônica Brasileira.

A diáspora Africana no Brasil se faz muito presente no funk e o silenciamento e preconceito em série se vê a partir desta linha para frente, uma vez que a multicultura africana (samba, funk, hip hop, umbanda, candomblé, capoeira…) sempre foram alvos do aparelho estatal que imprime na imaginação do ‘cidadão de bem’ que isto é feio, demonizado ou não civilizado.

Que este estudo seja lido como uma resposta a alguns padrões de vida social moderna que tudo racializa, principalmente quando se está anexada a ideia de tradição nesta área de crítica cultural, histórica e política. A história do funk de galeras e de corredor está sublinhada em partes, onde a primeira traz um survey com mais de 20 participantes somado a trechos de raps e montagens, que estão sendo explicadas no conteúdo das obras de (BECKER, 2008) no universo dos rótulos. Já os autores Haesbaert e Barel (2004) nas obras sobre territorialidade não dão clareza sobre o assunto tratado, pautado nas ciências sociais. O cenário da conjuntura política dos anos 90 junto a justificativa explicativa sobre o teor dos corredores e auto afirmação através da violência dialoga com o trabalho de Carvalho Franco (1997) revelando um estudo que comprova que a falta de políticas públicas gera a sede por violência como ocorrera há 1 século atrás no Brasil ainda colonial. Tudo isso somado a influência africana e a importância dos ruídos sociais que sempre possuem algo a revelar, como foi citado na obra de Mendonça (2009) e por Gilroy (2001) em Atlântico Negro, assinam que a memória é viva e o escravo é sublime, afinal mais do que escravidão há um povo rico em cultura e principalmente em dignidade.


Referências:

BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008.

CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. – (Biblioteca básica)

CYMROT, Danilo. Ascensão e declínio dos bailes de corredor: O aspecto lúdico da violência e a seletividade da repressão policial. Porto Alegre, v.4, n.2, p.169-179, 2012.

FERREIRA, Leonardo Castro. Movimento funk e política: uma busca pelo direito à cidade. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. 14,2011, Rio de Janeiro.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo, Ed. 34 (edição brasileira), 2001.

HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre, 2004.

MATTOS, Carla. Da valentia à neurose: Criminalização das galeras funk, ‘paz’ e (auto)regulação das condutas nas favelas. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, p. 653, 2012.

MENDONÇA, Luciana Moura. “Sonoridades e cidade” in Carlos Fortuna e Rogério Proença Leite (org.), Plural de cidade: Novos léxicos urbanos, 2009.

SILVA E SILVA, Maria Ozanira. Pobreza, desigualdade e políticas públicas: caracterizando e problematizando a realidade brasileira. Universidade Federal do Maranhão. Rev. Katál. Florianópolis v13 n. 2 p. 155-163, 2010.

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