Quando o rap remixa a revolta

No álbum “Roteiro para Aïnouz 2”, Don L se torna um (an)arquivista: revira os símbolos da história, traz à tona rebeldes populares e escancara as fissuras da narrativa oficial. Além disso, fala aos cristãos através de um Jesus humano e revolucionário

Foto: Larissa Zaidan/divulgação
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Por Karoline Lima para a coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Este texto foi publicado originalmente com o título “O rapper anarquivista: Roteiro para Aïnouz 2, de Don L” no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), em sua Coluna Primeiros Escritos, que tem a curadoria de Caroline Tresoldi e Rennan Pimentel. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Construir em um tempo em que não há saídas nem respostas é justamente construir as respostas e as saídas de um novo tempo (D’Andrea, 2013).

“O arquivo é um território de disputa, pois controlar o arquivo significa controlar a possibilidade de enunciação e, em última instância, a construção de uma realidade”, diz o Indicionário do Contemporâneo (2018, p. 22) no verbete “Arquivo”. Nesse sentido, é possível identificar no Brasil atual uma disputa ferrenha sobre a narrativa em voga a respeito da história (a oficial, a que consta nos livros e é ensinada nas escolas) do país. Há alguns anos, em distintas manifestações culturais e artísticas, vê-se o (re)contar dos “versos que o livro apagou” pelo olhar dos marginais, pelo olhar dos excluídos, vide, por exemplo, o aclamado enredo da Estação Primeira de Mangueira, em 2019, História para ninar gente grande. Trata-se não só de contar a história de personagens importantes que foram desprezados, mas, sobretudo, da (re)constituição de uma história “oficial” do país. Para usar as palavras de Phillipe Artières em “Arquivar a própria vida”, essa reconfiguração do arquivo estabelecido para contar a história do Brasil “desafia a ordem das coisas, a justiça dos homens e o trabalho do tempo” (Artières, 1998, p. 31).

Mais do que “narrar o horror”, para usar a expressão de Bortoluci, é preciso também pensar formas de subvertê-lo, manter afastada a possibilidade de repetição. A barbárie como modus operandi é um traço característico de nosso país que precisa ser aniquilado. Nesse sentido, autores pertencentes ao que se chama hoje de Literatura Marginal [1] têm tomado para si a responsabilidade de narrar as lacunas dessa história.

Dentre eles, Don L insurge como uma voz a ser ouvida e amplificada. “O último bom malandro”, um dos vulgos pelo qual é conhecido, Gabriel Linhares da Rocha – o Don L – de 42 anos, é “mais um nordestino em êxodo” (Don L, 2012). Em atuação como rapper e compositor desde 2004, tendo passado pelo aclamado grupo Costa a Costa, há alguns anos segue carreira solo. Seu segundo álbum, Roteiro para Aïnouz 2 (2021, a partir de agora referido como “RPA2”), foi lançado de maneira independente e conta com 17 faixas, sendo 4 delas interlúdios.

O álbum, tão aguardado pelo público do hip-hop,[2] após o primeiro lançamento da trilogia reversa, que começa com Roteiro para Aïnouz 3 (2017), conseguiu surpreender muito. Ambientando o ouvinte em um contexto de revolução socialista, o rapper, assim como o mencionado enredo da Estação Primeira de Mangueira, através de suas letras, leva ao conhecimento do público ouvinte diversos acontecimentos e personagens propositadamente subtraídos da historiografia oficial – ou contados somente pela ótica dominante. Estas são o objeto de nossa análise.

Don L traz à tona a Guerra dos Canudos e o Quilombo dos Palmares em vila rica (2021), o comunista revolucionário brasileiro Marighella em a todo vapor (2021) e o comunista revolucionário Lênin, principal liderança da Revolução Russa de 1917, em enquanto recomeça (2021). Em pânico de nada (2021), o autor vai além, fazendo menções a diversas personalidades diferentes em uma única faixa, como o revolucionário argentino líder da Revolução Cubana Che Guevara; o líder revolucionário e ex-presidente de Burkina Faso Thomas Sankara; a ex-membra do Partido dos Panteras Negras Assata Shakur, procurada como uma das maiores terroristas do mundo pelo FBI e exilada há quatro décadas em Cuba; Túpac Amaru II e Micaela Bastidas, revolucionários indígenas peruanos que conduziram uma insurreição contra a metrópole espanhola em 1780; e Xangô, orixá da justiça e do fogo, proveniente da cultura iorubá, cultuado no Brasil em religiões de matriz africana, como o candomblé.

Em volta da vitória (2021), uma das faixas mais emocionantes do álbum, o rapper oferece uma discussão à parte. Don L menciona, além de Ajuricaba e Cacique Piquerobi, líderes indígenas manaó e tupiniquim, respectivamente, outras duas figuras particularmente importantes: dois militantes fundamentais na história da luta contra a ditadura militar de 1964. Nos versos “um brinde por Amaro! / um brinde por Aleixo!”, Don faz referência aos dirigentes do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e das Ligas Camponesas em Pernambuco Amaro Luiz de Carvalho, o Capivara, e Manoel Aleixo da Silva, o Ventania, ambos torturados e mortos pela ditadura militar, trazendo à tona um debate fundamental na sociedade brasileira, sobretudo quando falamos de memória: a luta pela reabertura da Comissão Nacional da Verdade, que encerrou atividades em 2014.

Se pensarmos nos arquivos (ainda) não abertos da ditadura brasileira. Os arquivos sobre a morte dos desaparecidos, sobre as circunstâncias em que suas vidas foram aniquiladas: são arquivos em vácuo. São arquivos que, ao mesmo tempo, existem e não existem. Seus arcontes afirmam, reiteradamente, que eles foram destruídos. Essa denegação acaba por produzir um outro discurso, notadamente de pesquisadores, de setores progressistas da sociedade brasileira e dos familiares das vítimas da ditadura, que clamam pela abertura dessa massa arquival cujo conteúdo, ou mesmo a falta deste, atesta aquilo que se quer negar: desaparecimentos são assassinatos promovidos pelo Estado, crimes de lesa-humanidade (Brum, 2018, p. 275).

Pois bem, começando pelo começo… Em vila rica, faixa introdutória de RPA2, Don L utiliza o episódio da Revolta de Vila Rica, ocorrida durante o Ciclo do Ouro, em 1720, iniciada devido ao aumento na cobrança de impostos pela coroa portuguesa à época, para suscitar diversas questões pertinentes. O rapper assume o ponto de vista de um participante da revolta e narra seu plano:

Na trilha pra Vila Rica
A tomar todo o ouro que eu preciso
Saquear engenhos no caminho
Matar os soldados do rei gringo
E nunca poupar um sertanista
É disso que eu chamo cobrar o quinto


Num bate de frente que o bonde tá bolado
Na mata fechada de tocaia
Uns caras de isca, as minas de carabina
O terror dos bandeirantes
Trombou com nossa cavalaria, chacina (plow)

Como se sabe, após semanas de confronto, o governador à época fechou negociações falsas e, baixadas as armas dos rebeldes, mandou prendê-los e incendiar suas casas. Don L, em uma analogia com a atual guerra ideológica firmada entre o fundamentalismo religioso neopentecostal e o que chamamos democracia, expõe o absurdo:

Depois do massacre ergueram catedrais
Uma capela em cada povoado
Como se a questão fosse guerra ou paz

Mas sempre foi guerra ou ser devorado
Devoto catequizado
Crucificar em nome do crucificado

Seu Deus é o tal metal, é o capital
É terra banhada a sangue escravizado

Jesus nunca estaria do seu lado
Não estaria do seu lado

Jesus não estaria do seu lado
Faria mais sentido estar comigo
Jesus não estaria do seu lado
Faria e faz comigo a justiça (grifos nossos)              

E proclama vitória, ainda que não completa, anunciando que ela chegará…

Já foi uma revolução
Agora é vingança na ponta do cano do bandido
Eu chamo cobrar o quinto
E ainda virá uma revolução
Eu juro pela fé do seu Cristo
Um chumbo no peito que leva o crucifixo (plow! Aleluia!)

Em todo o álbum há uma crítica severa, e irônica, ao colonialismo brasileiro, que tem como base o cristianismo. Três dos quatro interlúdios presentes no disco, além de sobreposições na música pânico de nada, são trechos de uma das pregações do pastor pentecostal Junior Trovão, ali transformadas em um discurso de impulso à revolução. Um trabalho preciso de deslocamento e refuncionalização:

Você tem que entender que enquanto você não for capaz de contar a sua história, sua história vai virar uma piada na boca do Diabo, sua história vai virar uma peça teatral pro Diabo apresentar e fazer você chorar! Agora o dia que você fizer as pazes e contar. E morreu? – Eu morri mesmo. Mas você tem que lembrar: ao terceiro dia, ressuscitei, eu vivo, é a minha história, eu carrego ela! Quem tá me entendendo levanta a mão e dá um glória… da vitória! (interlúdio 1, 2021).

Em pela boca (2021), rompendo o ciclo do poder hegemônico, o artista transgride a narrativa instaurada pelo domínio do arquivo histórico brasileiro que há muito incute, através da mídia e dos aparelhos ideológicos, uma visão distorcida da violência e do comportamento responsivo dos oprimidos:

Eles que mataram, escravizaram, torturaram na cela
E confinaram na favela (milhões nossos)
Depois querem recontar a história
E me negar os fatos
Eu prefiro recontar os corpos
Pra gente medir o estrago
Se quiserem me negar os fatos
“Magina” se iriam dividir os pratos
“Magina” se iriam dividir a plata
Eu prefiro recontar os corpos
Pra gente medir o estrago (grifos meus)

E em pânico de nada (2021) ficcionaliza uma concretização dessa revolta, o ápice de tudo que foi idealizado ao longo do álbum:     

Então finalmente chegou o dia
Surpreendente pra quem não acreditou
Que um dia calaria
Na base da bala suas mentiras
[…]

Vender uma droga (feito)
Comprar umas armas (feito) (Como disse Josué, como disse Calebe)
Roubar os bancos (feito)
E mais armas
Usar as armas e roubar as armas
Render os polícias e abrir as grades
Tomar o quartel e render os guardas
Chamar o povo e tomar a cidade (grifos nossos)

“Nesse sentido, anarquivar pode ser lido como um ato de resistência e até de desobediência. Anarquiva-se para contrapor, questionar ou tornar visível algo que os arcontes – os donos do poder, aqueles que detêm o arquivo – querem esconder” (Brum, 2018, p. 274-5). Don L, em RPA2, não só reorganiza, mas anarquiva os arquivos brasileiros para narrar o horror, a insurreição e a resistência. De Vila Rica a Élewood, ele escreve uma nova história para o passado brasileiro utilizando as lentes marginais – e revolucionárias – para despertar nossa imaginação e esperançar outro futuro possível.

Eu num vim só mudar o jogo (fala, pai)
Vim saquear a cidade toda (que mais?)
Cobrar a parte do meu povo (fala pra eles)
(Don L, élewood, 2021)

Notas

[1] Mestranda em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[1] Em linhas gerais, no contexto contemporâneo, chama-se Literatura Marginal a literatura feita por minorias, em diversos sentidos: em dimensão socioeconômica, racial, de orientação sexual, identidade de gênero e espaço geográfico – seja de forma micro, como a periferia, seja de forma macro, como pessoas advindas das regiões Norte e Nordeste, espaços geralmente esquecidos pela indústria cultural e fonográfica. “Para os autores da periferia, a utilização desta categoria condiciona o seu uso enquanto um importante lócus identitário que possibilita a afirmação de uma postura política” (Patrocínio, 2013, p. 32; grifos nossos).

[2] À expressão musical rap, aqui, será dado o tratamento de “produto discursivo” ancorado na Literatura Marginal, que, como constatado pelo professor Paulo Patrocínio (2013, p. 129-30), reúne “um número expressivo de autores que participam diretamente da cultura hip-hop, seja como rappers ou ativistas do movimento, oferecendo, assim, a este movimento literário uma feição própria.”

Referências

ANDRADE, Antonio et al. (2018). Indicionário do contemporâneo. PEDROSA, Célia et al. (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG.

ARTIÈRES, Phillipe. (1998). Arquivar a própria vida. Estudos históricos, v. 11, n. 21., p. 9-34.

BORTOLUCI, José Henrique. (2023). É preciso narrar o horror. Folha de São Paulo, 22 abril 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/e-preciso-narrar-o-horror.shtml?pwgt=l06v5pk7z2fxhq3jugrj6b8tdjolx9sxwh9i1k8fkmgdoflu&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift. Acesso em: 28 abril 2023.

BRUM, Liniane Haag. (2018). O documentário (auto)biográfico como arquivo da ditadura brasileira: em busca de um método. Revista do Seta, v.8, p. 272-283.

D’ANDREA, Tiarajú Pablo. (2013). A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do (2013). Escritos à margem: a presença de autores da periferia na cena literária brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj.

Discografia

ÉLEWOOD. Compositores: Don L, Deryck Cabrera, Nave e Luiza de Alexandre. In: Roteiro para Aïnouz 2. [S.l]: DonLMusic, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2lgOcnFw9co. Acesso em 18 junho 2023. 

ÊXODO E ÊXITO. Intérprete: Don L. [S.l], Viagens Espaciais TRIP’S, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_QukAQ0DRs4. Acesso em 18 junho 2023.

HISTÓRIA PARA NINAR GENTE GRANDE. Compositores: Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino. [S.l]: Estação Primeira de Mangueira, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JMSBisBYhOE. Acesso em 18 junho 2023.

INTERLÚDIO 1. Produção: Don L. In: Roteiro para Aïnouz 2. [S.l]: DonLMusic, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?si=yxCbYvBXtFgtRcG1&v=2S0nG_uMUrY&feature=youtu.be. Acesso em 08 junho 2023.

PÂNICO DE NADA. Compositores e intérpretes: Don L e Nave. In: Roteiro para Aïnouz 2. [S.l]: DonLMusic, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I1GCdQOY1Vw. Acesso em 18 junho 2023.

PELA BOCA. Compositores e intérpretes: Don L, Nave e Fabriccio. In: Roteiro para Aïnouz 2. [S.l]: DonLMusic, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kfkcyHvOZCo. Acesso em 08 maio 2023. 

VILA RICA. Compositores e intérpretes: Don L, Nave e Mateus Fazeno Rock. In: Roteiro para Aïnouz 2. [S.l]: DonLMusic, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jUYvqBCWncY. Acesso em 14 junho 2023.

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