WikiFavelas: Nos slams, a voz insubmissa das quebradas

Dicionário Marielle Franco radiografa batalhas de poesia marginal. Como elas borram fronteiras entre arte, cultura e política. A “responsa” de jurados e poetas. Por que são espaços de cura e solidariedade, apesar da competição

Final do Slam SP, vencido por Cinthya Santos, a Kimani. Imagem: Sérgio Silva
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“A cultura é uma necessidade invisível. Ninguém fala, ninguém faz… mas quando alguém faz a coisa se alastra” (Mauí)

Cultura é a linguagem, a estética, o cotidiano, os vínculos e as produções coletivas que representam a sociabilidade de um grupo (ou povo). E, como parte da cultura de favelas e periferias, sujeitas e sujeitos periféricos têm criado formas autênticas de arte e denúncia a partir das brechas deixadas pelo Estado. Em seus trabalhos, Tiaraju D’Andrea, por exemplo, conta essa história de afirmação e positivação da identidade das juventudes faveladas e periféricas. Tais identidades são construídas cotidianamente mais além da polarização entre carências e potências, e se concretizam sob a forma de manifestações culturais e estéticas que problematizam questões de classe, raça e gênero. São múltiplas as formas em que essas questões são abordadas em letras de música e dança, numa estética poética própria ligada a movimentos como o hip-hop e o funk, e chegam, dentre outros tantos formatos, até as batalhas de slams e do passinho.

O premiado filme SLAM: Voz de Levante, das diretoras Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’alva, apresenta o fenômeno dos “poetry slams” americanos e sua recepção na cena brasileira desde 2008. O documentário registra o crescimento das Batalhas de Slam no Brasil e acompanha a campeã brasileira de 2016, Luz Ribeiro, até a Copa do Mundo de Slam em Paris, representando a nova onda feminista e negra que tem feito dessa manifestação artística um veículo de politização no campo popular.

De fato, apesar das dificuldades envolvidas na ausência de incentivo e valorização da cultura favelada e periférica, movimentos culturais proliferam-se movidos principalmente pela ambição de superar o imaginário social de favelas e periferias como lugares de carência, reafirmando-os como espaços de resistência e potência. É o que contam algumas e alguns dos artistas com os quais o Dicionário de Favelas Marielle Franco conversou nos últimos anos.

Na live Cultura e Políticas nas favelas e periferias (Live), que integra a série Favelas em Movimento, organizada entre 2020 e 2021, Andrea Bak, multiartista e estudante de química, fala dos aprendizados que atravessaram sua participação nos grupos de Rap Neftaris Vandal e no coletivo Slam das Minas RJ. Segundo ela, a arte chegou na sua vida a partir de uma ação política, quando em 2017, no contexto dos movimentos de ocupação das escolas de ensino médio da rede pública, ela – então estudante da Faetec – conheceu o Movimento de Slam. “O movimento social me levou ao movimento cultural e hoje eu não consigo fazer um sem fazer outro”, diz ela.

Andrea explica que o movimento slam surgiu nos EUA e, ao chegar no Brasil, acabou tornando-se um fenômeno entre a juventude, principalmente a juventude de favela. Os temas das poesias declamadas e interpretadas nesses espaços reivindicam a vida da população preta e de todas as minorias. Ela destaca, ainda, que em 2018, no contexto da mais conturbada eleição política da história recente, o movimento slam foi essencial para recuperar aquela juventude que estava sendo manipulada pelas ideologias fascistas a partir da onda das fake news. Diante da enxurrada de (des)informações das redes sociais, as batalhas de slam de bairros e favelas promoveu, na prática, uma disputa de narrativas, possibilitando a troca de informações e a defesa de valores ligados aos direitos humanos. Tudo isso através da fala, das rodas, do olho no olho – “ou seja, na nossa linguagem”, completa Andrea.

“A cultura é um agente transformador, tanto para expressar e vomitar o que às vezes tá sufocando, quanto pra se conscientizar, pra se organizar” (Andrea Bak)

Cria do morro da Caixa D’água, em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, Sabrina Azevedo é mais uma artista que começou a movimentar seu território porque viu que existia um vazio cultural no lugar, e descobriu no slam uma forma de combater o racismo. Na Live Cultura na Periferia, que integra a série Favelas, pandemias e cidadanias (um projeto conjunto da Universidade da Cidadania da UFRJ, do Urbano – Laboratório de Estudos da Cidade do IFCS/UFRJ e do Dicionário de Favelas Marielle Franco), ela discutiu ao lado de Oberdan Mendonça, de Realengo, e de Mauí, de Duque de Caxias, a importância e os desafios da juventude promotora de cultura nas favelas e periferias.

Sabrina se autodenomina “artivista” e destaca que foi através da poesia e do stand up que começou a se entender como mulher preta, com uma ligação com a favela. Foi politizando o seu discurso para brancos e pretos que ela começou a desconstruir o chamado “racismo recreativo” da maior parte das piadas mais comuns na sociedade, e entendeu que nunca foi tímida: na verdade ela estava silenciada. Seu ativismo é fazer a galera “pegar a visão” através de um humor de qualidade e antes de tudo, antirracista.

Sabrina destaca que os investimentos em cultura geralmente não são direcionados para a zona oeste do Rio de Janeiro, e que diversos movimentos já tentaram ser implementados, mas acabaram sendo interrompidos. Ela diz que tomou a iniciativa de movimentar culturalmente a região da Taquara e logo percebeu que “envolver a molecada” é um ato de resistência que vale a pena e logo se multiplica. Para Mauí, os movimentos culturais começam com poucos, mas logo se deparam com uma demanda muito maior de pessoas interessadas. E destaca: “fazer cultura é uma luta emocional, financeira… é uma quebração todo dia na cabeça do jovem”.

É neste sentido, por exemplo, que Marcos Campos discute a vida das juventudes periféricas como um “entre-slams”: o sociólogo reflete sobre a experiência de um poeta periférico a partir de sua fala, que destaca a centralidade do slam na interpretação do ritmo de sua vida. Isto é, as batalhas de slam possibilitam a inserção da vida cotidiana em uma temporalidade particular e produtora de horizontes de futuro. A arte é também “trampo”, “cura”, “responsa” e faz parte do “corre” de sujeitas e sujeitos que sistematicamente têm sido jogados em um mundo sem trabalho e sem muitas expectativas. E, para trazer um pouco mais dessa reflexão e do cotidiano dos “corres”, destacamos o verbete “Batalha de slam”, produzido por Marcos Campos para o Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução e seleção: Dicionário de Favelas Marielle Franco)

Batalha de Slam

As batalhas de slam são competições de poesia, realizadas no espaço público, em roda e de forma gratuita. Apesar da existência de variações em seus formatos, a sua maior parte compartilha três características formais: os poemas devem ser de autoria própria da pessoa que recita; estes devem ter no máximo três minutos de duração; é proibido o uso de figurinos, adereços e acompanhamento musical. Cinco pessoas são escolhidas entre o público para compor o júri, responsável pela atribuição de notas individuais, considerando apenas palavra e performance. Idealmente, ao final de três rodadas, busca-se uma pessoa vencedora.

Como são as batalhas de slam

Produzido e com participação de uma maioria de jovens negros e negras poetas (a inflexão de gênero “poetisa” é muito pouco empregada pelas mulheres participantes do circuito para se autodenominarem), moradoras de favelas, periferias e subúrbios, nas batalhas de slams recita-se as chamadas poesias marginais. Esta refere-se à produção literária (e performática) advinda de pessoas com vivência subalterna, com o objetivo de estetizar suas próprias experiências coletivas racializadas, generificadas, sexualizadas e territoriais sob a forma de verso falado e escrito, explorando e investigando possibilidades de autorrepresentação contra-hegemônica. No Rio de Janeiro contemporâneo, estas competições se organizam em um circuito que não é territorialmente fixo, mas, em geral, itinerante ao redor de praças, atos, vagões de trem, metro, barcos, ônibus BRT, vielas, quadras, lajes, favelas, loteamentos irregulares, subúrbios, periferias, instituições culturais, festas, eventos culturais, escolas, universidades e redes sociais.

Em geral, quando se pensa nas batalhas de slam, rapidamente, pensa-se nas relações entre cultura e política desde as favelas e periferias. Isto é especialmente importante no período contemporâneo, quando se atenta para o deslocamento de conteúdo e forma das lutas urbanas desde os mais jovens e as novas gerações. É ponto pacífico que, atualmente, os jovens moradores de periferia e favelas entraram na cena pública como “periféricos” através de outras formas de organização (como os coletivos, e não movimentos sociais tradicionais ou partidos políticos) que borram as fronteiras entre arte, cultura e política, ao mesmo tempo em que centram o eixo de suas reivindicações e palavras de ordem em torno dos debates sobre o racismo, o machismo, as opressões contra pessoas LGBTQIA+ e ao direito à cidade. De tal maneira, a principal leitura que se realiza sobre os slams é vinculada a esta interpretação.

No entanto, a diversidade de sentidos atribuídos pelos poetas, público e slammasters e as relações criadas nas batalhas transcendem qualquer leitura desta heterogeneidade apenas como “politização”, “luta” ou “ativismo da juventude”. Quando estes jovens estão fazendo slam, eles estão concretizando muitas outras coisas também, para além do enfrentamento de narrativas hegemônicas opressoras. As batalhas de slam e seu circuito são também espaços de “gastação”, competição, troca e compartilhamento de experiências, “trampo”, “responsa”, possibilidade de ganho de dinheiro, “cura”, gestão das incertezas da vida cotidiana e, ainda, de produção futuros e de projetos de vida. Tudo junto e misturado em vidas no “corre”. É sobre esta heterogeneidade de práticas e sentidos que este verbete se debruça, escrito a partir da pesquisa etnográfica realizada em minha tese de doutorado em sociologia “Sobre o corre da arte: uma etnografia dos futuros vividos e do ganhar a vida no Rio de Janeiro”, defendida no IESP-UERJ em 2022.

A vida é um entre-slams”

A frase de Kaya Matheus, um poeta marginal e homem negro cis, é elucidativa de um aspecto fundamental das batalhas de slams: “A vida é um entre slams. Essa conversa é um entre-slams. Tudo o que envolva o slam de alguma forma, que não seja o slam de fato, é o entre slam”. A reflexão do poeta sobre sua experiência atribui ao slam uma centralidade na forma como ele interpreta o ritmo de sua vida. Isto é, as batalhas de slam trazem a possibilidade da inserção da vida cotidiana em uma temporalidade particular e produtora de horizontes de futuro.

No início do ano, começam as primeiras competições de poesia. A cada batalha, uma pessoa vencedora é escolhida. Com o passar dos meses, há várias oportunidades para se ganhar e acumular títulos. As batalhas de slam funcionam em um circuito piramidal que é articulado entre os níveis municipal, estadual e nacional. Para enviar uma pessoa vencedora para as competições estaduais, há um mínimo de edições necessárias que cada slam precisa realizar ao longo do ano. O Slam RJ leva à possibilidade de disputar o título nacional no Slam BR, realizado anualmente em outubro em São Paulo. Finalmente, ganhar a competição nacional leva os poetas à Paris, na França, para competir no torneio internacional. Nesse circuito, avançar etapas promove o acúmulo de visibilidade (uma preocupação e palavra frequente enunciada pelas pessoas que participam das competições) e a criação de vínculos, mas também a possibilidade de ganho de dinheiro. A partir do Slam RJ, há cachê para vencedores e vencedoras. E no Slam BR, cachê e ajuda de custo para o deslocamento à São Paulo, aos poetas individualmente, e não aos coletivos de slam. Raramente, os outros slams da base da pirâmide dão premiação na forma de dinheiro. Além, é claro, da possibilidade de vender livros e zines nestas competições aos outros participantes e público. Isto significa que, diferentemente do que geralmente tem se discutido no debate público acerca dos slams, estes são também eventos marcadamente econômicos.

Correndo juntos: entre o “vencer” e o “estar juntos”

O envolvimento de poetas marginais vai além de relações com apenas um slam, mas se dá, sobretudo, pela circulação em vários deles. Fazê-lo é uma forma de “correr juntos”. Participar de diferentes competições é necessário, incentivado e valorizado no “corre” da poesia, como uma forma de construir o circuito. “Correr juntos”, por outro lado, não significa renunciar ao próprio “trampo” individual. Aliás, esta separação entre o “trampo individual” e o “trampo coletivo” nos slams (e entre coletivos de poesia marginal em geral) é fundamental, e frequentemente marcada. Foi assim como muitos com os quais convivi se projetavam e singularizavam suas imagens não só como poetas marginais, mas como artistas e, simultaneamente, construíam a cena de slam, de modo a não deixar que parasse de girar a roda de “trampos”, mas também as trocas de ideias, a militância, a “gastação” e as “curas”. Há consciência de que sozinhos e individualmente, não seria possível projetar a vida através da poesia marginal. Isto não vem, todavia, sem gerar tensões e conflitos sobre como fazê-lo. “Correr juntos” não é sinônimo da noção de “comunidade”, mas mais próxima à de “vida coletiva”, o que não implica qualquer ideia de consenso. Ao invés disso, enfatiza que o coletivo é plural e não necessariamente acordado, mas apenas compartilhado em suas contradições, ambiguidades, multiplicidades e parcialidades. A diversidade é um de seus recursos centrais.

Nesta circulação entre diferentes slams, os e as poetas marginais navegam na trama da coexistência de dois valores que organizam as formas de participação das pessoas que competem nas batalhas de slam. Por um lado, o primeiro deles se faz visível na estrutura formal destes eventos: a competição, hierarquização, diferenciação e premiação de performances e poesias, mediadas pela quantificação das notas pelo júri escolhido no momento. Apenas uma pessoa vence a competição. E acumular títulos fornece possibilidades econômicas. Por outro lado, o outro valor refere-se a alguns dos sentidos das experiências dos e das poetas em estar juntos, trocar entre si e expurgar o sofrimento cotidiano ali, que se articula com e tensiona a competição. Para compreender as batalhas de slam não é possível ignorar que os e as participantes fazem competições, querem vencer e, ao mesmo tempo, criticam a competição e quem busca vencer.

A oposição entre o “vencer” e o “estar junto”, em contínuo desequilíbrio e relacionados pela diferença, atravessa as competições e as formas estéticas ali praticadas. Aspectos desiguais, mas indissociáveis destes espaços. Um par de tipos poesia nomeia as expressões estéticas dessa tensão nos slams: as “poesias de protesto” e as “poesias de amor”. Performar um antagonismo, confronto aberto e diferença em palavras e no corpo, ocupando o espaço aberto pela roda com o inimigo é protestar. As primeiras são reconhecidas por “ganhar slam”. Já as segundas recebem pouca atenção do público, não produzem o confronto e recebem menores notas.

A “responsa” dos jurados

Geralmente se descreve as batalhas de slam como competições onde as notas podem variar de 0 a 10, atribuídas por um júri selecionado na hora. Todavia, na prática, as notas nos slams não chegam a variar tanto assim. Pelo contrário, na maior parte das competições em que participei, as notas pouco variavam entre 9,5 e 10. É a ideia de “responsa” dos jurados que nos permite compreender os sentidos e como se produz esse outro intervalo de notas nos slams.

Um primeiro aspecto digno de nota é o de que poetas não só representam a si mesmos nas competições como indivíduos, mas procuram vincular-se a experiências coletivas múltiplas. Tendo isto em vista, com “responsa”, uma qualidade valorada positivamente nos slams, um ou uma jurada deve dar “notas altas” (o intervalo, mais ou menos, entre 9,5 e 10) para valorizar as expressões estéticas de todas as experiências coletivas subalternas processadas nos slams, onde a vitória de alguém ocorreria por uma mera diferença de poucos décimos entre as diferentes notas. O resultado surge no rito, então, como mais aleatório e, simultaneamente, reduz a responsabilização individual dos jurados pela diferenciação, todavia, sem exaurir seu senso de agência.

Por outro lado, o desdobramento do controle moral dos jurados, mediado pelo imperativo ético e político de responsabilidade frente aos produtos artísticos apresentados pelos competidores, alavanca uma contradição no plano da experiência. A desvalorização do destaque individual, pelo valor do “estar juntos”, traduzido no controle moral dos jurados e, por sua vez, no achatamento dos intervalos de diferenciação entre os poetas, leva ao acirramento da competição e da ansiedade pelo resultado. Isto pois, a vitória, neste caso, é definida por poucos décimos de diferença. Em mais de um slam presenciado por mim foi necessário que poetas tivessem mais do que três poesias para recitar, pois, ao final da terceira chave, não tinha sido possível definir quem havia vencido com o conjunto de notas atribuídas pelo júri. Para evitar essa situação, os slammasters, com frequência, ao informarem os jurados sobre a dinâmica das competições, insistem para que eles atribuam “notas quebradas” às performances. Afinal, o slam só acaba quando alguém vence.

O slam não é só uma competição”

As poesias não são qualquer produto do “trampo”, mas vividos como produtos da intimidade. Expor o íntimo, mediado pela escrita, e receber “notas baixas” promovem o sentimento de desvalorização do próprio “trampo”. Participando das batalhas de slam, as e os poetas colocam-se continuamente sob o risco desta desvalorização de um possível jurado sem “responsa”. Um dos versos de Dorgo, um artista e homem branco cis, trata desta dimensão, quando o tratamento destas experiências individuais se torna competição entre poetas (“machucar os poeta”). Um de seus termos para caracterizar esse envolvimento é, de forma contraintuitiva, “militância”. Esta refere-se a um modo de envolvimento nos slams de forma descolado do valor do “estar junto”, cujo objetivo seria obter “notas altas” e grandes reações do público (os gritos), como diz o poeta, “ao mandar se fuder”. Pelo contrário, a “militância”, à luz do valor do “vencer” diferencia, hierarquiza e separa. Esta se opõe à ideia de “cura”. “É fudido fudendo fudido”, como diz Dorgo na mesma poesia “Poesia pra ganhar slam”, onde critica esta lógica. A vitória tem um caráter transitório, já o valor de estarem todos juntos ali reside em seu potencial de “cura”, particularmente em situações vividas como crise. A poesia de Dorgo, neste sentido, instancia formas particulares de gerir a incerteza, articulando desigualmente duas esferas de valor. Ao fazê-lo, ele afirma algo sobre o estado do mundo, no qual o futuro é incerto, sobre as atitudes adequadas àqueles que vivem nele.

A crítica à prática da “militância”, todavia, também é articulada em relação a outra referência nos slams. Como é frequente em algumas reflexões dos participantes, esta tornaria as competições tediosas, monotemáticas e organizadas em torno das categorias acusatórias dos “textões de Facebook”, e “poesias panfletárias”. Usualmente, este tipo de verso, tendo em vista a relação do público, são chamados de “punch line”. Nestas críticas, não se trata aqui de reivindicar o valor do “estar junto” no slam, mas sim da poesia enquanto uma forma de arte, superando a oposição dos valores de “estar junto” e “vencer”, mas sim de que, como disse-me um poeta marginal: “a arte é livre”.

Por outro lado, há aqui outro aspecto do envolvimento dos slams que também contribui para a compreensão da responsabilidade ético-política dos jurados. As pessoas também buscam o slam como um lugar de “cura”. Os e as poetas não querem apenas “serem vistos”, mas também “serem ouvidos”. Continuamente, para algumas pessoas, o trauma individual, processado na forma estética, é tratado na experiência coletiva das competições. Ao fazê-lo, os slams geram, temporariamente, o bem-estar dos nervos para o dia seguinte. “Estar juntos” e “curar-se” pelo ritual de valoração das poesias dá energias para seguir no “corre”. Ademais, a escrita impulsionada pelos slams também intensificam um processo de “refazimento de si” e elevação de autoestima. Como me disse a poeta Maria Duda, uma mulher cis negra, foi no slam onde ela teve seu “afrosurto”, o momento em que se deu conta de todas as violências que incidem sobre o corpo negro, gerando um forte sentimento de ódio e raiva.

Correndo slam como poeta marginal: vivência e lugar de fala

Finalmente, a ideia de “responsa” também recai sobre os e as poetas marginais que competem nos slams. Como me disse um poeta marginal, “a gente fala uns bagulho pesado ali, e se não for verdade? Pra que tá falando? Tem que sustentar teu palco. É tipo, várias responsa”. O artista, em seguida, sintetizou-me que a “responsa”, desde a perspectiva de quem se apresenta, refere-se ao interdito de não se “falar o que não é, gritar o que não faz”.

Uma primeira dimensão das formas pelas quais as pessoas procuram se inserir na cena de slams é advinda da provação, baseada nas relações de proximidade entre pessoas e poesia, pelos pares da seguinte questão: qual é a sua motivação? Nas palavras de Mauí, um artista e homem negro cis, como as poesias são fruto da “sua dor” e uma “verdade muito cruel”, a responsa dos e das poetas é avaliada continuamente. Poetas marginais escrevem e devem escrever, apenas, sobre sua própria “vivência”. “É a regra um”, disse-me Dorgo, “se tu não vive o que tu fala, tu é um contador de história”.

Em segundo lugar, poetas marginais devem escrever à luz do seu próprio “lugar de fala”. É este imperativo ético-estético que singulariza o slam e a poesia marginal, por exemplo, frente ao rap e às rodas de rima. E, assim, é esse mesmo imperativo que impulsiona a diversidade de gênero e sexualidade do público e poetas marginais presentes nos slams. Esta visibiliza outras relações nestes espaços e, ao mesmo tempo, impacta desigualmente poetas a partir de seu próprio “lugar de fala” que, em sua maioria, são homens negros e mulheres negras. Em outras palavras, o circuito de slam não se configura como uma comunidade moral de “manos”. Há “manos”, “minas”, “bixas”, “trans”, “não-binários”, “pretos”, “pretas”, “LGBT”, “brancos”. Os protestos não são um só. A regra é o de que não se pode “se apropriar” do “lugar de fala” de outras pessoas, isto tornaria a performance ilegítima.

E, além disso, o tratamento cotidiano à diferença é inserido na valoração das relações entre as pessoas e as poesias. Isto é, os julgamentos das performances artísticas não são desvinculados das mais corriqueiras situações no cotidiano, de modo que a transformação das experiências coletivas nas formas estéticas reverbera no plano das interações cotidianas também como um imperativo ético.

O que faz com que uma pessoa seja vista como poeta de responsa é quando ele ou ela é capaz de demonstrar aos seus pares que tem “vivência” cotidiana daquilo que transforma em verso e respeita o “lugar de fala”, além de compromisso em prol do estar junto, sem jamais oprimir ou se apropriar das lutas de outros e outras. Neste ideal, do reconhecimento da igualdade na diferença, “correr slams” seria a atitude de se colocar desde estas perspectivas e onde, somente assim, poderiam demonstrar suas capacidades singulares de exercer sua diferença enquanto poeta, batalhar e, eventualmente, vencer legitimamente um slam.

Referências

CAMPOS, Marcos Lopes. Sobre o corre da arte: uma etnografia dos futuros vividos e do ganhar a vida no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, IESP-UERJ, Rio de Janeiro, 2022.

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