Cinema: Os afetos tirânicos

Premiado no Festival de Berlim, Mal Viver mostra as relações entre três gerações de mulheres de uma família portuguesa. Entre murmúrios e jaulas de vidro de um hotel, sugere que ser mãe e também filha é padecer – sem qualquer paraíso à vista

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

O português Mal viver, que chega nesta quinta-feira aos cinemas brasileiros, faz parte de um projeto inusitado do cineasta João Canijo: é a metade de um díptico completado por Viver mal, previsto para estrear em fevereiro. As duas partes foram exibidas no último festival de Berlim, onde Mal viver ganhou o prêmio do júri. Viver mal passou fora de competição.

Não se trata de duas etapas de uma narrativa, tampouco de desenvolvimentos alternativos de uma situação (como em Smoking/No smoking, de Alain Resnais), mas de uma mesma história, narrada de pontos de vista diferentes.

Mudanças de foco

Tudo se passa num único fim de semana num hotel no balneário de Ofir, no norte de Portugal. Mal viver se concentra, basicamente, nas cinco mulheres de três gerações que administram e trabalham no local, pertencente à família. Viver mal, por sua vez, aponta a câmera para um punhado de personagens hospedados no hotel.

Os coadjuvantes de uma parte, figuras que aparecem vagamente no fundo do quadro, ou das quais se ouvem apenas fiapos de diálogos, tornam-se protagonistas na outra metade, e vice-versa. As mesmas cenas reaparecem, retomadas a partir de outro ângulo ou outro foco.

Mesmo em cada uma das metades, vista individualmente, a estrutura narrativa é fragmentada, elíptica, lacunar. O espectador é instado a estabelecer os nexos e interpretar os dramas das personagens a partir de conversas entreouvidas, ações truncadas, enquadramentos obstruídos por paredes, portas entreabertas, objetos interpostos. É colocado quase numa posição de voyeur ou espião.

Afetos tirânicos

Em Mal viver, aos poucos se delineia uma rede de afetos tirânicos entre as cinco mulheres da família: a matriarca Sara (Rita Blanco), suas filhas Piedade (Anabela Moreira) e Raquel (Cleia Almeida), sua sobrinha Ângela (Vera Barreto) e sua neta Salomé (Madalena Almeida). Na interação contínua e por vezes áspera entre elas, um traço se destaca e dá o tom dramático do filme: a dificuldade de entendimento e as manifestações de desamor entre mãe e filha. A dolorosa relação materna Sara/Piedade se reproduz em Piedade/Salomé.

Na visão de João Canijo, explicitada mais ainda em Viver mal, ser mãe é padecer, e ser filha também – sem qualquer paraíso à vista. Uma particularidade linguística expressa essa ideia: na nossa língua, mais em Portugal do que no Brasil, o verbo magoar significa também machucar fisicamente, e em Mal viver as mães não perdoam as filhas pelo sofrimento que estas lhes causaram no parto.

Cada filha carrega consigo esse pecado original. “Tu me magoas”, diz a filha. “Tu me magoaste primeiro”, responde a mãe. Não por acaso a personagem trágica de Mal viver é Piedade, que concentra em si a carga de ser mãe e filha ao mesmo tempo.

João Canijo desenvolve esse jogo dramático como um caleidoscópio, ou antes um quebra-cabeças de cuja construção o espectador participa ativamente. Aos enquadramentos tolhidos, às conversas truncadas, aos murmúrios que se abafam, contrapõe-se de quando em quando um plano aberto do hotel visto de fora, à noite, com seus quartos envidraçados parecendo pequenos aquários, um pouco à maneira de Janela indiscreta. Uma luminosidade e um espectro cromático semelhantes aos dos quadros de Edward Hopper reforça o efeito.

Em cada um desses retângulos iluminados agitam-se seres incompreendidos e incompreensíveis. Alguns deles se deixarão ver melhor em Viver mal, a outra metade dessa obra extraordinária.

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