Quanto vale a vida de uma ciclista?

Carros engolem a cidade – e, também, o meu equilíbrio sobre duas rodas. Após a colisão, a queda inevitável. Covarde, o motorista foge. Sou mais uma estatística de atropelamento na ciclofaixa, e vá lá, da barbárie diária de um país desgovernado

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Uma crônica de Fernanda Almeida

É véspera de feriado de Corpus Christi. Acordo com feliz notícia: na madrugada, havia nascido Bernardo, o primeiro filho do meu irmão caçula. Uma alegria incomensurável para toda a nossa família. O bebê muito desejado chega ao mundo rodeado de amor e bons afetos. Como de costume, ainda na garagem, ajusto o capacete; a checagem simples e rotineira confirma que os freios da minha Bici estão em ordem. Noto que minha comiseração pela realidade do país produziu certo apego a um sentimento quase pueril de otimismo, ainda que tudo – absolutamente tudo – me prove o contrário. Minutos antes de sair de casa eu havia escutado um podcast que problematizava o dado de que “o acesso a armas de fogo ficou ainda mais fácil para civis durante o governo de Jair Bolsonaro”. Tudo neste miserável Brasil dos tempos de Bolsonaro tem cheiro de morte.  Ainda assim, saio de casa cantarolando, afinal o nascimento do meu sobrinho é a prova de que a vida insiste e pulsa na direção contrária. É uma típica manhã de fim de outono, uma brisa gelada intimida os fracos raios de sol, o termômetro indica a sensação térmica de 10 graus.

Desde 2015 tenho a bicicleta como principal meio de transporte. Na época, o plano cicloviário da cidade de São Paulo estava em plena expansão, eu morava relativamente perto do trabalho, uma bicicleta significava ter mobilidade com mais segurança. Este foi inclusive um dos principais projetos (e um slogan) do ex-prefeito Fernando Haddad. Ele comprou uma briga danada ao implantar as primeiras ciclofaixas e propor a redução da velocidade nas vias. De lá para cá, a coisa mudou muito, o plano cicloviário da cidade arrefeceu, enquanto para mim, mais do que mobilidade, o uso diário da bicicleta definiu meu novo estilo de vida. Penso distâncias, prevejo caminhos, calculo trajetos, pesquiso locais seguros para estacioná-la, examino as condições climáticas, enfim, prefiro ir até onde minha Bici pode me levar. E ela tem me levado para muitos lugares (alguns até bem longe). Faço tudo de bicicleta! Tudo mesmo! Considero-me uma ciclista experiente e prudente. 

Atualmente o percurso da minha casa até meu trabalho tem uma cobertura de aproximadamente 80% entre ciclofaixas e ciclovias. Um luxo se considerarmos a malha cicloviária do país que, embora tenha crescido nos últimos anos, ainda é deplorável. No trajeto, percorro grandes avenidas, sendo a famosa Avenida Rebouças aquela que causa maior insegurança1. A via destinada para as bicicletas é estreita, há trechos com o piso absolutamente irregular; entretanto, o mais complicado é que muitos motoristas nem sempre respeitam a prioridade do ciclista. Quando eles precisam acessar as vias transversais, eles esperam que o ciclista pare para que eles possam seguir. A lógica é a imposição da prioridade do carro. São comuns freadas bruscas, quedas e conflitos entre ciclistas e motoristas. 

Foi numa dessas que vivenciei a cena mais violenta e hostil da minha trajetória como ciclista – e olha que o cotidiano do trânsito de São Paulo tem me desafiado neste quesito! Eu já havia avançado no cruzamento da Rua Cristiano Viana quando um carro me atingiu na roda traseira. A queda foi inevitável. Ainda me impressiono com o ato reflexo e a capacidade de tomar pequenas decisões durante a queda: consegui soltar o guidão da bicicleta e perceber a necessidade de proteger minha cabeça. Fui ao chão e, para mim, nada poderia ser pior que isso. Mas os minutos seguintes me lembraram que sim, estamos no Brasil de 2022, e tudo – absolutamente tudo – pode ser pior. 

Senti uma forte dor no meu joelho esquerdo. Em poucos segundos notei que estava caída, olhei para a bicicleta, parecia estar intacta. Senti as pessoas que se aproximavam de mim, eram duas mulheres jovens. Olhei ao meu redor, percebi que não conseguiria ou não tinha forças, naquele momento, para ficar em pé. Fiquei sentada no meio da rua. Logo, diferente de mim, a bicicleta estava em pé e na calçada, alguém a protegeu antes mesmo que eu pudesse me levantar. O trânsito fluía nas minhas costas, e a lembrança faz agora ressoar o conhecido verso “Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego”.  

Meu olhar buscou imediatamente o responsável. Notei que o condutor estava imóvel dentro do veículo. Ele continuava a me fitar atônito. O carro estava com a dianteira virada na minha direção. Ouvi buzinas e uma agitação que parecia acontecer em câmera lenta ao meu redor. Meu primeiro impulso foi gritar “Anotem a placa do carro!” – algum sentido me levava a pensar que aquele sujeito não se responsabilizaria por seu ato de imprudência. Foi quando ele ligou o veículo e, vindo na minha direção, me causou ainda mais espanto. 

Revestido da lataria do carro, com a qual formava um corpo unívoco, aquele sujeito – em sua armadura de ferro de mais de uma tonelada – estacionou ao meu lado. Abriu o vidro calmamente e ficou me olhando. Eu continuava sentada no chão. Seu tom de indiferença à minha condição de mulher caída na rua denunciou sua misoginia. Disse-me então, em tom de indiferença: “Você não viu a seta? Da próxima vez, preste atenção na seta”. Atônita e incrédula frente a tamanha falta de empatia, respondo. “Você jura que não vai me ajudar a levantar? Você jura que não vai descer deste carro? Você é um covarde!”. O carro se desloca e sai na direção do fluxo de veículos, algumas pessoas demonstram indignação. As duas mulheres me ajudam a ficar em pé. Em instantes a vida na cidade segue seu ritmo habitual e quem passa por ali nem imagina o que acabou de acontecer. Sou mais uma nas estatísticas de atropelamento de ciclista na ciclofaixa com fuga do condutor. Foi o primeiro, e espero que último acidente com bicicleta, embora não tenha muita esperança. Mais grave e dolorido que a lesão no meu joelho é o acréscimo de mais uma “pá de cal” na minha confiança na sociabilidade brasileira.

A placa e o modelo do carro foram registrados, o boletim de ocorrência foi lavrado e o exame de corpo de delito foi realizado. Embora eu seja crítica do Direito enquanto princípio “regulador dotado de neutralidade”, cada vez mais entendo a importância da Lei (assim mesmo, com letra maiúscula) enquanto interdito da brutalidade. Evidente que no país desgovernado o fascismo vem corroendo as entranhas do Estado Democrático de Direito que gestávamos, portanto não tenho nutro qualquer esperança de que as mudanças estruturais necessárias aconteçam por esta via, mas não tenho dúvidas de que precisamos utilizar os parcos direitos – civis, políticos e sociais – que temos para coibir, constranger, intimidar e limitar de alguma maneira a banalidade da barbárie que se impõe com naturalidade, estilhaçando cada vez mais o laço social e o pacto civilizatório. 

Não seria diferente no contexto do brutal assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips. A morte de Genivaldo de Jesus do Santos tem menos de um mês. A violência no nosso país é secular e naturalizada. A vida urbana é violenta, a vida na floresta é violenta, o Estado Brasileiro é violento! São atos reais e simbólicos que vão afrouxando cada vez mais a linha tênue que divide a barbárie da “civilização” capitalista ainda mais embrutecida pela razão neoliberal.   

Na saída do IML eu ligo para um querido amigo, nós havíamos estado juntos no mês de março na “Bicicletada Pelada”. Lembramos que a palavra de ordem do movimento é: “somente nu você consegue me ver”.  Reafirmamos a importância de não perder nenhum ato em defesa da mobilidade urbana e contra a violência no trânsito. Foi narrando (o gerúndio é o tempo da elaboração necessária) para as amigas e os amigos que consegui entender o tamanho da violência. O impacto demora para chegar, os sentidos ainda estão embaralhados. Aquilo que denuncio aqui – a naturalização da violência – é um sintoma social impregnado também nas nossas reações.  

Foram o convite do Chico Buarque em Que tal um samba? e a fotinho do Bernardo, meu mais novo sobrinho que me fizeram lembrar que ainda que tudo – absolutamente tudo – traduza a situação desesperadora que vivemos e nos empurre para a falta de esperança, a vida segue. Não vou desistir de usar a bicicleta pois, nas andanças diárias, computo as realizações da vida adulta urbana mais interessante (confissão de uma hipster- descolada): Será um carro a menos nas ruas, sustentarei o discurso sustentável e coerente, manterei minhas taxas glicêmicas e de colesterol em ordem, e ainda, nutrirei fortemente meu deboche diante dos (as) motoristas parados (as) no trânsito, cantarolando: 

De novo com a coluna ereta, que tal?

Juntar os cacos, ir à luta

Manter o rumo e a cadência

Esconjurar a ignorância, que tal?

Desmantelar a força bruta

Então que tal puxar um samba

Puxar um samba legal

Puxar um samba porreta

Depois de tanta mutreta

Depois de tanta cascata

Depois de tanta derrota

Depois de tanta demência

E uma dor filha da puta, que tal?

Puxar um samba

Que tal um samba?

Um samba

1 Reportagem detalhada sobre a implantação da Ciclofaixa na Avenida Rebouças após o primeiro ano. https://envolverde.com.br/1-ano-depois-da-implantacao-da-ciclofaixa-na-avenida-reboucas-em-sao-paulo/

2 Reportagem detalhada sobre a implantação da Ciclofaixa na Avenida Rebouças após o primeiro ano. https://envolverde.com.br/1-ano-depois-da-implantacao-da-ciclofaixa-na-avenida-reboucas-em-sao-paulo/

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4 comentários para "Quanto vale a vida de uma ciclista?"

  1. Alice disse:

    Fernanda muito bom seu escrito desabafo e, ao mesmo tempo, forte e com coragem. Indica um caminho para todas as pessoas. Muito obrigada por acreditar

  2. Ricardo Zanini Santana disse:

    Um belo texto, lamentável a violência, seja ela no trânsito, na cidade ou na floresta, é preciso cuidar das pessoas, em cima de uma bike vai um filho, um pai, um amigo, um humano.

  3. José Queiroz disse:

    E ainda tem gente neste momento, Fernanda, lendo este texto e achando que você não tem razão.
    Para estes, lembro a espinha dorsal do Código Nacional do Trânsito: no trânsito, o maior cuida do menor; o mais rápido, cuida do mais lento; o mais pesado, cuida do mais leve.
    Infelizmente, nossa sociedade está doente. Conceitos básicos como gentileza, civilidade, igualdade, fraternidade são solenemente desprezados pelos mesmos que vociferam “tradição, família, propriedade”.
    Talvez algum dia os teimosos como você sejam recompensados pela mudança. Aguardemos.

  4. Silvia Sartor disse:

    Texto maravilhoso! Reflete meu sentimento quanto ao embrutecido Brasil dos tempos atuais!

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