Cinema: Corpo livre, corpo cativo

Dois filmes instigantes sobre o corpo feminino estão no streaming. Fakir mostra como ele pode desestabilizar a ordem patriarcal. Já Pleasure, sem moralismos, narra sua desumanização através das lógicas mercantis da indústria pornô

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Vistos em conjunto, os filmes de Helena Ignez, como atriz e/ou diretora, são uma extensa – e intensa – ode à liberdade do corpo, em especial do corpo da mulher. Uma pequena amostra desse cinema libertário está acessível de graça, por um mês, na plataforma digital do Sesc. São apenas três filmes – dois dirigidos por Helena (Luz nas trevas e Fakir) e um documentário sobre ela, A mulher da luz própria, assinado por sua filha Sinai Sganzerla –, mas sintetizam bem sua postura e sua arte.

Sobre o belo e vital Luz nas trevas (2010), realizado a partir de um roteiro deixado por Rogério Sganzerla, escrevi quando foi lançado. É uma retomada para os novos tempos do célebre protagonista de O bandido da luz vermelha (1968), encarnado desta vez por Ney Matogrosso. Enquanto o bandido está na cadeia, seu filho, que tem a genial alcunha de Tudo ou Nada (André Guerreiro Lopes), busca seguir os passos do pai no mundo do crime.

O ótimo documentário A mulher da luz própria (2019), construído com riquíssimo material de arquivo e locução em primeira pessoa da própria Helena Ignez, atesta a trajetória atribulada, intensa e absolutamente coerente dessa artista que, para ser fiel a si mesma, não cessa de se transformar. Acompanhamos passo a passo esse corpo e esse espírito em busca de liberdade e consciência num país marcado pela hipocrisia, pelo preconceito e pela brutalidade.

A dança, o teatro, o cinema novo, o cinema dito “marginal”, os casamentos com Glauber e Sganzerla, o exílio na swingin’ London, a travessia do Saara, o contato com o budismo e a ioga, a inquietação permanente, as muitas Helenas, enfim, estão todas ali, comentadas com voz serena e altiva pela Helena atual, referência quase xamânica para as novas gerações.

Fakir e as artes do corpo

Só uma mulher com essas experiências e reflexões, com essa sabedoria vivida, poderia realizar um documentário como Fakir (2019), seu longa-metragem mais recente. Com base numa vasta documentação sobre faquires e faquiresas profissionais, sobretudo da época áurea do fenômeno (dos anos 1950 aos 1980) no Brasil e no mundo, Helena realiza um vibrante painel de personagens e situações em torno da transformação do corpo em espetáculo popular.

A grande proeza de Helena Ignez é conjugar o aspecto espiritual da atividade, seu ascetismo de tradição milenar, com a necessidade material mais básica de muitos de seus praticantes. A fome como espetáculo e a fome como condição de vida. “Faquir”, nos lembra a diretora, é uma palavra de origem árabe que quer dizer “pobre”.

O documentário transita do faquirismo clássico – a pessoa que se encerra numa jaula de vidro e ali permanece sem comer por semanas a fio, geralmente sobre uma cama de pregos – a outras modalidades correlatas, em especial as praticadas por mulheres: a dança com serpentes, o nudismo e o strip-tease, as lutas femininas de vale-tudo, etc. Evocam-se personagens que povoaram durante anos o imaginário popular: Silki, Lookan, Yone, Suzy King, Índia Maluá, Luz del Fuego…

Nessa progressão narrativa, o olhar de Helena Ignez se volta cada vez mais para a relação da mulher com a sociedade em que está inserida. Com uma frequência espantosa, as mulheres que fazem do próprio corpo sua arte e ganha-pão são assassinadas, hostilizadas ou induzidas ao suicídio, mesmo depois (ou ao mesmo tempo) de ser amadas e desejadas.

O corpo feminino perturba e desestabiliza a ordem patriarcal. Não por acaso, a última imagem de Fakir é o close de uma vagina. No festival de cinema de Tiradentes, onde o filme teve sua primeira exibição, a cineasta informou que se trata da vagina de uma mulher trans, o que intensifica, sem trocadilho, sua potência transgressora. Helena Ignez é uma força da natureza, mas é também uma força da cultura. Sua grande arte é mostrar que uma não existe sem a outra.

Pleasure

O oposto simétrico à perspectiva libertária de Helena Ignez é o submundo da indústria da pornografia, tal como mostrado em Pleasure, da sueca Ninja Thyberg, que está em cartaz na plataforma de streaming Mubi. Conta-se ali a história de uma garota de 19 anos, Linnéa (Sofia Kappel), vulgo Bella Cherry, que chega a Los Angeles com o projeto de se tornar estrela do cinema pornô.

Os dois primeiros planos do filme são significativos. No primeiro, diante do guichê da imigração, Bella ouve a clássica pergunta sobre o motivo da viagem: “Business or pleasure?” Depois de pensar um momento, ela responde, sorridente: “Pleasure”. A imagem seguinte é a de uma vulva sendo depilada com aparelho de barbear, sob o chuveiro. Logo descobriremos que o prazer será escasso ou nenhum no caminho de Bella. O título é dolorosamente irônico. E a depilação desajeitada e deserotizada no box do banheiro diz logo de cara que este não é um filme para voyeurs.

Na sua busca pelo estrelato, Bella enfrentará um calvário que inclui contratos draconianos, produtores inescrupulosos, ricaços depravados, colegas furiosamente competitivas e muita agressão física e moral. Avançar no ramo implica submeter-se a violência e humilhação crescentes. É um processo de desumanização e de perda de controle sobre o próprio corpo.

O filme não julga a personagem, nem tampouco condena moralmente o gosto pelo sexo transgressivo, mas sim a engrenagem que submete seres humanos ao poder voraz do dinheiro. É um negócio como qualquer outro, mas que pode violentar o que o indivíduo, sobretudo a mulher, tem de mais íntimo. Mais do que a um drama como o francês O pornógrafo (2001), de Bertrand Bonello, que também observava os bastidores do cinema pornô, Pleasure faz lembrar Saló, o terrível filme-testamento de Pasolini, em que jovens são sujeitados a todo tipo de violência e tortura por fascistas sádicos.

Em tempo: é o primeiro longa-metragem da diretora Ninja Thyberg, que em 2013 realizou um premiado curta homônimo sobre o mesmo tema.

Um dia qualquer

Está entrando em cartaz nos cinemas uma obra surpreendente: Um dia qualquer. Inteiramente rodado na Baixada Fluminense, o primeiro longa de ficção de Pedro von Krüger concentra sua ação em um dia e duas noites, entrelaçando os destinos de um punhado de moradores de um bairro dominado pela disputa entre o tráfico e a milícia.

Ao mesmo tempo em que expõe de modo vívido um contexto de tensões e compromissos entre comerciantes, milicianos, pastores e criminosos, o filme confere contornos de tragédia grega (da qual adota o princípio da unidade de tempo e lugar) ao denso drama dos personagens centrais. No ótimo elenco destacam-se Augusto Madeira, como o ex-policial tornado chefe da milícia local, Tainá Medina, no papel de sua jovem esposa, e Mariana Nunes, como sua ex-amante.

O mais interessante é que as palavras “milícia” e “miliciano”, salvo engano, não são pronunciadas nem uma vez. Mas essa praga nacional é a presença mais forte e ameaçadora da primeira à última cena.

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