A nova — e surpreendente — estratégia contra o HIV

A partir do exame de pacientes que convivem há décadas com o vírus, sem desenvolver AIDS, surge a hipótese de terapia com base genética. E mais: milhares morreram de covid na fila, no Brasil. Bolsonaro sabotará a vacina do Butantã?

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OS RUMOS DA CURA

Uma mulher da Califória pode ser a primeira pessoa curada do HIV sem a ajuda de remédios ou transplantes. Loreen Willenberg, de 66 anos, é velha conhecida dos pesquisadores desse vírus (aliás, uma longa e interessante reportagem sobre ela foi publicada pelo jornalista Bob Roehr em 2019). Loreen foi diagnosticada em 1992, mas na época sua situação não se encaixava nos protocolos para o início do tratamento – os medicamentos disponíveis ainda não eram muito bons e seu uso ficava reservado a casos mais graves. Então ela não chegou a tomar antirretrovirais. Mas foi sendo monitorada com vários exames periódicos, e, estranhamente, seu sistema imunológico parecia estar desenvolvendo uma forte resposta ao vírus. Os anos passaram e ela continuou saudável.

Desde então, cientistas vasculham seu corpo em busca de vestígios do HIV, perguntando-se se seria possível ela ter se curado sozinha. Essa confirmação parece ter vindo ontem em um trabalho publicado na Nature que traz uma avaliação genômica aprofundada não só de Loreen como também de outros 63 indivíduos com casos semelhantes ao dela. Eles são conhecidos como “controladores de elite”, pessoas que, mesmo sem medicamentos, mantém o vírus em níveis indetectáveis ​​no sangue, às vezes por longos períodos.

Estima-se que 0,5% dos infectados pelo HIV façam parte desse grupo, que vem sendo exaustivamente estudado nos últimos 15 anos. A pesquisa publicada ontem encontrou em Loreen um caso extremo, equivalente a uma cura natural. Os autores analisaram 1,5 bilhão de células sanguíneas dela e não encontraram nenhum traço do vírus, nem mesmo com novas técnicas sofisticadas de rastreio. Outras milhões de células nos intestinos e no reto também não mostraram nada. Ou quase nada: os únicos detectados eram incapazes de se replicar. 

Mas o mais interessante é que o trabalho busca pistas de por que isso acontece – o que pode levar a novas estratégias de cura em pacientes que não tenham esses “superpoderes”. Mesmo que o caso de Loreen seja o mais intrigante, os outros controladores de elite também têm características peculiares. Quase todos os analisados (menos um) têm um número abundante de provírus intactos (que são, grosso modo, vírus com material genético integrado às células dos pacientes). A diferença em relação às pessoas que precisam de medicamentos é que nesse seleto grupo uma grande parte dos provírus está em regiões cromossômicas de pouca atividade genética, ou seja, onde não conseguem se replicar. O desafio, agora, seria encontrar formas de tornar isso possível em organismos que não o fazem naturalmente.

“Os estudos de cura do HIV se concentraram em erradicar todos os vírus que estão escondidos no genoma. O novo estudo oferece uma solução mais alcançável: se o vírus permanecer apenas em partes do genoma onde não pode ser reproduzido, o paciente ainda pode obter uma cura funcional”, explica a matéria do New York Times. 

Os autores também acreditam que pacientes que tomaram antirretrovirais por muito tempo possam isolar o vírus nesses “desertos gênicos”. Nesse caso, eles poderiam parar de tomar os medicamentos. Vão fazer pesquisas nesse sentido. 

As boas notícias sobre o HIV têm aparecido com frequência. No mês passado, pesquisadores brasileiros anunciaram um aparente caso de cura após tratamento, mas ainda eram necessários novos estudos para confirmar o achado.

BANG BANG NO GOVERNO

A semana começou com a equipe econômica prometendo um pacote ‘Big Bang’ e termina com Paulo Guedes sendo arrastado para um bang bang em que foi alvejado por Jair Bolsonaro. Ontem, durante mais uma agenda tipicamente eleitoral em Ipatinga (MG), o presidente anunciou que a proposta do Renda Brasil apresentada pelo time da Economia na reunião ministerial da terça-feira não será enviada ao Congresso. “Não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos“, arrematou.

Bolsonaro explicitou sua principal resistência: o fim do abono salarial, pago a quem ganha até dois salários mínimos. O benefício atende a 23,2 milhões de pessoas a um custo de R$ 18,3 bilhões por ano. Nos cálculos da equipe econômica, esse dinheiro financiaria 83% do novo programa de transferência de renda, num desenho em que o Renda Brasil receba R$ 52 bilhões, contra os atuais R$ 30 bi do Bolsa Família.

Para acabar com o abono salarial é preciso ter amplo apoio do Congresso – e o próprio governo Bolsonaro já foi derrotado ao tentar no ano passado, quando a extinção do benefício foi colocada no bolo da reforma da Previdência.  

Mas existem outros problemas. Bolsonaro quer que o Renda Brasil ofereça um benefício médio de R$ 300 – bem acima dos R$ 190 do Bolsa Família. Mas o plano da equipe econômica – que prevê o remanejamento de recursos através da extinção de 27 programas sociais existentes, como o próprio abono e o Farmácia Popular – não garante isso. Segundo Guedes, daria para chegar a R$ 270, no máximo. Como vimos pelos vazamentos de todas essas informações à imprensa, o ministro passou a dizer que os R$ 300 seriam atingidos somente se o presidente topasse bancar o fim das deduções de saúde e educação do Imposto de Renda da pessoa física. 

E isso simplesmente não faz sentido, como explicamos ontem. A draconiana regra do teto de gastos, da qual Guedes não quer abrir mão, estabelece que, independente de melhores resultados na arrecadação de recursos, as despesas primárias da União não podem aumentar de um ano para o outro além da variação da inflação. Logo, deixar de subsidiar indiretamente consultas particulares e escola privada não terá efeito algum no financiamento do Renda Brasil. Só vai servir para bancar o que não está amarrado pelo teto, como a rolagem dos juros da dívida pública. E o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deixou isso bem claro ontem

“Não adianta criar uma despesa [incremento do Renda Brasil] se não estiver respeitando o teto de gastos. Mesmo que você crie uma receita extraordinária, uma privatização ou a ideia do novo imposto, nada disso não será resolvido se não desindexar o orçamento e acabar com muitos programas”, afirmou. 

Maia, que assim como Guedes carrega essa aura de porta-voz “dos mercados”, fez uma dobradinha com Bolsonaro ontem. O presidente da Câmara disse que “a equipe econômica vazou antes da reunião com o presidente qual era a sua ideia” e “de forma pública também o presidente anunciou que, por enquanto, a matéria está suspensa”. E continuou: “O que eu acho que tem problema é se ficar discutindo e avançando ideias que ainda não estão consolidadas e autorizadas pelo presidente da República”.

A declaração de Bolsonaro fez surgir especulações de que Guedes teria pedido demissão. O Ministério da Economia soltou nota desmentindo. Mais tarde, o vice-presidente, Hamilton Mourão, reforçou: “Eu acho que o Paulo Guedes está firme“.

AMANHÃ

Na terça-feira, quando recusou a proposta da equipe econômica, Bolsonaro deu um novo prazo para que Guedes & cia apresentem mais ideias. Esse deadline vence amanhã. Segundo O Globo, para abrir espaço no orçamento, os técnicos voltaram a trabalhar na proposta de desvinculação de gastos. Lembramos que isso pode afetar diretamente o financiamento do SUS e da educação pública.

De acordo com o Estadão, a avaliação na área econômica é de que sem a extinção do abono, o Renda Brasil vai ficar muito parecido com o Bolsa Família no alcance – 14 milhões de pessoas – e no valor, R$ 190. Assim, o programa através do qual Bolsonaro pretende manter sua popularidade teria um começo humilde, pagando entre R$ 220 e R$ 230. A ampliação dependeria de votações no Congresso que autorizem mudanças na Constituição, como a desvinculação. 

Em relação à prorrogação do auxílio emergencial, a avaliação é que dá para chegar aos R$ 300 pedidos pelo presidente (afinal, 2020 não está amarrado pelo teto). Mas a área econômica cogita reverter a concessão em dobro para mães chefes de família. 

SITUAÇÃO DE GUEDES

A colisão final entre o neoliberalismo do ministro da Economia e as crenças políticas e pretensões eleitorais de Bolsonaro parece estar mais próxima do que nunca. “A narrativa liberal radical lá do início perdeu força e sentido. Ela envelheceu na medida em que o governo mudou seu eixo político”, observa Luiz Carlos Mendonça de Barros, em entrevista à coluna Painel, da Folha. Para ele, se Guedes quiser continuar no governo, terá de se adaptar ao “cavalo de pau” dado pelo presidente. E parar de se fazer de esperto: “Agora essa história do financiamento do Renda Brasil é um desastre. Acharam que ninguém ia perceber que estão tirando dos pobres?

O contraste entre o ministro da Economia e o time dos “fura-teto” ficou maior ainda anteontem, com o lançamento do Casa Verde e Amarela. O programa substituto do Minha Casa, Minha Vida saiu rápido e sem alarde do papel: foi anunciado em uma semana, lançado em outra. O pai da ideia é o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, principal desafeto de Guedes – que não foi à cerimônia, como destacou toda a imprensa. Também segundo a coluna Painel, “Marinho teria sido o responsável por apontar defeitos nos atos de Guedes, tendo colaborado para a proposta do Renda Brasil ser rejeitada”. Já a Coluna do Estadão, que ouviu um ex-ministro palaciano, conta que a impressão desse personagem é que “depois de tantos desgastes” Guedes só está “cumprindo tabela” antes de sair do governo.

SIM, MORRERAM

Mais de uma vez, o presidente Jair Bolsonaro declarou que “ninguém” morreu com covid-19 por falta de leito ou atendimento médico. As notícias sobre filas nas UTIs em diversos estados sempre o desmentiram, e agora o El País levantou dados junto às secretarias estaduais de saúde para ver, até o momento, quantas pessoas foram a óbito antes de conseguir uma vaga em UTI. Só seis estados forneceram essas informações – Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Maranhão – e, mesmo que eles representem menos de um terço do país, os números são muito ruins: 4.132 pessoas morreram na fila. Vale notar que estados que enfrentaram problemas terríveis, como Amazonas e Ceará, não entraram na conta.

Entre os seis, o Rio de Janeiro é o pior, com mais de 2,3 mil óbitos. As taxas de ocupação de UTI no estado vêm diminuindo nos últimos meses, e dois hospitais de campanha já foram fechados. Mas a situação, especialmente na capital, já voltou a se agravar. A média diária de mortes mais do que dobrou entre os dis 17 e 24 de agosto, passando de 29,71 para 69,43. No estado como um todo, cresceu 80%. No Pará, que também experimentou melhora durante algum tempo, houve igualmente 80% de aumento. No total, na última semana 13 estados tiveram alta nas mortes diárias – metade do país. São quatro estados a mais que na semana anterior. 

Aliás, o Brasil acaba de superar os Estados Unidos no número de mortes a cada 100 mil habitantes. O indicador é criticado por diversos especialistas, que preferem trabalhar com números absolutos – mas é um dos dados preferidos de Bolsonaro para avaliar a resposta dos países. No ranking mundial, o Brasil está agora em 10º lugar nesse quesito.

LOGO MAIS

Em reunião na Câmara dos Deputados, ontem, o embaixador da Rússia Sergey Akopov prometeu enviar ao governo e aos parlamentares estudos sobre o desenvolvimento da Sputnik V. “Acabamos de receber os documentos sobre os resultados de pesquisas e provas da primeira e segunda etapa (da pesquisa clínica). Vamos a partir de hoje enviar, é um documento muito volumoso, a todos os participantes da reunião de hoje”, disse ele. Na semana passada, os desenvolvedores da vacina prometeram publicar os resultados em periódico científico ainda este mês. O diretor-presidente do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), Jorge Callado, disse ontem que quer realizar os testes de fase 3 da Sputnik V no estado.

Enquanto isso, as autoridades do país pretendem aprovar um segundo imunizante entre setembro e outubro… O produto ainda está nas fases iniciais de testes clínicos e nenhuma etapa foi concluída.

AMPLIAÇÃO

O governo de São Paulo busca investimento de pelo menos R$ 1,9 bilhão do governo federal para ampliar a produção da Coronavac pelo Instituto Butantan no ano que vem. Em vez de 60 milhões de doses, poderiam ser 120 milhões. Só que o acordo de João Doria (PSDB) com a chiensa Sinovac é abertamente criticado pelo presidente Bolsonaro, como se sabe. O pedido foi pauta de reunião ontem entre o eterno interino da Saúde, Eduardo Pazuello, e representantes do governo paulista. Procurado pelo Estadão, Pazuello foi o mais vago possível: disse que “tem interesse na vacina para o combate à covid-19 que seja comprovadamente eficaz para garantir a saúde dos brasileiros”. Mas outros que participaram da reunião saíram mais otimistas: “Na realidade, ele disse que fará a aquisição das vacinas”, afirmou o diretor-geral do Butantan, Dimas Covas.

DECISÃO ARBITRÁRIA

Causou rebuliço, no início da semana, a mudança nas diretrizes dos Estados Unidos para a realização de testes de covid-19. Agora, o governo não recomenda mais que pessoas assintomáticas que tiveram contato prolongado com infectados façam o teste. Antes, a recomendação era que esses contactantes fossem “rapidamente identificados e testados”, já que as chances de transmissão são maiores antes de os primeiros sintomas aparecerem. Foi uma transformação muito ajustada ao desejo de Donald Trump, para quem o país só teve um boom nos casos porque começou a testar muito. 

A confusão aumentou tremendamente ontem: Anthony Fauci, o principal epidemiologista do grupo de trabalho da Casa Branca contra pandemia, disse à CNN que estava passando por uma cirurgia quando aconteceu a reunião que discutiu a questão. “Eu estava sob anestesia geral na sala de cirurgia e não participei de nenhuma discussão ou deliberação sobre as novas recomendações de teste”, disse ele. E foi além: “Estou preocupado com a interpretação dessas recomendações e preocupado que isso dê às pessoas a suposição incorreta de que a propagação assintomática não é uma grande preocupação. Na verdade, é”. Desmentiu totalmente um secretário assistente de Saúde do governo, que havia afirmado a repórteres que as novas diretrizes tinham sido aprovadas pelo grupo de trabalho da Casa Branca. “Eu trabalhei nelas, o Dr. Fauci trabalhou nelas (…)”, garantira ele. Um funcionário do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) afirmou, também na CNN, que mudanças estão vindo “de cima para baixo“. 

MAIS LENHA NA FOGUEIRA

Ao longo da pandemia, pelo menos sete estados foram alvo do Ministério Público Federal em investigações sobre desvios na compra de equipamentos e contratação de serviços. As operações deflagradas pela Polícia Federal foram adiantadas pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), que as apelidou de “Covidão”. Até hoje, não ficou esclarecido como a parlamentar ficou sabendo delas, mas o episódio levantou muitas suspeitas por se dar logo depois que Jair Bolsonaro trocou a direção da PF. 

Desde então, essas operações que endereçam um problema fundamental – o desvio de dinheiro do SUS – ganharam um ar dúbio de perseguição política, senão pelo mérito, mas pela rapidez com que chegaram a figuras importantes do poder, como no caso do Rio de Janeiro, onde o rival do presidente, Wilson Witzel (PSC), foi alvo e hoje sofre processo de impeachment. Entre outros gestores públicos atingidos, está o ex-presidente do conselho de secretários estaduais de saúde (Conass), Alberto Beltrame, que vinha fazendo um contraponto importante à forma como o governo federal escolheu conduzir a crise sanitária. 

Também nesse período, houve outra operação que se referia a suspeitas anteriores à pandemia, mas coincidentemente atingiu um secretário do principal rival de Bolsonaro, o governador João Doria. De tabela, a Dardanários envolveu a Fiocruz, principal instituição de saúde do país, com a prisão de um de seus mais importantes pesquisadores, Guilherme Franco Netto. Na época, diversas entidades criticaram a prisão, pedindo mais transparência.

O caso de Franco Netto volta à lembrança nessa semana, quando outro nome muito respeitado da saúde brasileira foi um dos alvos de uma operação, desta vez em investigação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Eduardo Hage, subsecretário de Vigilância em Saúde do DF, foi preso junto com outros seis integrantes do governo Ibaneis Rocha (MDB). Segundo o desembargador que autorizou as prisões, o secretário de saúde, Francisco Araújo, comandou uma organização criminosa para superfaturar a aquisição de testes rápidos para detectar o coronavírus, feita em dois processos com dispensa de licitação. O prejuízo teria chegado a R$ 18 milhões. Como Hage deu o aval técnico para a compra, foi preso num movimento que está sendo condenado em peso por entidades de saúde, pesquisadores e até ex-ministros.

“Ele jamais poderia estar preso. Tem residência fixa e estava respondendo a todos os questionamentos“, disse ao Estadão o ex-secretário do Ministério da Saúde, Wanderson Oliveira. “É preciso repensar a maneira do exercício do controle, que é fundamental. O que tem acontecido é que gestores estão com medo de assumir cargos e funções públicas. Acaba sendo acusado de desvios que não tem nada a ver com o seu comportamento”, contrapôs José Gomes Temporão. “Existe uma espécie de culpabilização de gestor na área da saúde. A pior coisa é ser gestor em saúde pública. Se você faz é punido. Se não faz, é punido também”, disse o também ex-ministro Agenor Álvares, na mesma reportagem.

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