O que as estatísticas sobre homicídios escondem

Não é apenas a desigualdade brutal entre negros e brancos, mas também um número crescente de mortes “sem causa definida”. E mais: como a descoordenação federal multiplicou as vítimas da covid; segue a novela sobre planos de saúde

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OS NÚMEROS DA DÉCADA

Saiu ontem o Atlas da Violência 2020, estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2008 a 2018. O levantamento se baseia em informações do Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde e, à primeira vista, os números parecem positivos: em 2018 houve uma boa redução nas mortes em relação a 2017 e a taxa chegou a 27,8 mortes por 100 mil habitantes, foi uma redução de 12%. Observando o gráfico de toda a década, porém, o que se tem é uma taxa próxima (ligeiramente maior) do que a de 2008, quando estava em 26,3 por cem mil.

De todo modo, a queda entre 2017 e 2018 foi bastante significativa e é instigante. Mas pode conter distorções, que não foram mencionadas nas inúmeras reportagens que saíram sobre o levantamento: o Atlas aponta que em 2018 piorou muito a qualidade dos dados, e o total de mortes violentas com causa indeterminada cresceu 25,5% em relação ao ano seguinte, o que pode ter deixado milhares de homicídios ocultos. “Em 2018, foram registradas 2.511 MVCI a mais em relação ao ano anterior, fazendo com que o ano de 2018 figurasse como recordista nesse indicador, com 12.310 mortes cujas vítimas foram sepultadas na cova rasa das estatísticas, sem que o Estado fosse competente para dizer a causa do óbito, ou simplesmente responder: morreu por quê?”, escrevem os autores. Eles apresentam outros possíveis fatores para a queda: a diminuição no número de jovens na população (homens jovens são as principais vítimas), o arrefecimento dos conflitos entre o PCC e o CV em seis estados do Norte e Nordeste; políticas estaduais de segurança e ainda os efeitos do Estatuto do Desarmamento.

Também é preciso notar que, como sempre, os dados escancaram a disparidade racial. Ao longo desses 11 anos, a taxa de homicídios de negros subiu 11,5% e chegou a 37,8 por 100 mil habitantes (um número 35% maior do que a média nacional), enquanto a de não negros caiu 12,9% e ficou em 13,9 a cada 100 mil (50% menor que a média). Os negros são 75,7% de todas as vítimas, embora sejam 55,8% da população. Para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados. A diferença também vale para mulheres: sua taxa de homicídios cresceu 12,4% entre negras e caiu 11,7% entre não negras.

Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder em 2019 e tudo o que foi feito de lá para cá para armar mais a população, é impossível não pensar em como o gráfico do Atlas vai se comportar nas próximas edições.

ONTEM E HOJE

O general Eduardo Pazuello deu uma bronca pública no diretor de vigilância do Ministério da Saúde, Eduardo Macário, quando ele apresentava os últimos dados da covid-19 a secretários municipais e estaduais de saúde. “É muito importante que você ressalte que o Brasil não pode ser visto da forma como você apresentou aqui“, disse ele, quando Macário começou a mostrar os números nacionais. E prosseguiu: “Se você coloca isso dessa forma para o Brasil inteiro ouvir, parece que o Brasil inteiro está assim. E não está assim. Senão você joga uma informação como joga a mídia, e a dona Maria em Belém, onde não tem mais óbito nenhum acontecendo lá, não vai no médico com medo de contaminar, com medo de morrer, e vai morrer de câncer”.

O risco maior, acreditamos nós, é o efeito inverso: a redução nacional no número de casos e óbitos levar a comportamentos de risco em locais onde o vírus ainda circula (ou voltou a circular) com força. A média de óbitos por covid-19 na semana chegou a 900 por dia – menor número registrado desde maio. Ontem, foram 970 mortes e 42.489 novas infecções. 

Uma reportagem do Valor desenha o quanto a falta de coordenação nacional foi responsável por deixar o Brasil na trágica condição em que se encontra – não só um alto número de contaminações e mortes, mas também esse platô eterno, os dados nebulosos, o país sem saber o que fazer enquanto espera uma vacina. “O platô é a assinatura do fracasso”, diz o especialista em modelos epidemiológicos da FGV Eduardo Massad. “Cada ponto percentual de queda no distanciamento social significa mais mortes (…) No Brasil, nessa toada, chegaremos a 150 mil óbitos em novembro e 200 mil até o final do ano, com cinco milhões de pessoas contaminadas”, prevê.

Embora a situação tenha indubitavelmente se deteriorado desde que Luiz Henrique Mandetta saiu do Ministério da Saúde, muitos dos problemas começaram na sua gestão. Na matéria, o ex-ministro diz que estava “preparando” a coordenação entre os entes federados, empresas e hospitais privados e públicos. “Estávamos prontos para botar na rua nosso exército de 340 mil agentes comunitários espalhados por todo o país quando tudo foi congelado”, assegura. A matéria assinala que quando ele foi demitido havia cerca de dois mil registros de óbitos. Mas lembramos que naquela época o vírus já circulava no país havia dois meses – e antes disso já se sabia que chegaria aqui. O “exército” de agentes comunitários de saúde (uma categoria bastante próxima a Mandetta) teria sido essencial para rastrear o espalhamento do vírus desde o dia zero, e não dá para comprar a ideia de que eram necessários meses para estruturar sua atuação. “É muito difícil fazer alguma coisa quando o presidente te desautoriza o tempo todo e não aceita as medidas que as autoridades mundiais de saúde recomendam”, justifica ele.

Carlos Lula, hoje presidente do Conass (conselho que reúne secretários estaduais de saúde) critica a gestão-relâmpago de Nelson Teich, mas diz que com Pazuello a comunicação é mais “fluida”: “Ele me chama brincando de presidente Lula”, revela. Mas fala também sobre a tremenda demora do governo em resolver o fornecimento de medicamentos necessários para a intubação. De acordo com ele, até hoje a situação não está normalizada. “Os hospitais estão com seus estoques em níveis críticos. Muita gente está sendo intubada sem anestesia. Imagine enfiar um tubo na traqueia de uma pessoa sem sedação”.

A TODO VAPOR

O Brasil não disputa apenas a liderança do ranking dos casos e mortes por covid-19, mas também o da desinformação sobre as futuras vacinas. A Agência Lupa contou 502 checagens de publicações sobre o tema no mundo todo, das quais 144 desacreditavam os esforços para o desenvolvimento de um imunizante. A maior parte delas relata (falsas) mortes de participantes de ensaios clínicos. Os países com maior número de fake news checadas são Estados Unidos (19), Brasil (14), Espanha (14), Itália (11) e Ucrânia (10).

Por aqui, a campanha antivacina já começou a crescer a olhos vistos. Um levantamento produzido pela UPVacina (União Pró-Vacina), um grupo de instituições ligadas à USP Ribeirão Preto, identificou um aumento de 383% em postagens no Facebook com conteúdo falso ou distorcido sobre isso. Em dois meses, a desinformação quase quintuplicou. “Apesar da análise ser específica de grupos anti-vacina, a hipótese é que essas campanhas de desinformação continuarão se espalhando pelas mídias sociais conforme avançam as pesquisas das vacinas. Esses grupos representam apenas uma peça na engrenagem, mas se somam a outras redes de desinformação consolidadas durante a pandemia, constituindo um mecanismo muito mais complexo e abrangente. A preocupação é que o efeito da ação desse mecanismo coloque em risco futuras campanhas de vacinação contra a covid-19 e até mesmo a confiança geral nas vacinas”, diz o analista de comunicação da USP João Henrique Rafael Junior, no UOL. A reportagem lembra ainda um estudo recente do Avaaz sobre a desinformação ligada a saúde de forma geral no Facebook – o levantamento mostrou que as notícias falsas tiveram, entre 2019 e 2020, um alcance quatro vezes maior do que informações vindas de fontes confiáveis, como a OMS.

Se por um lado há difamação das vacinas na população leiga, por outro há uma questão preocupante dentro da própria comunidade científica, diz o jornalista Cesar Baima, no Questão de Ciência. Uma iniciativa chamada  RaDVaC (“colaboração para o rápido desenvolvimento de vacina”, na sigla em inglês) promove o desenvolvimento e a autoadministração de um imunizante cuja ‘receita’ é disponibilizada pelo projeto. A RaDVaC foi lançada por Preston Estep, doutor em genética pela Universidade Harvard, que “amealhou o apoio e colaboração de diversos colegas e ativistas para o projeto, mais de 20 dos quais já tomaram a vacina que eles mesmos fizeram com base nas informações compiladas pela iniciativa, entre eles seu ex-orientador na Escola de Medicina de Harvard e também geneticista George Church, um dos mais respeitados cientistas do planeta neste campo”. Isso acontece sem que tenham sido realizados testes de segurança e eficácia, e sem trabalho nenhum publicado em periódicos.

Baima traz um editorial publicado ontem na Science em que Arthur Caplan e Alison Bateman-House, da Escola de Medicina Grossman da Universidade de Nova Iorque, fazem o alerta: “A inciativa ‘faça você mesmo’ da RaDVaC tem muito mais chances de contribuir com a crescente desconfiança do público com relação a todas as vacinas do que oferecer uma caminho para o avanço no combate à pandemia. Aqueles que estão cada vez mais desconfiados de todo papo em torno da ‘velocidade de dobra’ das promissoras vacinas para a COVID-19 dificilmente se sentirão encorajados a mudar de opinião por cientistas rebeldes fazendo experiências sem supervisão, no limite do que é eticamente aceitável”.

A NOVELA DOS REAJUSTES

Acompanhamos aqui como os beneficiários de planos de saúde estiveram a ponto de ter que engolir reajustes de até 25% nas suas mensalidades – mesmo que a pandemia esteja sendo um período extremamente benéfico para as operadoras.  Depois de uma forte pressão de Rodrigo Maia, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) decidiu que os aumentos ficariam suspensos de setembro até dezembro. Mas isso não foi bem uma vitória: os planos coletivos, que abarcam 26 milhões de pessoas, estão de fora. E, em janeiro, as pessoas podem ser surpreendidas por boletos caríssimos, cobrindo a diferença relativa ao período da suspensão. No podcast Tibungo, Outra Saúde conversa sobre isso com a advogada Ana Carolina Navarrete, do Idec, e com o economista Carlos Ocké, do Ipea. Ouça aqui.

NÃO FOI UMA INVESTIGAÇÃO

As críticas a uma suposta proximidade entre a OMS e a China voltaram a ferver. É que uma matéria do Financial Times informou que uma equipe preliminar da Organização esteve no país para iniciar a investigação sobre a origem do novo coronavírus, mas ficou só em Pequim, não pondo os pés em Wuhan. “A delegação da OMS ficou em Pequim por três semanas e não chegou perto de Wuhan. Qualquer chance de encontrar uma evidência conclusiva acabou”, declara, na matéria, um funcionário do governo dos Estados Unidos. 

Acontece que, segundo a OMS, a ‘equipe’ eram apenas de dois funcionários que foram estabelecer as bases e os termos de referência para, enfim, começar a apuração. “Não era sua intenção iniciar o estudo e eles não tinham planos de viajar para Wuhan. Quando o grupo de especialistas internacionais for formado, é claro que eles viajarão para Wuhan para iniciar o estudo, porque é o básico de investigações como essa para começar o estudo de onde veio o primeiro relatório”, explicou ontem Tedros Ghebreyesus, diretor do organismo. Os Estados membros devem propor especialistas para compor a missão.

CASO ENCERRADO

O Ministério Público de São Paulo arquivou a investigação contra a Prevent Senior que pretendia apurar se a operadora omitiu óbitos por covid no começo da pandemia e  foi negligente nas medidas sanitárias dentro de seus hospitais, voltados para o atendimento de idosos. Para quem não lembra, no início as unidades da rede concentravam mais da metade das mortes em São Paulo (que, por sua vez, respondia por mais da metade das mortes no país). Na época, havia suspeita de que vários dos pacientes teriam se contaminado dentro dos hospitais, onde chegavam para tratar de outros problemas. 

O MPE concluiu que houve irregularidades nas notificações, mas não intencionais – demonstrando “mais se assemelhar dificuldades enfrentadas no hospital quando do início dos primeiros casos do que intenção de descumprir o que o Poder Público manda”. Quanto à má conduta, o MPE afirma que não há provas de que as contaminações tenham acontecido dentro dos hospitais. Não é algo fácil de se provar, de fato. 

MAIS UM IMPACTO

Pessoas que foram infecadas pelo zika têm mais chances de, depois, ter formas mais graves de dengue, de acordo com um trabalho publicado na Science. Os pesquisadores dos Estados Unidos e da Nicarágua se basearam em dados de 3,8 mil crianças e adolescentes deste segundo país, que sofreu com várias epidemias de dengue nos últimos anos. Entre os que tiveram dengue entre 2019 e 2020, aqueles com infecção prévia por zika tinham 12,1% de chances de apresentar sintomas (de dengue), contra 3,5% dos demais. A probabilidade de ter dengue hemorrágica (a forma mais severa) foi de 1,1% no grupo que teve zika e 0% no outro grupo. A raiz do problema, explica a Folha, parece estar na reação entre os anticorpos produzidos previamente pelo organismo e o DENV2, o subtipo 2 do vírus da dengue. Por conta de um fenômeno chamado ‘potenciação dependente de anticorpos’, esses anticorpos acabariam protegendo o DENV2 em vez de aniquilá-lo. 

E isso tem implicações diretas quando se pensa o desenvolvimento de vacinas. “Uma vacina direcionada para o zika pode colocar as pessoas em risco de desenvolver a versão grave da dengue? Como é possível desenvolver uma vacina contra o zika que induza apenas ‘anticorpos bons’ e não induzam a versões prejudiciais de outras doenças?”, indaga a autora principal do estudo, Leah Katzelnick, da Universidade da Califórnia.

Em tempo: esta semana saíram os resultados preliminares do chamado ‘Método Wolbachia’* no combate a doenças transmitidas por esses vetores. Primeiro, a Opas anunciou que houve uma redução de 75% nos casos de chikungunya em Niterói (RJ). Depois, cientistas apresentaram um comunicado à imprensa afirmando que na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, a queda na incidência de dengue foi de 77%. Como se sabe, os mosquitos são infectados com uma bactéria chamada Wolbachia, que impede os insetos de transmitir alguns vírus. Os pesquisadores que conduzem os ensaios dizem que os resultados devem apoiar a implementação da tecnologia no mundo todo. O World Mosquito Program, que encabeça a estratégia (e tem financiamento de Estados e da Fundação Bill & Melinda Gates) espera liberar mais mosquitos em áreas onde vivem 75 milhões de pessoas nos próximos cinco anos e atingir meio bilhão de pessoas em uma década. A OMS ainda não endossou.

* Esta nota foi modificada para uma correção. Inicialmente, dissemos que esse método ficou conhecido como o dos ‘mosquitos transgênicos’. A informação está incorreta. O método que envolve modificação genética não é o Wolbachia, e sim o realizado pela empresa Oxitec.

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