O que significa a reinfecção confirmada em Honk Kong

Notícia não é tão ruim quanto parece: resposta imune anterior pode ter sido forte o suficiente para proteger paciente de novos sintomas

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Vem da Universidade de Hong Kong a notícia da primeira reinfecção pelo SARS-CoV-2 já documentada: um paciente de 33 anos foi contaminado em março e teve alta em abril, depois do fim dos sintomas e de dois testes PCR terem dado resultado negativo. Mas, no último dia 15, ele testou positivo novamente depois de retornar da Espanha. 

Embora centenas de casos de possível reincidência venham sendo registrados há meses em alguns países, até agora nenhum deles tinha sido comprovado porque não havia sido feito o sequenciamento genético dos vírus nos dois momentos (o da infecção e o da suposta reinfecção). Sem isso, não dá para saber se são fragmentos virais que resistem muito tempo no organismo ou se realmente se trata de novas contaminações. E é essa a diferença agora: os pesquisadores fizeram a tal análise e afirmaram que as sequências genéticas das cepas são “claramente diferentes”.

Ainda não há muitos detalhes sobre o trabalho. Ele ainda vai ser publicado no Clinical Infectious Diseases, mas até agora só foi divulgado um comunicado à imprensa, além de trechos do manuscrito que circulam no Twitter. “É por isso que detesto divulgação de dados por comunicado à imprensa. Parece que são criados para alimentar o sensacionalismo ao deixar perguntas provocativas sem resposta, algumas das quais provavelmente poderiam ser respondidas lendo o artigo e examinando os números”, critica  a virologista da Universidade de Columbia, Angela Rasmussen, na matéria do site da Science.

Um em 23 milhões?

“Tivemos 23 milhões de casos documentados até agora, mas o fato de um dos pacientes ter sido reinfectado neste momento não deve causar alarme indevido ainda”, diz no New York Times Jeffrey Shaman, epidemiologista da Universidade de Columbia. Na mesma linha, a líder técnica da resposta à pandemia da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, disse em coletiva de imprensa que “não podemos tirar conclusões precipitadas, mesmo que este seja o primeiro caso de reinfecção documentado. E precisamos olhar para isso em nível populacional”. A OMS pediu que os países sigam observando e documentando casos e, quando possível, analisem o genoma do vírus.

Isso pode não ser tão simples, segundo Ester Sabino, pesquisadora da USP que fez parte da equipe que sequenciou o genoma do coronavírus no Brasil. “É muito mais difícil provar quando se está numa mesma região, porque os vírus são muito parecidos e é muito mais difícil dizer se a amostra sofreu mutação dentro do indivíduo ou fora dele. É muito mais complexo provar a infecção no Brasil porque as cepas são todas parecidas entre si. É muito mais fácil num caso como esse de Hong Kong, que a pessoa viajou e pegou em outro lugar”, explica ela, no G1. Sem que se comece a notificar cada suspeita de reinfecção e tentar identificar o genoma, não saberemos quantas são realmente as reinfecções. Na linha de frente da resposta, alguns médicos que conversaram com Outra Saúde relatam suspeitas de reincidência em que os pacientes sequer são testados.

Sem razões para pânico

Mas, mesmo que os registros se tornem mais comuns, a notícia pode não ser tão preocupante quanto parece. A segunda infecção foi completamente assintomática e só foi detectada por conta de um teste de rotina no aeroporto. Isso sugere (mas não comprova) que a resposta imune do paciente em março/abril deve ter sido forte o suficiente para protegê-lo e evitar que ele desenvolvesse sintomas. “Este é um exemplo clássico de como a imunidade deve funcionar em uma pessoa”, tuitou Akiko Iwasaki, professora de imunobiologia da Escola de Medicina de Yale, que não participou do estudo. Não dá para garantir que todo paciente vá responder dessa forma, mas, de acordo com ela, é um sinal promissor, e pode indicar que o novo coronavírus passe a circular entre humanos de forma permanente, como resfriados comuns – o que sempre foi uma aposta levantada por vários cientistas e pela OMS. 

O caso também parece evidenciar a importância das células T (veja aqui) na imunidade contra o novo coronavírus. Os exames sorológicos feitos dias depois da primeira infecção do paciente vieram negativos (indicando que ele não chegou a produzir níveis detectáveis de anticorpos neutralizantes), mas, cinco dias após a segunda infecção, anticorpos foram identificados. “Esse paciente poderia estar protegido por uma resposta robusta de células T, mesmo sem anticorpos da primeira vez, como também temos visto em muitos casos. Mais um motivo para esperança e não para pânico“, escreveu Natália Pasternak, do Instituto Questão de Ciência. 

Se pacientes infectados ficarem mesmo mais protegidos num caso de novo contato com o vírus, o principal problema passa a ser sua capacidade de transmissão a pessoas ainda vulneráveis. Não está certo se o homem de Hong Kong ficou contagioso durante a segunda infecção. Segundo os autores, a quantidade de vírus no seu sistema sugere que sim, mas eles ainda estão tentando cultivar o vírus vivo para analisar. Se reinfectados continuarem espalhando o vírus teremos um problema: vai ficar ainda mais difícil pensar em imunidade de rebanho sem vacina. Aliás, essa também é uma preocupação quando se pensa em vacinas. É comum que elas gerem uma imunidade mais forte e duradoura do que a de infecções naturais, mas também é possível que as vacinas desenvolvidas contra o SARS-CoV-2 não protejam completamente da doença, apenas atenuando os sintomas. Nesse caso, também será preciso investigar se indivíduos vacinados e infectados poderão transmitir o vírus.

Por enquanto, tudo é ainda muito pantanoso: os dados completos não foram divulgados, trata-se de um único paciente, não dá para ter certeza se outros se comportarão como ele (ou se na verdade terão sintomas mais graves) e as perguntas sem resposta persistem. A única coisa certa é que, até segunda ordem, quem já se infectou deve continuar seguindo medidas de prevenção, como distanciamento social e uso de máscaras.

Em tempo: no Brasil, há pelo menos 16 possíveis casos de reinfecção sendo investigados pela USP e mais quatro pela Fiocruz.

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