A ofensiva de Trump

Anvisa americana foi vítima de mais uma acusação leviana do presidente dos EUA. No dia seguinte ao ataque, agência aprovou tratamento sem comprovação científica

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Não é novidade que os órgãos federais de saúde pública estão sob pressão de Donald Trump. Já comentamos aqui como o presidente vem desautorizando o Centro de Controle de Doenças (CDC). No caso da FDA – equivalente da Anvisa por lá – a pressão, que começou com a cloroquina, está mais forte do que nunca. 

Tudo tem a ver com as eleições. O candidato democrata Joe Biden está à frente nas pesquisas de intenção de voto, com uma vantagem que tem permanecido na casa dos 10%. Como não poderia deixar de ser, o foco de críticas da oposição é a condução de Trump na pandemia. Os EUA já ultrapassaram a barreira das 175 mil mortes causadas pela covid-19. A resposta do presidente tem sido apelar à parcela mais radical da sua base, acenando com teorias da conspiração. A preferida – QAnon – sustenta que Trump estaria em uma guerra global contra uma cabal de satanistas e pedófilos infiltrados em diversos locais, desde Hollywood às instituições de Estado. É nesse contexto que, no sábado, o presidente dos EUA foi ao Twitter afirmar que a FDA faz parte do “deep state” e impõe obstáculos para que farmacêuticas inscrevam pessoas em ensaios clínicos com a intenção de retardar a aprovação de vacinas para depois da eleição.

Como é frequente com Trump, a acusação diz mais sobre ele próprio do que sobre a vítima do ataque. Nas últimas semanas, muito tem se falado do receio dos cientistas em relação a uma manobra do político visando pressionar a FDA a registrar uma vacina muito antes do fim da fase 3 dos testes clínicos, a tempo do pleito marcado para novembro. O tuíte de Trump se referia a uma reportagem da Reuters, que revelou que um alto funcionário da agência reguladora desabafou em uma videoconferência com executivos e funcionários do governo. Peter Marks, que está à frente da avaliação de produtos biológicos, disse que renunciaria se a administração Trump aprovasse um imunizante antes que ele se mostrasse segura e eficaz. O pedido de demissão sinalizaria para o público que alguma coisa estava errada

E parece estar mesmo. Segundo o New York Times, em julho assessores de Trump afirmaram a parlamentares que uma vacina seria aprovada antes do término da fase 3. Foram além, dizendo que isso aconteceria no fim de setembro. E ontem – véspera da convenção do Partido Republicano –, a Presidência anunciou que a FDA aprovou um “grande avanço terapêutico”, se referindo à liberação emergencial do tratamento com plasma sanguíneo retirado de pacientes convalescentes de covid-19. A terapia já era permitida nos casos graves, mas não nos outros. Isso porque ainda não há evidências que comprovem sua eficácia e segurança. 

Falamos semana passada sobre o único grande estudo divulgado até agora a respeito dessa terapia, que tem problemas metodológicos e não foi revisado por pares. Essa liberação ganhou destaque no mundo todo e, especialmente depois da aprovação que o governo Vladimir Putin deu a uma vacina que ainda nem iniciou a fase 3 e cujos dados não foram compartilhados com a comunidade científica, gera apreensão.

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