O aceno de Bolsonaro ao movimento antivacina

Presidente diz que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” e Secom institucionaliza declaração. Quais as consequências?

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Poderia ter sido ‘apenas’ mais um entre tantos disparates ditos por Jair Bolsonaro a seus apoiadores. Na segunda-feira à noite, abordado por uma mulher (“Ô, Bolsonaro, não deixa fazer esse negócio de vacina, não, viu? Isso é perigoso”, pediu ela), o presidente cravou: “A vacina… ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.

Isso seria suficientemente grave, mas a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) conseguiu piorar o cenário, amplificando (e institucionalizando) a declaração ao publicá-la com destaque nas redes sociais. No post, as aspas do presidente vêm numa imagem que carrega o logotipo da Secom. Junto dela, um texto diz que “TUDO será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”, e que “o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”.

Vacinas compulsórias não são uma realidade no mundo todo, é claro. Nos últimos anos, os prejuízos à saúde pública gerados pelos movimentos antivacina (os surtos de sarampo na Europa e nos Estados Unidos são a face mais visível disso) têm levado vários governos a discutir e aprovar leis que estabelecem a obrigatoriedade para algumas delas. Não há unanimidade nesse debate, mas nenhum dos argumentos sérios contra a iniciativa se baseia no ‘perigo’ dos imunizantes. 

No Brasil, a fala de Bolsonaro é simplesmente mentirosa. Um sem número de reportagens lembrou que, sim, a Constituição permite ao governo criar mecanismos para obrigar que as pessoas se vacinem. Vários outros dispositivos legais reforçam isso, inclusive o Estatuto da Criança e do Adolescente. Aliás, todos sabem que há um calendário obrigatório de imunização infantil (burlado por um punhado de famílias antivacina no país). O mais interessante é que a chamada Lei da Quarentena, publicada em fevereiro e sancionada pelo próprio presidente, também estabelece a possibilidade de vacinação compulsória. 

O STF vai decidir em breve se pais podem não vacinar os filhos com base em “convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais”. Porém, embora exista, o movimento antivacina ainda não é forte por aqui. Ontem mesmo comentamos que a cobertura vacinal vem caindo desde 2016, mas por enquanto especialistas acreditam que se trate muito mais de sucateamento da atenção básica e de falta de acesso aos imunizantes do que da hesitação da população. Recentemente, o Datafolha mostrou que 89% dos brasileiros têm intenção de tomar a vacina contra a covid-19 assim que isso for uma possibilidade – o que contrasta com os Estados Unidos, por exemplo, onde só metade da população está confiante em tomá-la. 

Só que, como escreve Bernardo Mello Franco, n’O Globo, “o Capitão Corona está em busca de um novo inimigo“. Resta saber o tamanho do estrago que vai conseguir causar.

O grupo necessário

Quem nos lê certamente sabe que se vacinar não é uma questão individual, mas coletiva. Uma comunidade só fica protegida se a cobertura for alta: primeiro porque dificilmente uma vacina garante 100% de imunidade; segundo, porque sempre tem uma parcela da população que não pode se vacinar (pela idade, por alergias etc). A tal imunidade de grupo ou de rebanho, tão falada ultimamente, é justo o que assegura o sucesso de uma estratégia de vacinação.

Na última coletiva de imprensa da OMS, na segunda-feira, sua cientista-chefe Soumya Swaminathan afirmou que “gostaríamos de ver uma vacina com pelo menos 50% de eficácia, de preferência superior” para que o imunizante seja recomendado. Nesse caso, de cem pessoas vacinadas num ensaio clínico, 50 não seriam infectadas. 

Essa eficácia influencia diretamente o percentual da população que vai precisar se vacinar para interromper a pandemia. Um trabalho publicado recentemente no American Journal of Preventive Medicine (baseado nos EUA) mostrou que se apenas 75% da população fosse vacinada, a eficácia do imunizante teria que ser em torno de 70% para que medidas como uso de máscaras e distanciamento social pudessem ser deixadas de lado. Se 60% das pessoas forem vacinadas, a eficácia deveria ser de mais de 80%. Vacinas com resultados piores ainda seriam úteis – só que não significariam a possibilidade do fim das medidas de prevenção.

A história da imunização contra a gripe não é muito animadora. “Em um bom ano”, diz o El País, “a vacina contra a gripe protege entre 50% e 60% dos que a recebem. Em 2018, sua eficácia só chegou a 25%“. A vacina contra o sarampo tem uma eficácia bem mais alta, entre 95% e 98%, mas isso não impede que, com a queda da cobertura, ocorram graves surtos, como vimos no Brasil.

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