No Brasil, a onda é do tipo pororoca

‘Segunda onda’ vem antes que a primeira tenha terminado. Várias capitais tem casos e mortes em alta. No Rio, UTIs municipais chegam a 96% de lotação

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O Brasil registrou ontem 38.382 casos e 754 mortes por coronavírus. Subindo a rampa da pandemia, o país chegou a uma média móvel de 584 óbitos na última semana. Trata-se da maior marca dos últimos 38 dias – e um crescimento de 49% em relação à quinzena anterior. A média móvel de casos ficou em 28.340, 71% maior do que há duas semanas.

Na edição da quinta-feira passada, destacamos por aqui alguns sinais de que o país poderia estar vivendo algo semelhante a uma segunda onda de infecções. Os hospitais de elite da cidade de São Paulo vinham registrando forte aumento nas internações. De lá para cá, esses sinais se multiplicaram – e pioraram. 

Depois de dias sem dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), a Fiocruz soltou um boletim epidemiológico referente ao período que vai de 8 a 14 de novembro. Segundo o InfoGripe, oito capitais apresentam importante tendência de crescimento nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Rio Branco tem a situação mais preocupante, com sinal forte de crescimento na tendência de longo prazo. Florianópolis, João Pessoa e São Luís já acumulam cerca de seis semanas consecutivas com sinal de crescimento na tendência de longo prazo. Natal segue essa rota nas últimas quatro semanas; o Distrito Federal nas últimas três; e Vitória, nas últimas duas. Já Belo Horizonte registra sinal de crescimento na tendência de longo prazo pela primeira semana desde o início da queda de casos.

Há capitais que não estão na lista, mas preocupam quando se olha para outras variáveis, como o aumento de internações e ocupação de leitos de UTI. O Rio de Janeiro tem a situação bastante paradoxal: se dependesse dos leitos municipais, a ocupação teria chegado a 96% ontem; somando leitos estaduais e federais que existem na cidade, o número é ruim, mas não beira o colapso: 81%. Em agosto, esses números estavam em 41% e 61%, respectivamente. Na terça-feira, técnicos da secretaria municipal de saúde divulgaram um alerta para unidades básicas: “Vivemos um expressivo aumento do número de atendimentos de síndrome gripal, casos confirmados e internações por covid-19 nas últimas semanas”. No mesmo dia, o prefeito da cidade Marcelo Crivella (Republicanos) fazia propaganda em uma entrevista na televisão. Disse que “com o dólar alto”, o Rio é “um local seguro” para turistas passarem o verão. A média móvel de mortes e de casos estão em disparada na capital.

Em São Paulo, o governo passou a admitir a possibilidade de revisar seu plano de reabertura econômica antes do fim do mês depois que repercutiu a notícia de que as hospitalizações por covid na rede municipal saltaram 26% na última semana, atingindo o mesmo nível do início de outubro. As internações em UTI subiram 33%, de 339 para 451. A taxa de ocupação dos leitos de terapia intensiva aumentou de 32% para 44%.

Embora ainda haja um grau de incerteza a respeito da dinâmica temporal dos dados de casos e mortes por conta do represamento provocado pela pane no sistema do Ministério da Saúde, muitos especialistas começam a afirmar de forma categórica que veem, sim, o retorno de uma situação crítica.

“A maior parte dos estados brasileiros já entrou na segunda onda, baseado nas taxas de infecção observadas”, avalia Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde da USP Ribeirão Preto, em entrevista ao Globo. Para ele, contudo, essa ‘segunda onda’ é diferente da enfrentada pelos países europeus que conseguiram efetivamente diminuir as infecções. Nossa situação seria semelhante à vivida pelos Estados Unidos, onde a primeira onda nunca chegou ao fim e a situação recrudesce. Uma espécie de pororoca, portanto. 

Ele olha para as taxas de transmissão calculadas pela Universidade Federal da Paraíba para afirmar que, se no começo de outubro apenas quatro estados ultrapassavam a marca de 1, no dia 16 de novembro esse número já chegava a 21; sendo que 16 deles, àquela altura, estavam nesse patamar de reprodutibilidade das infecções há 14 dias. A taxa brasileira era de 1,12 – o que significa que cem pessoas infectam outras 112, que irão infectar outras 125, e assim em diante. Para piorar, a taxa de isolamento estava em 37%, o que aponta que mais pessoas estão circulando hoje do que antes de 17 de março, quando a primeira morte foi registrada no Brasil.

Para o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, a retomada das infecções não significa uma segunda onda, mas um repique por falta de cuidados e relaxamento das medidas de controle. Ele defende medidas de restrição da circulação: “Precisamos de mais rigor por talvez um mês para baixar o contágio”, afirmou ao Estadão. Também para o sanitarista Gonzalo Vecina, houve exagero na flexibilização. “Os planos sofisticados demonstraram ser aparatos enganatórios, algo como o que faz o encantador de serpentes e nós todos caímos nessa armadilha. Agora vamos pagar o preço do aumento da exposição e dos consequentes encontros com o vírus – mais casos, mais mortes, mais sofrimento”.

O jornal também ouviu o ex-ministro da saúde, José Gomes Temporão, para quem o Brasil continua despreparado para enfrentar o recrudescimento da crise. “Não temos comando nem coordenação federal, cada estado e município toma decisões por conta própria sem qualquer tipo de apoio técnico-científico do Ministério da Saúde”, critica, acrescentando: “O governo federal continua enganando de modo irresponsável a população com protocolos de tratamento da doença, sem qualquer base científica. Continuamos testando pouco e sem um trabalho de fortalecimento do papel da atenção básica em detectar os sintomáticos, rastrear seus contatos e isolá-los.”

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