Os dois anos de covid e os dois riscos que persistem

O primeiro é o negacionismo, que se manifesta no Brasil no baixo índice de vacinação das crianças. O outro é o apartheid: metade da população global não está imunizada e Big Pharma quer ganhar bilhões com novos medicamentos anticovid

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Dia 26, sábado de carnaval, início do terceiro ano da covid, o Brasil começa a enfrentar um dilema exasperante. De um caso registrado em 26/2/20, a pandemia passou à marca de 28,4 milhões de casos acumulados e continua a avançar à taxa de 100 mil por dia. Ela já não é a mesma, ficou menos letal, em princípio, e seria possível, idealmente, voltar em boa medida à normalidade, incorporando cuidados mínimos. Além de a vacina finalmente começar a eliminar a sobrecarga pandêmica sobre o sistema de saúde, prejudicando a atenção a outras doenças.

O país, no entanto, não mudou tanto assim. Continua a existir, por exemplo, uma parcela dos brasileiros que não vão se vacinar, atrapalhando a possibilidade de domesticar a doença. Para ter um pouco mais de conforto, em 2022, os cientistas dizem que é preciso expandir as coberturas vacinais e torná-las menos desiguais. “Garantir cobertura vacinal para todo mundo, pelo menos com duas doses, é prioridade número um”, avaliou o infectologista Julio Croda, da Fiocruz. “A segunda prioridade é garantir doses de reforço para a população mais vulnerável”.

Ele comentou as perspectivas da covid na reportagem “Vacinas salvam vidas”, na última edição da revista Radis, da Fiocruz. Enfatizou a importância de boas coberturas de duas doses. “Isso enquadra as crianças”, afirma. “Transmissões e infecções vão continuar ocorrendo, mas a gente não vai ter um impacto tão importante nos serviços de saúde”. Mas aí mora um obstáculo cavernoso: o “negacionismo institucional”, produtor de baixa cobertura e hesitação em vacinar. “Isso já pode estar ocorrendo com a vacinação pediátrica”, diz Julio, culpando o governo.

A hesitação vacinal não é um traço cultural no Brasil, explica ele. “Nunca existiu. O que está acontecendo agora no Brasil é justamente por conta da disseminação de fake news, vinda principalmente do governo federal e, inaceitavelmente, do Ministério da Saúde”. As crianças de 5 a 12 anos são 20 milhões no Brasil, e muito poucas estão imunizadas, ainda. Só 5 milhões tomaram a primeira dose. De modo geral, estima-se que mais de 20% da população pode acabar não se imunizando no país.

Há estados no sul e no sudeste onde a cobertura poderia ser maior do que é, lembra Julio, se houvesse um governo que abraçasse a vacina, “assim como o Uruguai, o Chile e a Argentina têm coberturas maiores que o Brasil”. No exterior também há dificuldades que nos afetam. Lá fora o transtorno deve-se à baixa taxa global de distribuição de vacinas, que não chegaram ainda a um grande número de países.

Não podem pagar os preços exorbitantes cobrados pelos grandes oligopólios farmacêuticos mundiais. Apenas 56% da população mundial foi vacinada até agora. Essa condição há tempos permanece insolúvel, fazendo da outra metade do planeta um berçário de novas variantes em potencial. E está prestes a constituir um novo apartheid, os dos medicamentos anticovid, como os antivirais paxlovid, molnupiravir e remdesivir.

Eles podem ajudar a diminuir os casos graves da covid e começaram a ser aplicados nos países desenvolvidos com vistas, inclusive, a desafogar os sistemas de saúde. Já deveriam estar em uso no Brasil, reclama o infectologista Esper Kallás, do comitê científico que assessora o governo de São Paulo. Serão muito úteis. A Anvisa disse já ter aprovado o remdesivir, um remédio pró-oxigenação, além de três tratamentos monoclonais, e logo deve aprovar o paxlovid, e o molnupiravir.

Também nesse caso, porém, a distribuição deve ser desigual, prevê Othoman Mellouk, um militante da International Treatment Preparedness Coalition. Vai valer o mesmo princípio do lucro, antecipa ele. “Somente a Pfizer”, escreve Othoman no The Guardian, “espera faturar até 22 bilhões de dólares com sua nova pílula [paxlovid] este ano, somando-os aos 37 bilhões que ganhou em 2021 com sua vacina”. Ele revela uma contabilidade surreal, dizendo que o tratamento de cinco dias com o Paxlovid custa cerca de 530 dólares. O molnupiravir da Merck custa cerca de 700 dólares.

E no entanto o custo de produção do molnupiravir seria ínfimo, por comparação, de cerca de 17,74 dólares. Um relatório da Organização Mundial da Saúde, produzido em janeiro, alertou para uma possível tática de mercado para elevar preços em regime de oligopólio: produzir pouco. O relatório, relata Othoman, “previu um ‘alto risco de escassez’ de Paxlovid para países de baixa e média renda até que versões genéricas se tornem mais amplamente disponíveis, o que provavelmente não acontecerá até o segundo semestre de 2022”.

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