No ataque hacker à Saúde, as marcas do governo Bolsonaro

Sabotagem e incompetência. As mesmas atitudes que produziram 620 mil mortes permitiram a invasão do sistema do ministério e levaram ao adiamento da exigência de passaporte vacinal – amplamente comemorado nas redes bolsonaristas

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Que houve incompetência do ministério da Saúde no hackeamento dos dados vacinais dos brasileiros, está fora de dúvida. Na madrugada de sexta-feira, invasores, que se apresentam como grupo Lapus$ conseguiram acessar e bloquear, além de todos os dados vacinais dos brasileiros, todos os sistemas que regulam a alocação de serviços do SUS, as filas de transplante e os processos internos do ministério da Saúde. Horas depois, “apenas” os sistemas de vacinação permaneciam bloqueados.

Mas esta invasão estava anunciada. Ela foi precedida por duas outras, provavelmente praticadas por autores distintos. No final de 2020 e em fevereiro de 2021, lembra o repórter Lucas Neiva, do Congresso em Foco, um hacker invadiu o site do ministério. Não bloqueou nem capturou dados. Mas fez questão de deixar registrada a fragilidade do sistema: “qualquer criança consegue invadir”… Se ainda assim não houve nenhuma providência para preservar informações tão cruciais, parece manifestar-se outra vez a incúria que levou 7 milhões de kits de teste a permanecerem abandonados num armazém do aeroporto de Guarulhos

Mas terá havido apenas incompetência? Os antecedentes do episódio convidam a examinar também outra hipótese. Ao longo da semana, o governo Bolsonaro havia ficado em situação incômoda, como registrou Outra Saúde. Ao provocar o adiamento da entrada em vigor do passaporte vacinal, a invasão deu-lhe fôlego. Vale acompanhar o desenrolar dos fatos..

Na segunda-feira, em meio ao agravamento da pandemia na Europa e às incertezas produzidas pela variante ômicron, o STF determinou ao Planalto que explicasse, no prazo de 48 horas, por que não adotava medidas como a exigência de passaporte vacinal, tanto para a circulação de brasileiros, em certos ambientes, quanto para entrada de viajantes vindos do exterior. A exigência colocou o presidente em saia justa. Tinha a necessidade de cultivar o negacionismo junto a sua base mais extrema e rejeitar as medidas protetivas. Mas a adesão da sociedade às vacinas e às medidas de cuidado poderia desgastar ainda mais o presidente, caso insistisse na negligência. Este risco tornou-se ainda maior quando o próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que cogitava aderir ao passaporte.

Ao fim, o governo agiu em surdina e foi ambíguo. Sem alarde, o Diário Oficial da União publicou, na madrugada de quinta-feira, ato assinado pelos ministros da Saúde e da Casa Civil. Exige passaporte dos visitantes que chegam por via aérea. Mas permite-lhes optar, em vez disso, por uma quarentena de cinco dias, que o Estado brasileiro não tem, hoje, condições de fiscalizar. Ou seja: o bolsonarismo tentava dizer a seus seguidores hardcore, que não havia adotado o passaporte…

Um dia depois, a invasão do site do ministério – facilitada, como se viu, pela incompetência, permitiu executar a sabotagem. O ministério da Saúde utilizou o pretexto da queda dos dados vacinais para adiar por uma semana (até sábado, 18/12) o controle dos viajantes estrangeiros. Leonardo Sakamoto, colunista do UOL, notou que tanto o hackeamento quanto a postergação foram efusivamente festejados nas redes de extrema direita…

A sociedade brasileira volta a ser submetida a riscos. A jornalista Bruna Lima registrou, no sábado, que o país tornou-se, nos motores de busca da internet, o destino de preferência dos turistas que se recusam à vacina. Felizmente, surgiu, no próprio sábado, um sinal de esperança. O ministro Luiz Barroso, do STF, decidiu liminarmente que o governo federal não poderá oferecer a opção da “quarentena”, devendo exigir o passaporte. Barroso lembrou que as autoridades federais têm, atualmente, dificuldades até mesmo de monitorar as tornozeleiras eletrônicas atadas ao corpo dos presos com tornozeleira eletrônica. A decisão será examinada pelo plenário do Supremo nesta quarta-feira.

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