Por uma economia a serviço da saúde

Amarrado à visão da medicina privada, Brasil cuida precariamente de sua população. Mas a Saúde pode ser a chave para a retomada da indústria. Carlos Gadelha mostra como o projeto sanitarista pode promover o desenvolvimento – e vice-versa

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“Saúde, gasto social, ciência e tecnologia são os novos motores no século XXI”, enuncia o economista Carlos Gadelha, líder do Grupo de Pesquisa sobre Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde, da Fiocruz, em entrevista publicada pelo site do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação carioca, no último mês de abril. A partir dessa constatação ele mostra como promover a mudança estrutural da sociedade brasileira, que ele considera imprescindível.

“Não podemos continuar sendo um país que produz soja, extrai minério e derruba árvore e achar que isso gera saúde e desenvolvimento sustentável se houver política compensatória”, diz ele.

É preciso mais do que isso para construir um sistema de saúde compatível com os preceitos de universalidade, integralidade e equidade, como previsto na constituição de 1988 e estruturado na forma do SUS, defendeu ele no artigo publicado por Outra Saúde a seguir: “Complexo econômico-industrial da saúde (CEIS) no Brasil e a área da saúde como estratégica para o desenvolvimento brasileiro”¹.

Em um país continental como o Brasil, prossegue Carlos, “a existência de um sistema produtivo em saúde, envolvendo a indústria e os serviços de saúde de modo articulado, apresenta-se como uma condição sem a qual o acesso à saúde não pode ser garantido estruturalmente”. Com essa ideia em mente, um grupo de quase 40 pesquisadores vem, há alguns anos, elaborando o enfoque, de caráter desenvolvimentista, do complexo econômico-industrial da saúde. Busca-se integrar três dimensões: a social, a econômica e da ciência, tecnologia e inovação, e a ambiental.

O grupo, coordenado por Carlos, inclui dez instituições, e antes de mais nada, diz ele, uma parceria fundamental com os Institutos de Economia da UFRJ e da Unicamp. Nesse final de ano, Carlos escreveu sobre esse trabalho no artigo citado acima, contando que o conceito de complexo econômico-industrial da saúde surgiu após a crise dos anos 1980, coincidindo com o predomínio neoliberal. Suas ideias-chave estão representadas, no Brasil, em um conjunto de ações políticas iniciadas em 2003-2004 e intensificadas a partir de 2008.

Em contraponto a esse movimento – e como se lhe desse razão – houve um processo efetivo de reprimarização produtiva no Brasil, recrudescendo a dependência econômica da exportação de minério de ferro, soja, petróleo cru. E, a par disso, diz Carlos, vimos também uma dependência e um déficit comercial em saúde. “Com a pandemia da covid-19, as nossas importações devem ir para 20 bilhões de dólares”, estima ele. “Ou seja, um orçamento inteiro do Ministério da Saúde sem gerar emprego e renda no Brasil”.

Todos os países estão atentos a isso. “Emmanuel Macron disse não ser razoável que os produtos mais básicos na França sejam todos importados, tornando o sistema de saúde francês vulnerável”, lembra Carlos. Joe Biden também age no mesmo sentido, respondendo às oportunidades do desenvolvimento e da ciência, tecnologia e inovação. Que, hoje se vê, podem privar povos e países do direito mais fundamental, o direito à vida. E o Brasil, enquanto isso, anda para trás com seu atual projeto de sociedade.

O caminho, escreve Carlos, vai noutra direção. “Devemos mobilizar nossas melhores energias para contribuir em um projeto nacional de desenvolvimento em que o bem-estar e a sustentabilidade ambiental sejam alavancas para gerar emprego, investimento, renda e recursos que financiem o próprio Estado para fazer sua missão principal: defender a vida, cuidar das pessoas e fornecer um futuro para nossa sociedade e nosso planeta”.

(Flávio Dieguez)

Complexo econômico-industrial da saúde (CEIS) no Brasil e a área da saúde como estratégica para o desenvolvimento brasileiro

Por Carlos Gadelha

O grande desafio do Complexo Econômico-Industrial da Saúde é articular as dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento. O mundo social e o da saúde, em particular, são parte essencial da estrutura econômica, como a pandemia da Covid-19 nos mostra. Ao mesmo tempo, o CEIS representa um chamamento para os economistas abrirem um pouco as suas caixas e verem o processo de desenvolvimento a partir do tratamento endógeno da dimensão social do desenvolvimento.

Há cerca de 20 anos esse trabalho vem sendo desenvolvido na Fiocruz. São duas décadas articulando o pensamento de economia política com o pensamento social e sanitário. Concomitantemente, a Fiocruz esteve na liderança da criação do Sistema Único de Saúde e é a instituição de biotecnologia mais importante da América Latina. Começamos estudando a biotecnologia em saúde e ampliamos para pensar a própria saúde como um sistema de inovação, no qual está inserida uma base econômica e material, que é o Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Hoje estamos em um projeto coordenado pela Fiocruz que envolve quase 40 pesquisadores. Algo inusitado: a Fiocruz, uma instituição da área social, coordenando um projeto de desenvolvimento em saúde, com a parceria fundamental do Instituto de Economia da UFRJ e do Instituto de Economia da Unicamp. Ao todo são dez instituições articulando uma grande rede de pesquisa para superar os termos de debate que muitas vezes não integram a dimensão econômica com a social do desenvolvimento.

Nós estamos em um Congresso Brasileiro de Economia para pensar o próprio direito à vida e ao desenvolvimento. Quando discutimos a relação entre saúde e desenvolvimento, temos que integrar as três dimensões: a social, a econômica e da ciência, tecnologia e inovação e a ambiental. Não seria aceitável trabalharmos em um mundo em que fragmentássemos a sociedade entre quem tem expectativa de vida de 80, de 70 e de 60 anos, como se estivéssemos pegando um avião com dez classes diferentes, de acordo com a capacidade de pagamento.

Os sistemas universais de saúde — como o SUS — refletem um projeto de sociedade. Ao mesmo tempo, a saúde é uma enorme frente de expansão econômica e de ciência, tecnologia e inovação, com um diálogo intrínseco com a dimensão ambiental. Saúde não é ausência de doença; é qualidade de vida, é qualidade da vida. Portanto, falar em saúde é falar da perspectiva social, econômica e ambiental ao mesmo tempo.

A visão que nós defendemos nessa longa trajetória é que essas dimensões — da transformação econômica e produtiva e da transformação social e ambiental — são interdependentes. Não podemos ter um padrão produtivo, econômico e tecnológico, como diria Celso Furtado, que não seja compatível, funcional, que em si não considere os parâmetros sociais e ambientais relacionados à vida. A estrutura produtiva e tecnológica pode ser convergente ou não com o objetivo do desenvolvimento social e de sustentabilidade ambiental. Não podemos ter um padrão tecnológico em que a saúde seja inacessível para a população, que derrube árvores e seja insustentável e depois querermos ter políticas ambientais e sociais universais. Essas dimensões têm que ser olhadas de modo articulado e sistêmico.

No conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde o campo econômico e material é concebido como base essencial de suporte ao sistema universal de saúde, envolvendo um subsistema de base químico-tecnológica, um de base mecânica, eletrônica e de materiais e um terceiro, que engloba toda a área de serviços e segue a lógica industrial. Há um processo de hiperindustrialização da saúde: nada mais industrial do que uma grande unidade de diagnóstico e toda área de informação e conectividade. É um sistema integrado, por exemplo, para lidar com a Covid-19: precisamos de vacina, anestésicos para pacientes que vão para a UTI, ventiladores, tomógrafos, ressonância. Precisamos tratar das pessoas na prevenção, nos hospitais e no diagnóstico e testagem para a covid-19. O quarto subsistema, de Informação e Conectividade, integra todos os demais subsistemas, reforçando a interdependência e a necessidade de uma visão integrada da saúde como um espaço de desenvolvimento.

É preciso uma ação econômica e social que articule esses subsistemas ou o direito à vida desaba. O sistema desaba se, para tratar a Covid-19, não temos vacina; se não temos atenção básica para que as pessoas mantenham distanciamento social; se não podemos mapear as novas variantes que estão surgindo; se não temos uma base de informação e de conhecimento que utilize Big Data e Inteligência Artificial, dando origem, por exemplo, a uma vigilância epidemiológica inteligente. Esse sistema econômico e produtivo mobiliza 9% do PIB, nove milhões de empregos, inclusive empregos que são gerados em meio à crise brasileira: o emprego em saúde desde 2015 aumentou 30%, enquanto, no emprego nacional, assistimos a uma situação dramática de desemprego e de subocupação.

O gasto em pesquisa e desenvolvimento é de 30% na visão restrita, que inclui apenas ciências biomédicas e da saúde. A nossa estimativa é de que pode chegar a 40%, pois várias áreas do conhecimento — como computação, matemática, economia — estão na área da saúde e não são consideradas no campo da pesquisa e do emprego em saúde.

A saúde é a chave para a entrada do Brasil na 4ª Revolução Tecnológica em curso. Mas assistimos no país a um processo de reprimarização da produção, tendo entre os exportados minério de ferro, soja, petróleo cru. O Brasil segue um padrão em que a indústria se torna menos importante e a tecnologia e a inovação menos densas para o tecido produtivo. Assistimos a uma dependência e a um déficit comercial em saúde — área que tem densidade de conhecimento, maiores salários, potencial de emprego. O nosso déficit está explodindo na medida em que o acesso universal se amplia.

Com a pandemia da Covid-19, as nossas importações devem ir para 20 bilhões de dólares, ou seja, um orçamento inteiro do Ministério da Saúde sem gerar emprego e renda no Brasil. Os países que nos cobram o desenvolvimento sustentável não podem ser reativos à cooperação tecnológica e à transferência de tecnologia. É preciso que tenhamos a possibilidade de desenvolvimento de tecnologias em âmbito produtivo para que mudemos o padrão insustentável, que não consegue garantir os direitos básicos da população.

As importações de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) estão em 90%. Emmanuel Macron disse não ser razoável que os produtos mais básicos na França sejam todos importados, tornando o sistema de saúde francês vulnerável. Joe Biden reedita, como primeiro ato, o Buy American Act, incluindo o Complexo da Saúde, toda área de produção de equipamentos, materiais, tecnologia de informação, entre outros, como prioridade nos termos americanos.

No Brasil, só na área de ventiladores, as nossas importações triplicaram, e com produtos de péssima qualidade. Nossa dependência de equipamentos de proteção individual (EPI) supera um bilhão de dólares. Isso em um contexto de disputa mercantilista, em que países desenvolvidos limitam o acesso de países pobres.

No campo das patentes, os dados são ainda mais assustadores: dez países têm 80% das patentes em saúde. A patente de hoje em saúde é a vulnerabilidade e a dificuldade de acesso amanhã. Não é apenas um indicador de inovação; é um indicador de apropriação dos frutos do conhecimento. Com a velocidade tecnológica — a vacina para Covid-19, por exemplo, foi desenvolvida em um ano —, uma patente de 20 anos é monopólio eterno. Temos que ter um mundo mais competitivo, com mais variedade, do contrário sabemos que o consumidor, o cidadão, é lesado, como aprendemos inclusive na teoria convencional.

Os países de alta renda já vacinaram 64% da sua população com uma dose, e os de baixa renda apenas 1,7% da população. Esses mundos estão completamente desconectados. O lema da Agenda 2030, de “não deixar ninguém para trás”, está sendo rasgado hoje no campo das vacinas por essa assimetria tecnológica bárbara que estamos vivendo. Se de um lado há um discurso muitas vezes humanista, de outro, quando olhamos os interesses econômicos, assistimos a diferentes oportunidades de desenvolvimento e a diferenças no campo da ciência, tecnologia e inovação. Hoje se revela de modo muito claro que isso significa exclusão de povos e países do seu direito mais fundamental, que é o direito à vida.

Lançamos um primeiro trabalho com essa rede de pesquisadores que tenta romper essa barreira entre o mundo social, econômico e ambiental para pensar de modo articulado um novo projeto nacional de desenvolvimento, na saúde, por ser uma área intrinsicamente decisiva para o desenvolvimento social e que lidera o processo de transformação tecnológica no contexto da 4ª Revolução, e por gerar emprego como talvez nenhuma outra área. E que só vai crescer, na medida em que há o envelhecimento e uma mudança demográfica profunda.

A saúde pode aparecer não apenas por seu mérito intrínseco, mas como uma área que muda os nossos paradigmas para repensar as nossas próprias apostas e trajetórias de desenvolvimento. A saúde, o bem-estar e a dimensão ambiental são, ao mesmo tempo, frentes da expansão da inovação e do conhecimento e frentes essenciais para o direito ao meio ambiente e à cidadania.

Vamos nos desenvolver e ter capacidade tecnológica para exigir uma globalização que não seja esta, assimétrica e excludente, e sim uma globalização que beba dos grandes pensadores, inclusive brasileiros, como Milton Santos, que nos falava de uma outra globalização, pautada pela solidariedade e pelo acesso.

Keynes mais uma vez nos provoca ao afirmar que “nós precisamos jogar a economia para o banco traseiro da história… os economistas devem ser úteis como os dentistas” (“Possibilidades econômicas para os nossos netos”, 1930). Precisamos voltar a considerar nossa ciência como uma ciência moral em que os direitos sociais e a proteção do planeta devem nortear o modelo de desenvolvimento. Não podemos mais ser vistos apenas como gestores dos balanços públicos e como arautos do equilíbrio em um mundo que precisa se transformar. Devemos mobilizar nossas melhores energias para contribuir em um projeto nacional de desenvolvimento em que o bem-estar e a sustentabilidade ambiental sejam alavancas para gerar emprego, investimento, renda e recursos que financiem o próprio Estado para fazer sua missão principal: defender a vida, cuidar das pessoas e fornecer um futuro para nossa sociedade e nosso planeta.


Artigo veiculado originalmente na Revista dos Economistas edição nº 42, de 13/12/2021 – uma publicação do Conselho Federal de Economia (Cofecon)

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