Uma viagem pela complexa geografia do SUS

Pacientes oncológicos, no Norte, têm de viajar em média 110km para alcançar o tratamento. Estudo da Fiocruz mapeia este tipo de deslocamento – e suas desigualdades. Leia entrevista com Ricardo Dantas, coordenador do projeto

FAB (Força Aérea Brasileira) transporta pacientes oncológicos de Manaus (AM) para o Rio de Janeiro (RJ), durante pandemia
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Ricardo Dantas em entrevista a Flávio Dieguez

São Gonçalo, no Rio de Janeiro, com mais de um milhão de habitantes, é uma das cinquenta maiores cidades brasileiras e um município paradigmático em termos de pobreza e elevada vulnerabilidade social. Essa é a marca do G100, grupo de municípios que está sendo examinado em detalhes por pesquisadores da Fiocruz, para verificar como reagiram ao desafio da pandemia.

Mais amplamente, a análise visa a contribuir para o aprimoramento do SUS. O G100 reúne os 112 municípios brasileiros com mais de 80 mil habitantes, que somam o seu grande porte populacional a alta vulnerabilidade, muitos com déficit preocupante de serviços públicos básicos. O grupo é uma grande vitrine da complexidade da Saúde nacional.

Equacionar essa complexidade é a missão do Proadess, Projeto Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde, da Fiocruz. Tem a função de montar um cenário dos problemas de saúde brasileiros conforme se manifestam em diferentes regiões geográficas e grupos sociais. “Não existe apenas um SUS”, disse o pesquisador em Saúde Pública da Fiocruz e atual coordenador do Proadess, Ricardo Dantas, em entrevista a Outra Saúde, publicada a seguir.

“Há muitos SUS, no sentido de que o SUS aqui é de um jeito, ali, de outro”. Ele falou sobre o estudo dos deslocamentos que os residentes dos municípios do G100 fazem, quando precisam de uma internação hospitalar (gráfico abaixo). O padrão desses deslocamentos em 2018 deverá ser comparado, em etapa posterior, à situação dos atendimentos durante o enfrentamento da pandemia.

O mapeamento do Proadess mostra que quase 40% dos 24 milhões de habitantes do G100 residem no Nordeste, que reúne 47,3% dos municípios. O Sudeste vem em seguida com 19,6% dos municípios, depois a região Norte (17,9%), Centro-Oeste (8,9%) e Sul (6,3%). Cada região tem um padrão de internações: se aconteceram dentro ou fora do município de residência (gráfico abaixo).

Metade dos municípios concentram-se no Maranhão, Pernambuco, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. O estudo examinou alguns tipos de internação hospitalar, desde partos normais, cirurgias obstétricas, internações clínicas e internações oncológicas. Essa classificação reflete a maior ou menor exigência médica de cada tipo. Mas em cada lugar há uma situação específica (gráfico abaixo).

Em geral, quase 30% dos partos, por exemplo, foram realizados na mesma região de Saúde. As internações oncológicas, mostraram maior variedade de situações. No Nordeste e Centro-Oeste, por exemplo, elas exigiram que as pessoas percorressem cerca de 50 quilômetros, em média, para ser internadas. Enquanto na região Norte o percurso chegou a cerca de 110 quilômetros.

Isso reflete uma grande concentração do serviço de atendimento oncológico em poucos locais. Em princípio, em um processo bem-sucedido de regionalização, a maior parte das internações seria feita dentro da própria região de Saúde do residente (gráfico acima). Mas serviços mais complexos tendem a ser mais concentrados. Cabe aos gestores converterem os dados brutos em estratégias de política pública.

De um total de 1.006.254 internações em 2018, mostram os dados, 57,1% foram feitas no município de residência e 42,9%, ou 431.890 internações foram realizadas em outros municípios. Do total, 29,2% das internações foram feita em outras regiões de Saúde que não a do residente.

Chama a atenção que grande parte dos municípios do G100 localizam-se em regiões metropolitanas das capitais (gráfico acima). Há 36 municípios, de fato, situados dentro da região da Saúde da capital. As capitais concentram a oferta dos serviços. Contam-se 49 municípios a menos de 50 quilômetros da capital. Só 28 municípios situam-se a mais de 200 quilômetros da capital. Fique com a entrevista.

Você pode nos dar uma ideia de como o Proadess (Projeto de Avaliação do Desempenho dos Serviços de Saúde) pode auxiliar os gestores de saúde?

É um projeto voltado para gestores de secretarias municipais, secretarias estaduais, ministério da saúde, conselhos – temos um diálogo importante com os conselhos de saúde como o Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde), com o Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde). É um diálogo acadêmico, e que pode servir muito para a sociedade civil organizada. Mas o ator principal, com quem se busca dialogar, é sem dúvida, o gestor: a pessoa que trabalha com planejamento de saúde, com a reflexão sobre o monitoramento dos serviços de saúde.

Existe nesse trabalho uma expectativa de alterar diretrizes do SUS, quer dizer, o pessoal responsável pelo SUS pode pensar nessa pesquisa como uma contribuição para melhorar sua gestão?

Acho que a principal preocupação é, por um lado, fornecer informações sobre o desempenho para que as pessoas possam comparar e também subsidiar as ações, o planejamento, subsidiar programas. Entendemos o Proadess como uma plataforma: fazemos várias coisas diferentes. Essa pesquisa sobre deslocamentos é uma delas. Anteriormente, avaliamos os impactos do programa Mais Médicos no conjunto de municípios mais vulneráveis.

Quantas pessoas trabalham, participaram dessa pesquisa do Proadess. Nessa pesquisa especificamente, quantos profissionais estiveram diretamente envolvidos? Quanto tempo tem isso demorou?

O Proadess foi iniciado no ano 2000 e muita gente já passou pela nossa equipe, no sentido de contribuições, tanto para a sua constituição quanto para o sua evolução ao longo do tempo. Inicialmente era um projeto conceitual, em resposta a um relatório da Organização Mundial de Saúde, que definiu o desempenho dos sistemas de saúde por meio de indicadores sintéticos. Tentando sintetizar em números o que era o desempenho de um sistema.

É muito difícil dessa forma se pensarmos que é preciso acompanhar diversas dimensões. E isso é um pouco o que se busca fazer no Proadess. A nossa equipe agrega outros pesquisadores que a gente chama para determinadas atividades. São pessoas ligadas à secretaria estadual de Saúde do Rio de Janeiro, universidades, que dialogam conosco. Mas, marcadamente, o trabalho é feito pela equipe, com servidores da Fiocruz, fora a equipe de bolsistas, que faz toda essa parte de levantamento das informações, de produção das informações e de disponibilização no site.

Qual foi a ideia dessa primeira parte da análise dos deslocamentos que os pacientes do SUS fazem para ser atendidos? Foi para estabelecer um patamar, um padrão prévio, para criar um ponto de referência e depois comparar com o período da pandemia?

Sim, a ideia foi olhar o que é o habitual. Claro que é uma ideia complexa. Então, talvez seja possível perceber, quando compararmos com 2020, com o efeito da pandemia, uma variação mais de volumes do que propriamente de padrões de fluxos. Por quê? Porque esses municípios do G100 tem baixa disponibilidade de recursos de atenção a saúde. Mais ainda o que vamos apresentar em breve que são os municípios com 20% da população em situação de extrema pobreza, municípios pequenos remotos que tem menos oferta ainda. O normal é se deslocar para acessar cuidados resolutivos em tempo oportuno.

Como assim?

O deslocamento na região de saúde, de certa maneira, está adequado. Porque precisar tomar uma vacina em outro município não é o ideal, se precisar levar uma criança em outra cidade para engessar o braço que quebrou, também. Agora uma internação oncológica não tem problema, é a lógica do sistema porque você não vai ter serviços, especialmente de maior complexidade, disponíveis em todos os municípios. Até porque, por exemplo, um profissional super especializado em oncologia, se ele está num município de dez mil habitantes, vai atender uma pessoa a cada três meses.

Em termos de equipes muito qualificadas, existe inclusive uma questão de escala econômica. Do investimento que tem que ser feito para um leito de UTI, em uma atenção de qualidade a neoplasias. Então, algum fluxo vai haver sempre. O grande desafio, é importante dizer isso, é que muitos dos municípios do grupo do G100 são metropolitanos. São Gonçalo é o segundo maior município do estado, só é menor que o Rio de Janeiro, e a população precisa se deslocar para obter atenção a saúde em diversas situações.

Na dinâmica metropolitana esses deslocamentos fazem parte do cotidiano. Em São Paulo também se verifica isto. São Gonçalo tem um milhão de habitantes e tem pouca oferta. Magé tem mais de trezentos mil habitantes e quase nenhuma oferta do SUS. Belford Roxo, outro município de porte populacional, muito pobre, tem pouca oferta SUS. A necessidade de deslocamentos para atenção oncológica faz parte. Agora, para uma internação muito básica, é um problema.

Por isso foi importante a participação da Frente Nacional de Prefeitos nessa pesquisa?

Por que foi importante que a Frente fizesse a classificação dos municípios para efeito da pesquisa?

É uma forma de articulação que diz respeito à capacidade de pressão política. O G100 foi elaborado pela Frente Nacional de Prefeitos. É necessária uma certa organização desses municípios para se posicionar politicamente, como uma forma de pensar onde é importante expandir determinados serviços. Muitos desses municípios, por exemplo, receberam campi de universidades públicas. Junto com os municípios que concentram 20% da população em extrema pobreza, eram os dois grupos prioritários para o Programa Mais Médicos. Tanto era importante para o programa mandar médicos para as áreas remotas da Amazônia quanto para as periferias metropolitanas, pois são áreas carentes, de vazios assistenciais.

Por que se fez o corte de examinar municípios com mais de 80 mil habitantes? E não 100 mil? (O corte também limita os municípios por terem 20% da população em situação de extrema pobreza).

Na verdade começou com 100 mil mas depois se escolheu 80 mil pra ampliar o leque de municípios. É um corte para tentar pensar o grosso dos municípios brasileiros de maior porte populacional. A maioria absoluta dos municípios brasileiros não têm nem 30 mil habitantes. Acima de 80 mil não chegam a quinhentos municípios. Só que ao mesmo tempo em que São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói, Curitiba tem grande porte, há muitos municípios pobres. Inclusive no G100 há duas capitais, Belém e Macapá. São exemplos de municípios de maior porte populacional e alta vulnerabilidade socioeconômica.

Quando se avaliam os recursos de uma região, há algum tipo de distinção do tipo de hospitais disponíveis? Aí se incluem hospitais privados?

Há três tipos: o hospital que é única e exclusivamente SUS, o que é única e exclusivamente privado, e o hospital conveniado, que é privado mas presta serviço para o SUS. Normalmente a gente vai usar essas duas categorias: SUS e conveniado ao SUS. O hospital privado conveniado tem uma lógica de mercado. Há fechamento de unidades onde não tem mercado e concentração nas cidades onde tem mercado. É importante sempre destacar que boa parte dos hospitais privados sobrevivem de recursos do SUS.

Fazendo um balanço, pelo que se sabe da pandemia já dá pra ter uma ideia onde ela pode ter causado mais problema?

Há muitos SUS ao redor do país, então é difícil precisar. O principal problema é quando a oferta de serviço de saúde, especialmente de maior complexidade hospitalar, é muito concentrada.

Nas regiões mais pobres do país, há gargalos mais significativos, basta ver o que aconteceu no Amazonas durante a pandemia. Porque nos casos graves há sempre deslocamentos do interior de Pernambuco para ir para Recife, que já tem seus problemas. A lógica em Manaus é semelhante, pois é o único município que tem serviços de alta complexidade em saúde no estado inteiro, que é maior que muitos países.

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