Nem água potável

Lei criada para proteger indígenas e quilombolas durante a pandemia foi completamente descaracterizada por Jair Bolsonaro e se torna o projeto mais vetado da história

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Jair Bolsonaro sancionou ontem a Lei 14.021, baseada em projeto da Câmara, que reconhece povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais como “grupos de extrema vulnerabilidade” durante a pandemia de covid-19 e, por isso, determina ações específicas para sua proteção. Entre outros pontos, o texto garante equipes multiprofissionais de saúde indígena treinadas para a pandemia, locais adequados para isolar infectados e a disponibilização de testes. Poderia ser uma notícia boa, apesar de só chegar três meses após os primeiros registros de infecção nessas comunidades (veja aqui e aqui). 

Mas a caneta do presidente fez mais do que assinar o texto aprovado pelo Congresso: vetou os trechos que previam a obrigatoriedade de o Poder Público garantir oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI; de comprar ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea; e até de fornecer acesso a água potável, cestas básicas e materiais de higiene e limpeza. Além disso, o governo fica desobrigado de instalar internet nas aldeias e facilitar aos indígenas e quilombolas o acesso ao auxílio emergencial. Bolsonaro também barrou a obrigação de o Executivo liberar verbas emergenciais para a saúde indígena. Assim, o governo não precisa mais assumir as despesas do Plano Emergencial criado pela mesma lei, nem transferir aos entes federados recursos para a implementação do plano. Pode-se dizer que, com isso, inviabiliza a aplicação da própria lei. “Bolsonaro assume publicamente com esses vetos a determinação de consumar o seu projeto genocida, de ‘limpar a área”, resume a Apib (Associação dos Povos Indígenas Brasileiros), em nota.

Foram, ao todo, 16 vetos ao texto. O que faz dele o projeto de lei mais vetado na história brasileira, segundo o Cimi (Centro Indigenista Missionário).

Em geral, a justificativa foi a de que a lei não poderia criar despesa obrigatória sem demonstrar o impacto orçamentário e financeiro. Acontece que, ainda em março, o STF autorizou o governo a descumprir leis orçamentárias para poder gastar mais durante a pandemia. “A base legal para aprovar o auxílio emergencial, por exemplo, é a mesma para implementar medidas como essas”, explica Juliana Damasceno, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), no El País.

Chama a atenção, ainda, uma outra justificativa: para se esquivar de garantir acesso facilitado ao auxílio emergencial, o presidente alegou que a proposta é contrária ao interesse público “em razão da insegurança decorrente da necessidade de deslocamento da entidade pagadora a milhares de comunidades do Brasil, algumas das quais não se tem um mapeamento preciso, o que revela a real impossibilidade operacional de pagamento em tempo oportuno”. Já comentamos mais de uma vez como a necessidade de ir à cidade para buscar o auxílio é um fator importante de disseminação do coronavírus pelas comunidades adentro. Mas, para o governo Bolsonaro, perigoso é o deslocamento da entidade pagadora.

Segundo a Apib, 453 indígenas já morreram por covid-19 e 12.768 foram infectados. Entre quilombolas, são 128 óbitos e 2590 casos confirmados, conforme um levantamento da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e do Instituto SocioAmbiental. Já que o presidente só gosta de falar em mortos por milhão, ficamos assim: hoje, entre indígenas, há 566 mortos por milhão no Brasil, contra 324 na população em geral. Em relação aos quilombolas, a conta nem é possível, já que até hoje o país não tem dados oficiais sobre quantas pessoas vivem nessas comunidades.

Em tempo: o presidente da Funai está com a doença e já afirma tomar hidroxicloroquina.

PARA DERRUBAR

A lei sancionada por Bolsonaro saiu no Diário Oficial na madrugada de ontem e começou a repercutir durante a manhã. Horas depois, o ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou – a partir de uma ação movida na semana passada pela Apib e seis partidos –  cinco medidas que o governo federal precisa adotar para proteger as comunidades indígenas (mas não as quilombolas): instalar em até 72 horas, uma Sala de Situação para a gestão de ações de combate à pandemia, com a participação de comunidades indígenas, Procuradoria Geral da República (PGR) e Defensoria Pública da União (DPU); em até dez dias, ouvir a Sala de Situação para elaborar um plano com criação de barreiras sanitárias em terras indígenas; em 30 dias, elaborar um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, com a participação das comunidades indígenas e do Conselho Nacional de Direitos Humanos; estabelecer nesse Plano medidas de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas; garantir que o Subsistema Indígena de Saúde atenda também aos indígenas que vivem nas cidades ou em terras e reservas ainda não-homologadas. Os prazos determinados porém, não nos parecem muito satisfatórios. 

O melhor é que o Congresso derrube os vetos do presidente. Nesse sentido, a oposição começou a pressionar o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para convocar uma sessão conjunta de deputados e senadores. Segundo o Estadão, a próxima reunião está prevista para a semana que vem e há outros vetos na frente (como aquelas exceções à obrigatoriedade do uso de máscaras) que precisam necessariamente ser votados antes. Porém, a oposição pede que os vetos contra indígenas e quilombolas sejam incluídos na mesma sessão.

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