O coronavírus no Brasil de dentro

Quase 60% dos casos de covid-19 estão hoje nas cidades do interior. Todos os municípios com mais de 50 mil habitantes já têm registros de infecções

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O coronavírus está definitivamente tomando o interior do Brasil. O boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde ontem mostra que 59% dos casos registrados no país estão hoje concentrados no interior, enquanto dois meses atrás eram apenas 35%. Em 19 estados, a proporção de registros já é menor nas capitais do que nos outros municípios. Quando se olha para as mortes a situação também está mudando: 48% delas estão no interior. O percentual pode subir, já que, como há um intervalo de tempo entre as contaminações e os eventuais óbitos, esse último número demora mais para crescer.

O coronavírus só não chegou às cidades muito, muito pequenas. Dos 980 municípios que ainda não tiveram nenhum registro, 969 têm menos de 25 mil habitantes; as restantes têm entre 25 mil e 50 mil. Fazemos uma ressalva: mesmo sem registros oficiais, pode haver casos não diagnosticados.

Ontem, o governo de São Paulo anunciou que pela primeira vez teve mais registros no interior do que na capital. Isso é esperado, até porque vários municípios começaram a reabrir seus estabelecimentos de forma precipitada. Sorocaba, que teoricamente ainda está na ‘fase laranja’ no plano de reabertura, está agora com todos os leitos de UTI para covid-19 ocupados – tanto na rede pública como na privada – e com três pacientes na fila do SUS. Vai ter que fechar o comércio de novo esta semana.

Os dados não indicam, porém, que as capitais estejam em situação tranquila. Partindo de casos registrados nos últimos 30 dias, um modelo estatístico desenvolvido por pesquisadores de física e matemática da USP mostra que 20 das 27 capitais ainda estão com aumento rápido dos novos registros; seis estão estáveis, e só uma, Recife, está de fato vendo a desaceleração das infecções. No geral, esse crescimento acelerado é observado em 20% das cidades brasileiras (1.138 do total).

Se o Brasil estivesse seguindo as diretrizes estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a reabertura segura, oito das principais capitais não deveriam ter flexibilizado suas medidas de isolamento. Um levantamento da Universidade de Oxford comparou as recomendações do organismo com a situação real das capitais brasileiras e viu que São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Fortaleza, Goiânia, Manaus e Porto Alegre não obedeciam aos critérios. As principais deficiências, segundo os autores, são a falta de testes, a ausência de um programa de rastreamento de contatos dos infectados e o deserto de informação sobre o que os brasileiros devem fazer se tiverem sintomas ou se tiverem contato com quem teve sintomas.

Aliás, um estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas alerta para o risco de um novo pico de contaminações em Manaus entre julho e agosto. De acordo com a equipe, podem ser alcançados 200 mil casos simultâneos de covid-19. “Todo dia temos centenas de novos casos. O número de óbitos está bem acima do normal, com cerca de dez por dia causados pela covid. Isto é preocupante. Dez óbitos por dia causados por uma doença, em tempos normais, seria razão para grande alarme, mas as pessoas naturalizaram esta situação”, diz o coordenador da pesquisa, Wilhelm Steinmetz, no Estadão.

O país registrou 748 óbitos e 24.358 novos casos de segunda para terça-feira, levando os números totais para 51.407 mortes e 1.111.348 contaminações. Ao defender a abertura do comércio, o presidente Jair Bolsonaro chamou ontem as ações de combate ao coronavírus de ‘exageradas’. “Porque novas informações vêm do mundo todo, vêm da OMS, através dos seus equívocos, que talvez tenha havido um pouco de exagero no trato dessa questão lá atrás”, disse ele. Não há nenhuma nova informação do “mundo todo”, nem da OMS nesse sentido.

Era de se esperar

A prefeitura do Rio de Janeiro está fazendo uma pesquisa para testar aleatoriamente pessoas em quatro comunidades “adensadas”. Vão ser cinco rodadas de testes sorológicos (que detectam a presença de anticorpos), e os resultados da primeira rodada acabam de sair. A  prevalência de infecções encontrada foi altíssima: 28% na Cidade de Deus, 25% em Rio das Pedras, 23% na Rocinha e 19% na Maré. Também foram testados moradores de Realengo e Campo Grande, dois bairros grandes da periferia da cidade. Neles, foram encontrados respectivamente 9% e 5% de resultados positivos. Apesar disso, nesses dois bairros as taxas de letalidade foram maiores do que nas favelas, um dado que carece de  interpretação. Ao todo, foram testadas 3,2 mil pessoas e 556 apresentaram anticorpos. Mas mais da metade (52%) de quem tem anticorpos, portanto já se contaminou, nunca apresentou nenhum sintoma de covid-19.

E a taxa de mortalidade pela doença entre os indígenas da Amazônia Legal é nada menos que 150% maior do que a média nacional, segundo uma análise da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e do Ipam (Instituto de Pesquisa da Amazônia). A taxa também é 20% maior do que a da região Norte como um todo, que tem o índice mais alto das cinco regiões brasileiras. Alguns fatores ajudam a explicar a discrepância. Um pode ser a maior subnotificação (com menos casos identificados, a proporção entre mortes e casos tende a subir); mas a deficiência no acesso aos serviços de saúde, a invasão de terras levando o vírus pelas comunidades adentro e o desmatamento foram apontados na análise.

Em tempo: o jurista e filósofo Silvio Almeida foi o entrevistado da noite de ontem no Roda Viva e fez uma cirúrgica fala em defesa do SUS: “A gente tem percebido que os maiores afetados são as pessoas negras e que essas pessoas não estão morrendo porque o vírus faz uma escolha racial, estão morrendo porque o sistema de saúde não tem condição de lidar com a demanda provocada pela doença (…). Ser antirracista é, portanto, incompatível com a defesa de políticas de austeridade nesse momento. Ser antirracista é incompatível com outra coisa que não seja a defesa do SUS, ele tem que ser fortalecido”.

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