O avanço da crise e a solução disparatada do governo

Sob falácia de que o dinheiro acabou, Brasil quer pegar empréstimo em dólares. Enquanto isso, desemprego dispara e Câmara aprova MP do corte de salários

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Os cortes nos salários e jornadas de trabalhadores assalariados está em vigor desde que a MP 936 foi assinada, no início de abril. Como vimos ontem, o número de pessoas afetadas já é imenso (8,1 milhões de empregados), mas ainda está abaixo do esperado pelo governo federal (que prevê nada menos que 25 milhões com contratos suspensos ou salários reduzidos) porque a medida não terminou de tramitar no Congresso. Pois ontem a Câmara deu um passo nesse sentido, aprovando o texto.

O relator Orlando Silva (PCdoB/SP) tinha feito uma mudança para aumentar a proteção do governo federal a quem sofre os cortes. Na MP, o valor máximo dessa compensação seria de R$ 1.813, e Silva tentou mudá-lo para R$ 3.135. Não deu. Os partidos do Centrão, agora ‘casados’ com Jair Bolsonaro, barraram o aumento.

Segundo o governo, a MP serve para proteger empregos, mesmo que autorize não apenas os cortes mas a suspensão temporária de contratos, deixando as pessoas sem trabalho e sem salário por até três meses. O parecer de Silva aumentava o benefício dado pelo governo a essas pessoas e ao mesmo tempo propunha a ampliação do prazo para a vigência das medidas. Esse último ponto passou, mas a compensação segue baixa. O que significa que, pelo texto atual, cortes e suspensões vão poder se estender por mais do que três meses, com os trabalhadores recebendo pouco. A MP agora vai para o Senado.

Ainda falando em emprego e precariedade, um dado quase inusitado: em meio à crise, a renda média brasileira subiu e chegou a R$ 2.425, que é o maior nível da série histórica. Soa estranho, não? Acontece que os mais pobres estão ficando desempregados primeiro. Com essas pessoas expulsas do mercado de trabalho, seus baixíssimos salários deixam de entrar na conta dessa média, empurrando-a para cima. Do total de 4,9 milhões de postos de trabalho cortados, 3,7 milhões eram informais.

As contas públicas

E o governo federal registrou em abril um rombo de R$ 92,9 bilhões nas contas públicas, o pior resultado de toda a série histórica, iniciada em 1997. A reportagem da Folha diz que, do lado da arrecadação, a receita total caiu 32% em relação a abril de 2019. Na despesa, houve alta de 45%.

Há pouco tempo criticamos aqui a intenção do governo brasileiro de pedir US$ 4 bilhões emprestados a instituições financeiras internacionais. No Nexo, a economista Laura Carvalho explica não só por que essa ideia é perigosa (assumir uma dívida em dólares nesse momento significa sufoco certo no futuro) mas também por que não se deve acreditar que o dinheiro acabou. De acordo com ela, o governo deveria se concentrar não em pedir dinheiro fora, mas em vender ainda mais títulos públicos para investidores do mercado.

Isso já está sendo feito em alguma medida e não têm faltado compradores, que são basicamente os ricos. Eles acabam se beneficiando dos juros pagos pelo governo federal, o que é um problema do ponto de vista da distribuição da riqueza, mas pelo menos a dívida é na moeda nacional. “Alguns governos já tinham patamares de dívida pública superiores a 100% do PIB antes da pandemia. A dívida pública do Japão, por exemplo, deve alcançar mais de 200% do PIB após a crise da covid-19. Na Itália, as previsões já giram em torno de uma razão dívida-PIB de 160% no fim do ano”, pontua.

Ela explica ainda que, como hoje o Brasil não acumula dívidas em dólar com bancos estrangeiros ou com o FMI, as desvalorizações do real em 2008, 2015 ou agora não nos levaram a uma situação de crise cambial como a que foi vista em 1999. E conclui: “Não é a falta de dinheiro que está limitando um combate ainda mais efetivo dos efeitos dessa pandemia-crise. A julgar pelo anúncio de uma eventual tomada de empréstimos em dólar pelo Ministério da Economia, que na prática nos levaria à situação estapafúrdia de trocar dívida em reais por dívida externa em um país com altíssimo patamar de reservas internacionais, as maiores restrições nesse momento estão vindo da política”.