Para entender a Operação Placebo

Suspeitas de desvio na saúde do Rio de Janeiro são graves, mas também acendem alerta sobre perseguição política

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Passava das sete da manhã quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Placebo tendo como alvo principal o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC). Os policiais cumpriram mandados de busca e apreensão no Palácio Laranjeiras, residência oficial do governo, e em outros endereços ligados ao chefe do Executivo fluminense que teve celular e computador confiscados. Ainda naquela manhã, ao ser questionado por um apoiador em Brasília, Jair Bolsonaro abriu um largo sorriso e deu “parabéns” à PF.

As investigações no Rio têm como pano de fundo tanto as acusações do ex-ministro Sergio Moro de que o presidente tenta interferir na Polícia Federal e obter informações, reforçadas pela gravação da reunião ministerial do dia 22 de abril e alvos de inquérito, quanto a pandemia.

Existem, até agora, duas ações do governo fluminense para o combate ao novo coronavírus suspeitas de corrupção: a compra de ventiladores pulmonares e a implantação e operação de hospitais de campanha. No caso dos respiradores, o contrato soma R$ 138 milhões. Desse total, R$ 33 milhões já foram pagos na aquisição de mil equipamentos. Mas apenas 52 aparelhos foram entregues – todos superfaturados, mas nenhum servindo para o tratamento de doentes da covid. Esse primeiro escândalo veio à tona graças a uma operação do Ministério Público do Rio batizada de “Mercadores do Caos” que, no começo de maio, levou à prisão um personagem central da trama: o ex-subsecretário de saúde Gabriell Neves.  

No caso das unidades temporárias de atendimento, os valores são ainda mais astronômicos: um contrato de R$ 836 milhões foi assinado com uma organização social (OS) chamada Iabas, sigla para Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde. A previsão era que sete hospitais de campanha fossem entregues até abril. Hoje, o segundo deles será inaugurado em São Gonçalo. O primeiro a abrir, com atraso e problemas de infraestrutura, foi o do Maracanã. Mais de R$ 256 milhões já foram pagos pelo governo à OS em um arranjo também suspeito de favorecimento, já que a Iabas apresentou proposta um dia antes da abertura do processo de contratação, além de ter recebido a colher de chá de apresentar como garantia do multimilionário contrato apenas 1% do valor total.

Aqui entra em cena o segundo personagem-chave da trama: Mário Peixoto. Ele também foi preso em maio, mas a pedido do Ministério Público Federal em um desdobramento da Lava Jato denominado “Operação Favorito”. Segundo essas investigações, Peixoto seria uma espécie de sócio oculto de várias empresas e entidades que negociam contratos superfaturados com o poder público desde os tempos do ex-governador Sérgio Cabral. Os esquemas teriam continuado no governo Witzel (há R$ 120 milhões em contratos sob suspeição). Os hospitais de campanha da Iabas ainda não entram nessa conta, mas há indícios que Peixoto esteja por trás disso também. Foram descobertos e-mails em que o homem apontado como seu principal operador –Alessandro Duarte – troca planilhas e documentos detalhados sobre os custos dessas unidades com a figura apontada como o contador do grupo criminoso, Juan Neves. 

Os fios do novelo

Mas como tudo isso chegou a Wilson Witzel? Pelo que se sabe até agora, já que o inquérito tramita em sigilo, aquele primeiro personagem-chave, Gabriell Neves, foi visitado na cadeia por dois procuradores do MP do Rio a propósito da investigação sobre as fraudes nos hospitais de campanha. Um deles – e esse detalhe deixa tudo mais intrincado – era Claudio Calo, que se declarou impedido de investigar o senador Flávio Bolsonaro no caso de Fabrício Queiroz. Pois bem: tomaram seis horas de depoimento, e esse relato, ainda misterioso, é uma das pernas da investigação.

A outra é uma interceptação telefônica de Luiz Roberto Martins, ‘empresário’ também preso na Operação Favorito. “O 01 do Palácio assinou aquela revogação da desclassificação da Unir”, informou Martins ao ex-prefeito de Nova Iguaçu, Nelson Bornier, no dia 24 de março. O Instituto Unir Saúde é outra OS, e estava impedida de assinar contratos com o poder público. Seus verdadeiros donos seriam Martins e Mário Peixoto. O 01 do Palácio seria Wilson Witzel, que de fato assinou um despacho no dia 23 de março permitindo que a OS voltasse à cena.  

Mas os indícios que parecem mais consistentes vêm de uma terceira frente de investigação, que envolve a primeira-dama do Rio, Helena Witzel. Durante a Operação Favorito, foi encontrado um contrato entre o escritório de advocacia dela e uma empresa (DPAD Serviços Diagnósticos Limitada) que possui como sócios Alessandro Duarte e Juan Neves, os mesmos que apareceram parágrafos atrás trocando e-mails sobre os hospitais de campanha e são suspeitos de operar os esquemas de Mário Peixoto. A decisão judicial do Supremo Tribunal de Justiça que autorizou as buscas e apreensões realizadas ontem também cita depósitos mensais de R$ 15 mil feitos desde agosto do ano passado pela DPAD em nome da primeira-dama, num contrato que soma R$ 540 mil

Esse verdadeiro novelo de lã tem ainda um fio envolvendo o secretário estadual de Desenvolvimento Econômico do Rio, Lucas Tristão – que era aluno e já foi sócio de Wilson Witzel, e também já atuou como advogado em favor de empresas ligadas a Mário Peixoto. Para se ter uma ideia da embrulhada, Tristão passou o domingo de Páscoa na casa de Peixoto (num encontro que teria sido foco de transmissão de coronavírus, inclusive). O secretário é outro personagem-chave nessa história por ter sido apontado como suspeito de criar dossiês contra os 70 deputados estaduais pelo presidente da Assembleia Legislativa do Rio, André Ceciliano (PT), que acionou a Polícia Federal em fevereiro, depois que um grampo foi encontrado no gabinete de um parlamentar.  

Uma coisa e outra

Não deixa de ser irônico já que a suspeita de perseguição política contra adversários é justamente o que paira no ar desde ontem. Witzel foi contundente em afirmar que a Operação Placebo consagrou a interferência anunciada por Bolsonaro na Polícia Federal. A ação aconteceu um dia depois que o novo superintendente da PF no Rio, Tácio Muzzi, assumiu

Mas o que acendeu mesmo esse sinal vermelho foi uma entrevista dada pela deputada federal mais próxima de Bolsonaro, Carla Zambelli, na segunda-feira. “A gente já teve algumas operações da Polícia Federal que estavam ali, na agulha, para sair, mas não saíam. E a gente deve ter, nos próximos meses, o que a gente vai chamar, talvez, de ‘Covidão’ ou de… não sei qual vai ser o nome que eles vão dar… mas já tem alguns governadores sendo investigados pela Polícia Federal”, disse à Rádio Gaúcha. ‘Como ela sabia?’ é a pergunta que não quer calar. 

Antes, no dia 13 de maio, o deputado estadual Anderson Moraes (PSL) – outro bolsonarista de carteirinha –, disse que ele tinha certeza de que “o japonês” (referência ao policial federal que ficou famoso na Lava Jato) bateria na porta do governador do Rio muito antes do que ele imaginava. A afirmação foi feita durante uma transmissão ao vivo intitulada “A hora do juiz virar réu”. 

“Estranha-me e indigna-me sobremaneira o fato absolutamente claro de que deputados bolsonaristas tenham anunciado em redes sociais nos últimos dias uma operação da Polícia Federal direcionada a mim, o que demonstra limpidamente que houve vazamento, com a construção de uma narrativa que jamais se confirmará”, declarou Witzel à imprensa ontem. Mais tarde, em uma reunião com seus secretários, o governador do Rio afirmaria que a Operação Placebo era uma mensagem do presidente da República aos outros governadores e políticos da oposição. “É para intimidar”, teria reforçado, anunciando também que não renunciaria ao mandato. O governador, contudo, deve enfrentar um processo de impeachment, segundo apurou a colunista Berenice Seara, do jornal Extra

De São Paulo, João Doria (PSDB) – outro adversário político de Bolsonaro – demonstrou preocupação. Segundo o governador paulista, a operação da PF traz maus sinais para o já anuviado horizonte democrático do país. “Independentemente da análise, e toda investigação necessária deve ser feita onde há suspeita, a operação que foi anunciada antecipadamente por uma deputada aliada, e comemorada pelo presidente, insinua a escalada autoritária e isso é preocupante“, afirmou o tucano.

“Eu não posso falar sobre o caso específico por não conhecê-lo, mas há uma tentativa em curso de ameaçar qualquer voz dissonante a partir da instrumentalização do sistema de perseguição penal”, concordou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PcdoB). “Isso fica nítido quando a deputada ameaça governadores um dia antes da operação”, afirmou.

Vários governos são alvo de investigações por suspeita de desvio de dinheiro público durante a pandemia. Um levantamento feito pelo jornal O Globo dá conta de pelo menos cinco: Paraíba, Pará, Roraima, Santa Catarina e Ceará. Há situações que podem ganhar holofotes, como em São Paulo, onde a prefeitura contratou a Iabas, mesma OS suspeita de favorecimento no contrato dos hospitais de campanha fluminenses, para gerir o Hospital de Campanha do Anhembi. 

Ao mesmo tempo, Wilson Witzel lembrou que andam lentas as investigações contra o filho 01 de Jair Bolsonaro. A última envolvendo o senador Flávio é a denúncia do empresário Paulo Marinho (ouvido pela segunda vez pela PF ontem, aliás) de que ele teria sido favorecido por um vazamento da mesma Polícia Federal, que o levou a demitir Fabrício Queiroz e a filha deste sumido personagem no caso das rachadinhas – investigação que, além do mais, teria sido adiada para favorecer o capitão reformado, então candidato à Presidência. Também 02 e 03 são alvo de inquérito que investiga a atuação do Gabinete do Ódio na perseguição de adversários políticos na internet. E, é claro, o próprio presidente é alvo de suspeita de interferência na PF para atingir seus próprios objetivos, seja os de proteção de familiares e amigos, seja os de perseguição política. 

Quando todos esses elementos, que não são poucos, são examinados à luz do caso do Rio de Janeiro, surge a sensação de que podemos estar diante não de uma trama de exclusão – uma coisa ou outra –, mas de convergência, em que uma perigosíssima interferência nas estruturas do Estado com fins de perseguição política pode se servir à vontade dos indícios de desvios de dinheiro público. 

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