Manifestação Fora Bolsonaro em São Paulo

No dia 2 de outubro uma esperada manifestação da esquerda tentou atrair o centro e centro-direita… Mas havia um elefante na avenida.

Foto: Alice Vergueiro

Saí de casa às 12h30 para ir ao ato Fora Bolsonaro deste sábado na avenida Paulista. As expectativas eram grandes, pois no 7 de setembro intensa atenção foi dada ao ato golpista de Bolsonaro, que, como resultado de forte mobilização e alto investimento, reuniu mais de 100 mil na mesma avenida Paulista de hoje.

Foi difícil avaliar o número de manifestantes hoje, mas consegui uma aproximação creio razoável, comento no final. Mas certamente foi abaixo das expectativas. O sonho seria um despertar da sociedade como um todo, que viria às ruas para deter o presidente. Mas a adesão não massiva trouxe questões para reflexão na esquerda.

Por um lado, pode ser que a carta de Bolsonaro, psicografada de Michel Temer, tenha de fato acalmado a crise institucional que incendiou o noticiário duas semanas atrás, o presidente agora estaria domado e ofereceria relativamente pouco perigo, podendo ser arrastado a uma humilhante derrota eleitoral em 2022.

Talvez fosse esse o enorme elefante na avenida, sobre o qual ninguém falou mas que marcou todas as falas: não vai ter impeachment. Cobra-se muito de Lula maior empenho nas manifestações, mas acho que sua participação aberta desmobilizaria quem tem melindres com qualquer sinal de campanha eleitoral da esquerda. Vale lembrar que o então ministro Sérgio Moro tentou enquadrar Lula na Lei de Segurança Nacional por uma fala pública anódina logo depois de sair da prisão.

Afirmar que o PT avalia que melhor é a eleição do que o impeachment não é exatamente incorreto. Quem não vai deixar passar o impeachment é o Congresso, e o PSDB e outros ‘democratas’ é que não se posicionaram a favor do processo de impedimento do presidente e votam com o governo em outras pautas). Ademais, há questões de segurança pessoal dele.

De qualquer forma, segui pela avenida em um sábado nublado mas não ameaçador. Vindo do Paraíso em direção à Consolação, vi primeiro os vendedores de bandeiras e camisetas. Um rápido recenseamento das mensagens mostrou que havia bandeiras do Brasil e as cores nacionais dispostas em várias configurações, muito Fora Bolsonaro e algum Lula, em efígie ou em caracteres. A bandeira LGBTQ+ figurava nos varais estendidos nas esquinas e canteiro central. Marielle, Che Guevara e Mandela também apareciam, em menor destaque. Em resumo, uma aposta conservadora de conciliação e convivência por parte dos vendedores: vai ter verdeamarelo mas vai ter Lula.

Mas, de modo belo e surpreendente, um fotógrafo imprimiu imagens muito boas, algumas delas que reconheci de jornal ou site de notícias. Estavam expostas à maneira do ambulantes com bandeiras no varal e tal.

Avancei pela avenida para dar uma olhada inicial nos 10 carros de som dispostos no asfalto, dispostos no asfalto desde a FIESP até o Conjunto Nacional. Vi bastante gente, sindicalistas, estudantes, coletivos de juventude, movimento social, sem-teto, partidos vários. Vi os carros da CUT e outros sindicatos, os carros de apoio e do Bloco Feminista, mais perto do MASP, o carro da UNE, UBES, UMES e entidades estudantis, logo na frente de outro carro que depois reuniu um pessoal do PSDB, e que me impressionou muito, como relato abaixo. Vi logo depois os carros do PSTU e ainda o do PCB, este quase na esquina da Augusta.

Cheguei ao fim da avenida impactado pelo clima de carnaval, pela energia e antecipação da preparação em curso. Eram perto das 13h, e naquela hora achei que ia encher e ser lindo. Mas me caiu a ficha de que não vira ninguém da centro-direita, a quem a organização do ato tentou cortejar e persuadir a vir hoje. A presença de toda a esquerda era notável, desde autonomistas até a Força Sindical, incluindo o PDT, PSTU e PCO. Mesmo o verdeamarelo não era tão presente assim, a despeito de alguns enxertos meio forçados, como a faixa onde o vermelho da CUT ia suturado a um verdeamarelo.

Decidi então focar nas mensagens manuscritas e nas performances ou fantasias que visse. A estreiteza da mensagem principal – Fora Bolsonaro – deixava pouca margem no carro de som para formulações mais interessantes, então apostei que o manifestante traria material mais inventivo.

Os movimentos até trouxeram material instigante, como figuras infláveis – bujões de gás, pacote de arroz, Bolsonaro etc – e também vi três estações diferentes onde se faziam cartazes na hora. Um deles naquele estilo incrível do cartaz de supermercado. Outro era um silk-screen (Seja Marginal Seja Herói) e o terceiro um moço grafiteiro.

O contraste entre a pobreza das formulações institucionais e as espontâneas, porém, era gritante. As pautas econômicas até apareceram bastante.

Até achei muito bom separar os carros de som e dispô-los ao longo da avenida. Assim cada um assiste o que quiser, passeando pelo asfalto como alguém que desliza por sua linha do tempo. A unidade das vozes se perde assim, mas dado que os oradores oficiais eram principalmente dirigentes de burocracias, foi uma benção não ser forçado a ouvir uma sucessão de discursos gritados por funcionários e poder sair fora quando quisesse.

Esperava M na esquina e observei a coluna de uns 30 PMs se posicionando para fazer a revista de mochilas e sacolas. Paravam jovens. Nunca vi isso em manifestação verdeamarela. Depois ainda chegaram 5 cavalos da PM. O saxofonista sob a marquise do Conjunto Nacional atacou de “Fagulhas pontas de agulha, brilham estrelas de São João”, emprestando curiosa trilha sonora à operação policial em curso.

Vi chegar do lado da Consolação um grupo do POR4 e da FOB, umas 30 pessoas. Vi passar um moço comum cartaz “Construir a Greve Geral” e outro com uma camiseta do Marighella – e ainda outro com um cartaz “Criado pelo pobre tomado pelo rico”.

Dei meia volta e fui caminhado em direção ao Paraíso: eram 14h30. Vi passar um moço de berimbau na mão, e outro com uma camiseta do filme do Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol). Vi que a UNE tinha uma “lata de lixo da história”. Tinha um papelzinho onde as pessoas escreviam o que gostariam de ver consignada ao latão e depositavam sua mensagem no lixo.

No carro da frente, vi a moçada da UMES, a união dos secundaristas, que parece não mais estar na órbita dos partidos comunistas e está próxima ao PSDB. Não vi bandeiras desse partido na manifestação. Na última manifestação, os tucanos levaram sua juventude LGBTQ+, que foi atacada pelo PCO.

Mas hoje vi uma moça de uns 16 anos que falou no carro de som e me impressionou muito. Ela falava bem e era desenvolta. Sua camiseta trazia “Jesus é amor mas #ele não”. Ela começou saudando a UJS, “que fez aniversário na semana passada”, ganhando uns aplausos do carro a frente, que era da UNE e UBES. Depois disse que “Meu ]esus não é o messias miliciano, ele é o Jesus da Periferia”. Ainda que “o governo tem um deus que não é o mesmo deus que o meu”, na mesma hora que puxaram um panão com COVAS 45 e as cores do PSDB na frente do carro. Adicionou que “em 2022 o amor vai voltar a reinar sobre o Brasil, quero celebrar 2022”. “O Bolsonaro arregou no 7 de setembro, mas nós não arregamos”. Fechou sua fala puxando uma palavra de ordem: “Ei Bolsonaro, seu fascistinha, a Frente Ampla vai por você na linha”.

O que me impressionou foi primeiro a desenvoltura e humanidade de sua voz, tão diferente do estilo gritado que prevaleceu hoje em toda a avenida. Até a presidenta da UNE, que esteve presente hoje e fez sua fala no tom usual da esquerda, no ato do MBL falou mais normalmente, suavizou o tom declaratório e ficou muito melhor. Mas essa moça evangélica acertou o tom, talvez treinada nas atividades de sua igreja.

Mas o que mais me chamou a atenção que ela tenha se referido ao Jesus da periferia. Já ouvi Mano Brown falar em um Jesus dos pobres e lutador. Um cristo assim já foi formulado antes, mas pensei se não testemunhava hoje o que poderia ser a emergência de algum “evangelismo da libertação”, análogo à antiga teologia da libertação católica, na voz de jovens evangélicos periféricos, dinâmicos e organizados. E que isso aparecesse no contexto do PSDB é de fritar o coco.

Segui caminhando e vi uma camiseta “Mulher em casa, a revolução atrasa”. Vi uma camiseta com o rosto de Paulo Freire e outra camisa de futebol com “Estrela Vermelha. Curitiba Oriental”.

Vi um cartaz com “Malditos Milicos”, que é um bordão do podcast Medo e Delírio em Brasília, umas das vozes críticas articulando o Bolsonaro como projeto militar. “Lira é putinha do Bozo” também faz parte do repertório do Medo e Delírio.

Passando pela Juventude do PT e pelo coletivo petista Disparada ouvi “Dirceu, guerreiro do povo brasileiro”. Nessa hora notei como o ato como um todo tinha muito petista, como nunca vira desde o Fora Temer. Estes aqui eram jovens, mas vi também grandes quantidades do que chamo de “Petistas Prateados”, que são as mulheres e homens grisalhas de 50-70 anos que acorreram à manifestação hoje. Sozinhos, em grupos ou em pares estavam lá, em notáveis números. Estes foram os valentes lutadores dos anos 1060, 1970 e 1980. Por um lado, são o coração do partido e os construtores da potência que foi o PT como partido-movimento. Mas por outro lado, parecem ter parado no tempo quandocanções como “Maria Maria” e “O bêbado e a equilibrista” – e o hino absoluto “Caminhando e Cantando” – eram novas e vibrantes, atrasando a atualização do partido com seu saudosismo.

Passando pelo carro principal, ouvi discursar o José Carlos Dias, do Instituto Arns e ex-ministro da justiça. Ele usou a mobilização das Diretas Já em 1984 como exemplo a ser seguido hoje. De novo me peguei lembrando que as Diretas foram derrotadas justamente pelos conservadores que fizeram a transição da ditadura de modo a redundar em Sarney, o homem do regime militar. Os mesmos conservadores que subiram aos palanques cantando loas ao povo. Sarney nunca foi pelas Diretas.

Logo me entediei em frente ao carro de som principal e caminhei buscando o Arrastão dos Blocos, que é uma federação dos blocos de carnaval de rua independentes. Achei que seria mais interessante.

Achei-os mais adiante, num carro próprio, o “Samba pela democracia”. No carro também a faixa “Mulheres, Tamoios e mulatos, eu queria um Brasil que não está no retrato”. Eram 15h15.

Sentei na calçada, a meio caminho tanto do delicioso samba do Arrastão e das falas do carro de som principal. Meditei que a centro-direita não tinha vindo, e que as famílias de classe média que usualmente indicam capilarização das pautas em direção ao centro não estavam lá.

Até havia um bom número de cartazes feitos à mão, e vi pelo menos duas performances com atores fantasiados.

Isso parecia agitar o enorme elefante no meio da avenida: todo mundo sabia que não vai ter impeachment. A presença menos que massiva hoje sinaliza uma situação perigosa. Em qualquer caso vai ser necessário defender os resultados eleitorais – e o governo – na rua. Com os números de hoje não vai rolar. Lembrei que no dia da prisão de Lula, havia somente 5 mil pessoas ao redor do Sindicato dos Metalúrgicos, e não 50 ou 100 mil.

Ainda pensando na moça evangélica do cristo periférico, decidi retornar àquele carro e checar se havia mais movimentação interessante.

Me apertei através da multidão em frente ao carro de som ao mesmo tempo que Gleise Hoffman tomou a palavra. Fiquei aliviado que sua fala foi progressivamente abafada pelo batuque da Coalizão Negra ao caminhar.

Notei que os anarquistas tinham trazido guarda-chuvas, talvez à maneira de Hong Kong (defesa) e que tinham assumido uma formação do tipo “tartaruga”, formando um quadrilátero fechado, protegido pelos ditos guarda-chuvas abertos.

Segui e cheguei ao carro do PSDB, mas fiquei desapontado ao ver que não havia ninguém. Fui checar a ponta da manifestação e esta tinha se estendido para além da rua Augusta e chegava até a Consolação, ainda que bem esparsa nesse ponto.

Me arrependi de ter deixado o Arrastão e voltei para de novo estar do lado deles.

No caminho interagi com um homem que trazia um cartaz “Fome e tirania: eu já sabia”, que combinou com minha camiseta “Eu avisei”. Tiramos fotos.

Passei por uma barraca que tocava um forró ao vivo e que as pessoas dançavam. Achei ainda mais notável que parecia ser um ponto de petistas. Vi grupos de jovens caminhando e cantando palavras de ordem.

Vi hoje camisas do Santos, Palmeiras, SPFC, Atlético Mineiro, Corinthians – e umas 3 do Juventus, um milagre estatístico fora da rua Javari.

Passei de novo pelo carro de som principal e vi que a gritaria continuava.

Em uma guinada espantosa, um moço tomou o microfone no carro de som, apresentado como um poeta, e declamou sua poesia, que era mais ou menos ao estilo do Slam da gente preta, que é aquela fala cadenciada e rimada. Isso deu enorme leveza e humanidade à fala dele, uma potência de comunicação muito contrastante. Durante a campanha a prefeito de Guilherme Boulos dizia-se que ele precisava fazer umas aulas de teatro e relaxar aquele corpo. Da mesma forma, a esquerda deveria tomar aulas de locução nas as escolas do Slam e do Rap.

A seguir cantou Preta Ferreira, que começou justamente com as canção… O bêbado e a equilibrista! Eu ia fazer chacota, mas olhei em volta e vi que que todo mundo vibrou, e não só as cabeças argênteas. Seguiram-se alguns sambas clássicos, como aquele “Eu vim de lá, pequenininho”, e acho que reconheci Otto no telão.

Para meu horror, reconheci também o Suplicy atrás dos cantores, com uma camiseta “Basic Income my right”. Todos amamos o Suplicy, mas temi que ele se pusesse a cantar.

A seguir o Boulos falou, com seu tom tonitruante. Lembrou da ocupação que o MTST fez da Bolsa de Valores de São Paulo, recentemente. Depois falaram Manuela, Freixo e Haddad. Todos sublinharam a urgência da luta contra Bolsonaro e que ninguém vai aguentar mais um ano desse governo. “Até porque o PT não vai reverter tudo e ainda vai ter que aceitar um acordo que livre a cara da família Bolsonaro” me peguei pensando.

Encontrei G e trocamos uma ideia sobre o ato hoje. Logo depois passaram E, M e B, com um amigo. Oriundos mais do lado autonomista, estavam entediados e não se sensibilizaram com a manifestação.

Aí falou o Ciro, e foi um certo auê. Havia um contingente bom do PDT quase na frente do carro de som, portando um faixão amarelo com as efígies de Vargas, Jango, Brizola e Ciro. O grupo soltou bem nessa hora uma grossa coluna de fumaça verde e vermelha.

Mas o povo em volta, certamente petistas, vaiaram Ciro. Isso repercutiu muito na imprensa e nas redes, mas não achei importante. Petista se ofende muito como Ciro, que busca alargar suas margens de preferência com molecagens antipetistas, mas tanto os ataques quanto as defesas apaixonadas não produzem nenhum debate relevante. Vai passar.

Recordei da campanha de 1989, quando Brizola descascou o Lula no primeiro turno: “agente do imperialismo”, “sindicalista de patrão” e o memorável “sapo barbudo”. Mas no segundo transferiu a quase totalidade de seus votos a Luis Ignácio.

Chegou B e conversamos.

A seguir outros falaram, mas muitos deles através de gravações que foram irradiadas pelo carro de som. Isso era altamente broxante e trazia um tom melancólico de ausência e displicência, ainda mais com vozes do quilate de Aluísio Nunes do PSDB. Além disso, começou a garoar meio forte e o pessoal foi dispersando.

Eram 18h15 quando eu também decidi sair fora.

Caminhei pensando como hoje foi um ato bem da esquerda, sem centro-direita, que escolheu não vir. Não houve a consagração em números esperada, e o MBL deve estar rindo muito hoje – e também o Bolsonaro. Foi bom ver toda a esquerda reunida depois do longo confinamento (todos usavam máscara) e sentir uns frêmitos de expressão espontânea vindos da militância solta, expressa nos cartazes e performances – mas há um longo caminho a ser trilhado e todos estamos exaustos. O pior de tudo é a falta de imaginação e ousadia na proposição do amanhã. As direções e burocracias claramente têm dificuldade em se conectar com a insatisfação geral e com a atividade de base. Tem havido intensa movimentação entre os trabalhadores precários, por exemplo, notadamente os entregadores de aplicativo, e também dos povos indígenas, que correm perigo e se mobilizaram de forma inédita e massiva em Brasília.

Hoje a esquerda moderou o discurso e a direita não veio… Será um erro manter essa toada e não arrebatar ao bolsonarismo a ousadia do novo e do amanhã.

Foi difícil calcular quantas pessoas havia hoje, muito espaço ocupado por faixa no chão e densidades bem diferentes… Mas estimei quarteirão a quarteirão e acho que tinha umas 15 a 20 mil pessoas.

Caminhei até o fim da avenida e fui para casa.

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