Manifestação pelo voto impresso em São Paulo

Ato bolsonarista coloca apoiadores do presidente nas ruas em dia de manifestações em São Paulo e em todo o país, no dia 1 de agosto de 2021.

Saí de casa a pé às 14h para ir à manifestação pró-Bolsonaro marcada para a avenida Paulista.

A preparação deste ato foi intensa durante a semana. Além de muitas chamadas nas redes bolsonaristas, tivemos a famosa live do presidente, em que ele tinha prometido revelar provas de que a eleição de 2015 e de 2018 foram fraudadas – mas que deu em nada no final. Apesar da chacota da oposição, que apontou as falhas e falácias da fala ao vivo, a transmissão serviu para pautar o noticiário geral. O recesso parlamentar vai acabar já, e a emenda que impõe o voto impresso será votada no Congresso e no Senado em escrutínios separados. Encher as ruas ajudaria na pressão aos parlamentares, que já foram alvo de mobilização do STF, que conseguiu esvaziar a teórica maioria que Bolsonaro tem nos plenários.

Assim, os números de hoje importam. Li depois que os atos em outras capitais foram esvaziados, mas não achei que foi o caso hoje aqui. Consegui avaliar o número de manifestantes – mas só vou contar no final!

Caminhava a partir do Paraíso em direção à avenida Consolação e logo na Praça Oswaldo Cruz vi famílias e casais jovens paramentados de verdeamarelo, também caminhando em direção à FIESP, onde estaria o carro de som principal. Ver manifestante tão longe assim no geral indica que o evento vai ser grande.

Notei que os vendedores tinham hoje o esperado verdeamarelo em camisetas e bandeiras do Brasil. A efígie do presidente figurava bastante no material de propaganda, mas nada muito novo, exceto talvez a faixa “Bolsonaro meu bi-presidente”. Um vendedor entoava sua cantilena em voz alta: “Bolsonaro na frente, olhaí a bandeira, olha só a bandeira, Bolsonaro na frente, é a bandeira, bandeira”.

Eram 14h30 quando passei pela frente da Gazeta, e logo cheguei ao carro de som principal, que era do #NasRuas. Cheguei bem na hora que o orador elogiava o ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles. “Eles roubaram muito na área do meio ambiente e ele é um grande homem a serviço da nação”. Aí falou o próprio Salles: “É um prazer e uma honra estar aqui com vocês e com as principais lideranças paulistas”. Disse que “Bolsonaro luta diariamente contra sabotadores aparelhados ao longo de 20 anos em todas as instâncias” pela esquerda. Saudou a militância e pediu engajamento de todos. Falou pouco e se foi.

O orador seguinte descascou “a turma da bagunça” que “pôs fogo no Borba Gato”. Curiosamente poupou parte da esquerda e focou no que chamou de extremistas da canhota. Disse que qualquer extremismo é ruim, para os liberais como ele. Separou também os bons e maus empresários, contrastando a família Odebrecht com “os donos de farmácias e pequenos negócios”.

Este tom “liberal” não foi a tônica do ato como um todo.

Não vi muitos cartazes à mão, e vi muitos impressos. Mas era o verdeamarelo que predominava.

Achei o ato disciplinado, e claramente houve muito trabalho antes. Foi-se a cloroquina, foi-se o lockdown e mesmo a vacinação não foi muito comentada. Parece que a ordem é focar no voto impresso, e é isso o que fizeram hoje.

Reconheci vários ativistas e várias organizações: Aliança Jovem, Jovens Conservadores, Endireita São Paulo, muitos grupos de cidades do interior – toda a aliança bolsonarista.

No geral achei que o discurso contra o voto é bem urdido. Eles conseguem formular perguntas boas como “quem poderia ser contra a transparência no voto? E como ainda assim chamar o presidente de ditador e genocida?” e posar de guardiões da democracia frente a uma evidente conspiração para abafar os questionamentos, explorando a desconfiança natural frente às instituições de estado.

Mas a formulação exata da demanda que soluciona o problema é escorregadia. Parece que os termos aparecem em combinações de “auditável, impresso e contagem pública”. Vi muitos dizeres com “voto impresso com contagem pública”, que é exatamente como era antes… com fraude!

Vi mais de um orador comparar o voto impresso com o jogo de loteria (lançaram um vídeo a respeito) ou com uma compra normal, ambos geram recibo de papel. Mas hoje em dia o banco online, o Pix e mesmo os incontáveis contratos que assinamos com o “eu concordo” prescindem do comprovante em papel e valem como lei.

Vi uma bandeira branca com “Liberdade”, uma bandeira da cidade de São Paulo, muitas de Israel.

Vi camisas do Palmeiras e do Santos.

Caminhando em direção ao MASP deu para avaliar a composição do povo na rua. Achei bem diverso, considerando a monocromia dos atos coxinhas. Tinha muitas famílias, muitos coxinhas (senhorinhas e senhorzinhos de 60-70 anos), jovens militantes de uns 30 anos, ex-policiais ou ex-militares. Mas notei também que desta vez o ato estava bem escurecido em relação às carreatas e motociatas. Talvez sejam os evangélicos, talvez sejam também da “família militar”, que nos baixos escalões é bem menos branca. Mas acho que notei a presença da classe C, ou dos perdedores da meritocracia: microempreendedores devedores.

De qualquer forma, achei que o número de manifestantes não era desprezível e que haviam alcançado uma boa capilaridade na base bolsonarista. Se é suficiente para segurar um golpe ou fechamento, não sei. Mas o bolsonarismo ainda faz parte integral da vida brasileira.

Porém, era notável que a esmagadora maioria das pessoas usava máscara! Ouvi pelo menos um orador falar que precisava era bom tomar vacina, “eu tomei, todas são boas”, mas que o importante era “escolher o que cada um quer fazer com seu corpo”. É realmente notável essa posição depois de um ano e meio de sabotagem e perfídia. Mudou a pauta e foda-se.

Na esquina da rua Casa Branca estava o segundo carro de som da manifestação. Este era do “Movimento da Família Cristão pela Liberdade”. Achei as falas aqui mais combativas e insurgentes. Cheguei lá às 15h25, quando Paulo Kogos ia falar, e ele logo emendou em diatribe do “ocidente em fúria” contra a esquerda aparelhada no estado e tal.

Vi ao lado uma viatura da ROTA restaurada, e ao lado dela quatro ou cinco veteranos desta força policial, notória por sua violência e impunidade. Tiravam muitas fotos com os manifestantes e distribuíam folhetos. Tudo ficava sinistro com a irradiação em volume muito alto de uma versão bolsonarista do “Baile de Favela”, um funk clássico que embalou uma atuação olímpica brasileira recente – seguido do regaton tétrico da campanha de 2018.

Vi um cartaz com “Cuba Libre”, uma faixa “Xô comunismo!”, e também os ultra-católicos do Instituto Plínio Correia de Oliveira, que é a antiga TFP. O seu visual hoje figura meio antigo, quase vintage, ao estilo da maçonaria e suas faixas e medalhas, cortes de cabelo da década de 1950 e estandartes como no Terra em Transe de Glauber Rocha.

Nessa linha, vi muitos youtubers que faziam suas transmissões ao vivo caminhando pela multidão. Nesse tipo de irradiação em público, tom das vozes é entusiasmado, como num sermão alucinado de arrebatamento, uma caminhada de êxtase e testemunho gritado.

Um orador no carro de som perto do MASP entrou numa fala insurrecionária: “temos que mudar tudo, começar da estaca zero”. Falou contra Lula e contra a esquerda, e insistiu na imagem do presidente de mãos atadas. Uma outra oradora, médica, disse que seu irmão era técnico de informática e quem já em 2015 tinha dito que o sistema de urnas eletrônicas “permitia um monte de fraudes. E foi isso que aconteceu”. Ela então enumerou casos de fraude, isto é, citou o relatório do PSDB de 2014, onde se lê que as urnas são “inauferíveis e inauditáveis”. Falou da “virada de Dilma” na apuração como evidência de falta de lisura.

Logo depois falou um pastor, de voz urgente e adestrada. Ele foi apresentado como “um negro que não se vitimiza”. Ele mesmo disse de si que “não fiz da cor da minha pele um palco ideológico”. Chamou pela família e falou contra o Museu da Língua Portuguesa, que adotou (acho que para uma exposição) o neutro x, como em “amigues”. Em seguida chamou um grito coletivo, um desabafo geral onde cada péssoa “grita aquilo que quiser”. Fiquei calado para ouvir o que as pessoas a meu lado iam trazer do fundo dos seus corações, mas fiquei um tanto desapontado com os meros “Glória a deus” e “mito”.

Notei que pelo menos 4 drones nos sobrevoavam, e o helicóptero da PM fez várias aparições ao longo do ato.

Eram 15h45 e vi uns bonecos de Gilmar Mendes, Carmen Lúcia e possivelmente o Kássio Nunes. O STF era citado, mas muito menos do que o normal. Notei também que os intervencionistas militaristas estavam presentes agora e faziam ver suas mensagens: citações do vice-presidente Mourão e chamadas abertas ao golpe militar.

O carro de som do MASP ainda fez ouvir a Carla Zambelli, que discorreu sobre qualquer coisa da pauta. Mas um outro orador, meio o host do carro, era um youtuber que já vira em outra manifestação. Ele curiosamente se desculpava por declarações passadas onde teria incitado a violência. Se desculpou por isso, e disse que “a violência não é solução”. Zambelli em seguida retomou o microfone para apoiá-lo.

Além disso, ela disse que tinha um novo site com o placar dos deputados e suas posições em relação ao fundão eleitoral. Achei a coisa uma trama bem malandra, já que o placar no site não era da votação real, mas sim das opiniões dos deputados acerca do tema…

Retornei ao carro de som do NasRuas e ouvi um orador tentar explicar o caso das vacinas. Ele disse que Bolsonaro apenas não aceitou as cláusulas abusivas do contrato da Pfizer, mas assim que a Anvisa liberou, ele comprou todas as vacinas, e que todas as vacinas eram boas e todos deviam se vacinar.

O orador anunciou a presença de Eduardo Bolsonaro, mas parece que ele não falou.

Uma moça das “Mulheres com Bolsonaro” fez fala dura a favor do voto impresso, e disse que “não acredito na palavra de quem não tem palavra”, referindo-se aos deputados e ao STF. “Se a gente dormir a esquerda volta!”,finalizou.

Alguém puxou uma oração.

Vi uma viatura do BOPE, que é uma força policial, com PMs de serviço posando com manifestantes.

Eram 14h50 quando fui dar uma última checada no carro de som da Marcha pela Família em frente ao MASP. Ouvi uma youtuber que mora nos EUA e ela advertiu os presentes sobre a fraude eleitoral no Brasil, “como aconteceu nos EUA, onde Trump teve oficialmente muito menos votos do que recebeu na verdade”.

O hino nacional foi tocado para encerrar o ato.

Fui saindo fora e tentei avaliar oque testemunhara hoje.

Por um lado, o ato não foi massivo, mas por outro não foi um fracasso total. Talvez tenha estado aquém da expectativa imediata que é pressionar o Congresso, e parece que no Brasil afora a mobilização foi baixa. Hoje, contei na avenida umas 15 mil pessoas.

Não saí com a sensação de que Bolsonaro está nas cordas. Talvez a sensação que temos ao ler as mídias de informação seja apenas tucanos e liberais que estão publicamente assumindo posições democráticas agora, diminuindo assim os números do consórcio que levou o capitão à presidência.

Mas a sensação que não me deixa é que o bolsonarismo está muito enraizado na sociedade, não apenas como militantes do presidente, mas como um modo de ser e de pensar, que até prescinde da figura de Jair Messias se for necessário. Vai ser difícil vencer e superar o bolsonarismo, pois ele é como um parasita: esse movimento se alimenta das falhas e contradições de seu hospedeiro, que é a frágil república representativa. Parece haver ampla mobilização possível para um discurso e prática anti-sistema, ousado e transformador. O normal causará revolta. Há sede de mudança, mas neste momento quem protagoniza esse desejo com maior eficácia é Bolsonaro e os militares, de quem é projeto.

Caminhei pela avenida e fui para casa.

Vejamais vídeos da manifestação: https://www.youtube.com/channel/UC2HckNC_hEmc7qKW1aGK_KQ

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