Motociata bolsonarista em São Paulo

No dia 12 de junho de 2021 um cortejo de motocicletas liderado pelo presidente aumenta a temperatura política do país…

Saí de casa às 7h30 para a chamada motociata do presidente Bolsonaro, intitulada “Acelera para Cristo”. A temperatura política anda meio alta, por conta da CPI, que traz reveses políticos ao governo, que agora quer revidar. O perdão ao general Pazuello quanto à sua participação em ato político mostra, o que é proibido, deixa claro que o Bolsonaro é um .projeto militar, não há tensão entre eles e as divergências são todas cênicas. Todo mundo sabe que Bolsonaro vai tentar o golpe, a dúvida é quando.

O recente ato da esquerda, que juntou umas 50 mil pessoas, trouxe novidade ao cenário político e pode crescer, rompendo a paralisia atual do campo progressista. O ato de hoje faz parte da queda de braço de quem leva mais gente na rua e é mais popular. Ainda estamos na sombra do “eu autorizo” da base do bolsonarismo, que é o OK para a intervenção militar. Um ato enorme hoje configuraria um lance importante na coreografia política. Parece que a organização do evento hoje esperava 100 mil motocicletas.

O termo escolhido para o passeio é um neologismo meio feio: “motociata”, que soa mal e traz associações infelizes como “maciota”. Mas pegou e paciência.

Pedalei até a casa de F onde montei em uma outra bicicleta com superpoderes. Fui até a avenida Tiradentes e de lá alcancei a região do Campo de Marte, de onde sairia a dita motociata.

Eram 8h30 quando cheguei à Praça de Bagatelle, e já havia considerável concentração de motocicletas – e também do aparato policial. Vi soldados e viaturas de unidades policiais que raramente vejo na rua, tipo Polícia Rodoviária Federal. Bombeiros, Choque e outros marcaram presença. Vi fuzis e submetralhadoras.

Vi cálculos do custo de toda a operação hoje, 1.2 milhões. Entendi que no fundo a mobilização de forças policiais era cênica, isto é, eles também estavam desfilando com o presidente. A aliança cristãos, bolsonaristas civis, a “família militar”, as FFAA e milicianos estava lá toda ostensivamente presente, paramentada e subsidiada. O componente mais claramente miliciano se deu pela presença dos “Veteranos da Rota”, que é uma associação de ex-PMs do notório batalhão. Eles aparecem às vezes em manifestações da direita. Já os vi na Paulista muitas vezes com sua verneio cinza.

Logo de cara vi um grupo de jovens de feições orientais liderados por um figura um pouco mais velho, que tinha um sininho na mão. Caminhavam pela calçada abençoando as máquinas e distribuindo panfletos. Já vi grupos como esse em outras manifestações de direita, e sei que há muitos grupos coreanos que evangelizam globalmente, alguns deles ligados ao notório Reverendo Moon. Já senti a competição entre os grupamentos cristãos na avenida: evangélicos e ultracatólicos disputando a condução da pauta cristã junto à extrema-direita. Sei que a ministra Damares conseguiu conciliar as diferenças e envolve os dois grupos em suas ações.

Mas, de forma geral, durante toda a manifestação vi ou ouvi pouquíssimas alusões ao cristo da chamada. Claramente se tratava de um espantalho para disfarçar o que foi claramente um ato de campanha do presidente pela reeleição.

Aqui no cortejo de motocicletas, a imensa maioria era homem e branca, e ao redor dos 50 anos. Muita barba grisalha e look de motoqueiro americano.

Logo liberaram os veículos para se posicionarem mais adiante, de onde sairia o cortejo, que foi em frente ao Anhembi e do Sambódromo. Percorremos parte da avenida Marginal para chegar lá. No local, estacionaram suas motocas e pude ver o pessoal de maneira mais detida.

Me chamou a atenção que não havia faixas ou cartazes. Os únicos adereços eram bandeiras do Brasil, camisas da CBF e o verdeamarelo em diferentes panos. Achei que quem tinha uma variedade muito maior de mensagens eram os numerosos vendedores de badulaques patriotas. Bolsonaro figurava em várias poses e recortes, com certa variação de mensagens dentro do cânone neofascista – incluindo o odioso pixulequinho de Lula prisioneiro.

Para mim isto indicaria uma boa organização, que conseguiu gerar unidade simbólica, que sai bem na foto, e também para atrair o motociclista menos radical.

No geral achei tudo muito homogêneo, muito masculino: casacos pretos de couro, as máquinas, tudo muito cultura do petróleo sobre rodas, tóxico. Corpos iguais, tensos, brancos na performatividade do encontro com a máquina, envolvidos em vapores nocivos, cromos brilhantes e metais pesados no ar.

O que havia em termos de diversidade eram as escuderias com seus distintivos. Quem fosse da área poderia decifrar a política faccional cifrada nos brasões e tirar conclusões pela presença e posicionamento de diferentes tribos motociclistas.

Tinha em mente tentar identificar motociclistas que não fossem bolsonaristas de raiz, talvez entregadores. Sabe-se que Bolsonaro fala diretamente a eles, explorando muito que “a esquerda” pode ficar em casa enquanto eles tem que trabalhar na rua – entregando a refeição e o pacote exatamente para o esquerdista confinado. Achei que hoje não vi muitos jovens periféricos e/ou trabalhadores, mas a diversidade étnica aparente se revelou maior do que eu esperava – mas isso no destino, que era o parque do Ibirapuera, e menos aqui no cortejo. De qualquer forma, não vi ninguém claramente identificado como entregador.

Dei um giro e notei que estávamos em frente ao “Circo Illusion”. Vi uma pixação “Fora Drácula”, que deve ser da época dos loucos anos Fora Temer.

Contei umas 6 a 10 mil pessoas lá. Os números da PM (12 mil veículos) confirmaram depois esse palpite.

Vi um figura que devia ser um blogueiro, transmitindo ao vivo. Ele interagia com as pessoas e perguntava “se você recebeu alguma coisa para estar aqui”. Ele falou muito intensamente que “só tem raça humana, tem cor diferente mas é ser humano”. Ouvi um hino militar, e alguns dos manifestantes se identificavam como ex-militares.

Ouvi algumas das canções da campanha do Bolsonaro, dentre elas um regaton meio macabro. O que me perturbou não foi a letra reacionária, mas o sotaque hispânicos dos cantores. fica soando como uma Operação Condor em melodia. Outras cançonetas da campanha incluíam um forró e uma bossa nova muito safada, alguma melodia conhecida sequestrada para fins de extremismo político.

Helicópteros sobrevoaram o local perto das 9h30 e certamente era o presidente. Muita gente acenou e fez festa. Parei e senti a cena: cercado de motociclistas que olhavam para cima e acenavam para um pai ausente, eu ouvia o ruído agressivo dos helicópteros misturar-se ao som de uma sub-bossanova de letra reacionária. Em substituição ao cristo, o paizão fascistão que chega pelo ar.

Afinal o presidente se posicionou em algum lugar lá na frente e partimos.

Seguimos pela marginal do Tietê. Eu no meio do pelotão defendendo meu espaço no pedalo. Ainda achava que eu estava no meio da uma massa de indivíduos isolados, juntos mas sem alegria. Pode ser só projeção minha, mas estava achando tudo meio melancólico. A comunhão com o presidente só se daria na publicação da documentação, quando a figura de Bolsonaro e da massa achariam fusão amorosa postiça. Por ora, o pai estava ausente.

Vi uma faixa “Fora Tite” afixada à ponte.

A certa altura a massa parou no asfalto da Marginal e avançava só aos espasmos. Pensei que de novo estava experimentando uma cena estruturante do Brasil: parado na Marginal, sol na cabeça, cercado de motoqueiros extremistas, respirando gases nocivos.

Depois passamos por uma barreira policial, que era quem estava contendo o tráfego. Os PMs protegiam um corpo deitado no chão. Quando passei perto vi que era um senhor grisalho, casacão preto mas meio coxinha. Deitado no asfalto da rodovia, de rosto para cima, olhos fechados… Um mártir da performance da performatividade masculina num sábado quente de São Paulo.

(Vi depois que houve um outro acidente na rodovia, envolvendo várias motocicletas).

Depois de certo tempo chegamos à entrada da Rodovia dos Bandeirantes. Um ciclista me informou que o cortejo estava seguindo pela rodovia até um quilômetro X. Achei que era demais e fui esperar a volta deles em um posto de gasolina, onde comprei uma água com gás. Os entregadores reunidos no estacionamento do Shopping Tietê me falaram que o acesso que eu queria não seria possível. Indicaram uma rota boa mais adiante, um retorno que me colocaria no trajeto da volta.

Notei que eles faziam troça dos motoqueiros verdeamarelos, e, quando saia fora, disse “Fora Bolsonaro! Estou aqui disfarçado”, referindo-me à minha roupa quase verdeamarela. Ele ficaram realmente atônitos, e acho que eu não compreendi alguma nuance do posicionamento dos rapazes e dei algum furo. Paciência.

Mas o labirinto de viadutos me confundiu e me perdi loucamente. Acabei cortando pela Lapa e de alguma forma cheguei à ponte da Cidade Universitária, ainda sem nenhuma pista do cortejo. Perguntei a uns policiais em cima da ponte e eles disseram que o presidente ainda não tinha passado. Decidi seguir ao parque do Ibirapuera e esperar o cortejo lá.

Consegui errar o caminho regiamente, mas acabei por chegar no local, que era no Monumento às Bandeiras, já pelas 13 horas.

Fiquei algo surpreso de ver bastante gente em clima de festa. Várias barracas, música e uma variedade maior de mensagens, símbolos e gente. Várias famílias, mais mulheres e uma branquitude menos extrema. Calculei umas 2 a 3 mil pessoas.

Vi pelo menos duas faixas pedindo intervenção militar, mensagens contra o STF e contra o governador João Doria. Vi bandeiras de Israel, uma do Rio Grande do Sul, uma de São Paulo, outra como tema do dia, “Acelera com Cristo”. Vi o bandeirão dos Jovens Conservadores.

Vi um cartaz feito à mão com os dizeres “Queremos e precisamos prender os urubus do STF. Mandaremos para isso um cabo e um soldado. #eduardobolsonarotemrazao. Weintraub também” e outro “Saia da matrix”,”Bolsonaro tamo junto”, “Bolsonaro Selva”. Tem um que vejo desde 2016, com a mesma pessoa, que traz “Celso Daniel está em nossos corações”.

Notei ainda as faixas “Supremo é o povo”, “Nossa bandeira jamais será vermelha”, “Brasil acima de tudo”. O “voto auditável” também figurou em mensagens escritas.

Vi pelo menos três drones e quatro helicópteros.

Finalmente chegou o cortejo, e o lugar ficou cheio de motocicletas. Enquanto elas se acomodavam pelas ruas à volta do monumento, o carro de som iniciou os discursos. A bicicleta é ótima para acompanhar passeata ou carreata, mas ela atravanca na mistura com a multidão. O povo acorreu à frente do carro de som, mas tinha grades e portões a transpor e fiquei de longe. Não enxergava bem quem estava no palanque. Acho que um deputado evangélico, o Cesinha, falou primeiro, e mandou “um recado para os comunistas dessa país: peguem suas malas e saiam do país enquanto é tempo!”. E “a igreja de jesus precisa declarar a independência do Brasil!”.

Rolou que o acesso ficou fácil e cheguei perto. Bolsonaro já falava. Ele elencou conquistas de seu governo, “prestando contas” ao povo. Falou do “fim da corrupção” no CEAGESP e outras instituições. Segundo ele, várias estatais começaram a dar lucro devido ao fim da corrupção, revertendo “os benefícios para todos”. Falou mal do Doria, que impede os direitos constitucionais de ir e vir e o direito ao trabalho. Disse que não aumentou nenhum imposto, mesmo com a pandemia. Assumiu o auxílio emergencial e disse que está estudando a não obrigatoriedade do uso de máscaras para quem foi vacinado ou já se contaminou e sarou, e quem é contra isso é porque não acredita na ciência. Anunciou que os pedágios federais não mais serão pagos por motociclistas.

Enfim ele desfiou suas pautas, com a mistura usual de inverdades e mentiras descaradas, brincando no limiar da legalidade, ameaçando o golpe ao mesmo tempo que garante jogar dentro das 4 linhas da constituição.

Mas quando falou do direito ao trabalho, emendou o tratamento precoce. Garantiu que se curou graças ao uso da cloroquina. Deu para ver que, de maneira perversa, o tratamento precoce é um jeito de dar acolhimento a quem não pode ficar em casa. O ponto não é ser burro, é ir a quem oferece maneiras de viver em tempos turbulentos, de conseguir tocar a vida de algum jeito.

Notei que isso calava fundo nos vendedores e ambulantes no lugar. A esmagadora maioria era de negros, mas a fala dele era potente no contexto de suas vidas e atividade econômica. O truque é dizer que ir para o hospital com falta de ar vai levar à morte – e o tratamento precoce dá esperança e alento. Bolsonaro consegue dizer que está salvando vidas. Mas ele tem que dizer “não tem nada comprovado cientificamente. Tudo que está aí é experimental”, o que é mentira.

Bolsonaro insistiu no relatório do TCU que supostamente demonstra a supernotificação dos óbitos por Covid. Quando ele perguntou à massa se tinha alguém que conhecia caso de morte que tinha ganhado status indevido de Covid, muita, mas muita gente levantou a mão.

Palavras de ordem do povo incluíram “Eu vim de graça”, “Mito, mito”, “Eu autorizo”, nada novo.

Depois dele ainda falou brevemente o ministro da Tecnologia, o Marcos Pontes. Ele só sublinhou a aliança com os militares. Até o Ricardo Salles falou também (a cara de pau!), apenas agradecendo a todos. Acho que era o Eduardo Bolsonaro que falou por último, mas eu já tinha desligado.

Vi no noticiário depois que tinha marmitas, distribuídas por um pessoal uniformizado. A coisa em si não é absurda. O militante chega cedo, trabalha pra caralho e receber um rango básico da organização na hora de fechar não é o fim do mundo. Era questão de tempo que a direita fosse vista fazendo o mesmo. O “Eu vim de graça” já desabou- nunca foi verdade. Lembro do último comício bolsonarista da campanha de 2018. Tinha militância paga do Partido Novo, por exemplo, que eu vi.

Me caiu a ficha que o ato não foi um fracasso, a despeito do número de motocicletas não ter sido de três dígitos. No geral, o que valeu foi coesão do consórcio bolsonarista. A base bolsonarista teve um grande sábado de sol com seu herói, ele confirmou as pautas do movimento (mentindo), com festa e descontração. Eles viram que as várias polícias e os militares demonstraram publicamente sua fidelidade e prontidão, assim como seus ministros, todos unidos e disciplinados, além daqueles que podem garantir mobilidade na cidade em caso de colapso urbano: os motoqueiros. A base respondeu pedindo a intervenção militar desde já “autorizando” o presidente.

Já ia saindo fora quando vi três jovens, meninos mesmo, de uns 18 anos, desafiando a galera que ia dispersando. Um deles tinha os dois dedos médios em riste, e eles respondiam a quem os apupava. “Aqui não vende maconha!” gritou um bolsonarista embrulhado em uma bandeira do Brasil. Um moço respondeu “Eu tenho aqui, quer comprar?” e por aí afora. O visual dos meninos fez os bolsonaristas surtarem e abrirem as comportas do imaginário extremista. Achei que os moços corriam perigo mas tinham indomável vontade de reagir se posicionar.

Eles acabaram por sair fora quando veio muita gente se opor e a barra pesou, mas sem antes um deles cantar, gritando, “Grândola Vila Morena”. Achei incrível que essa canção estivesse nos lábios do jovem. A canção foi o gatilho da Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal e se refere a um comum milenar. Ele cantava com muita raiva…

Falei com eles mais adiante e elogiei-lhes a coragem. Será que eles estão livres dos fantasmas que paralisam minha geração e estão a mostrar que confrontar é tanto inevitável quanto possível?

Eram mais de 14h horas quando saí fora e pedalei. Subi a rua Rafael de Barros e fui para casa.

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