Ato massivo Fora Bolsonaro em São Paulo

No dia 29 de maio de 2021, grande multidão desafia o medo e sai às ruas contra o desgoverno Bolsonaro. Brechas se abrem e novas escolhas se impõem.

Foto: Alice Vergueiro

Saí de casa às 14h15 para ir à manifestação anti-Bolsonaro na avenida Paulista, marcada para as 16h. O dia estava lindo, um sol de inverno amigo.

A manifestação foi intensamente divulgada e estava claro que ia encher, mas não esperava tanta gente. A movimentação é bem importante pois a urgência da pauta – impeachment, auxílio emergencial de R$600 e reversão da sabotagem do serviço público – é ardente, e além disso pode romper a paralisia atual da esquerda.

Com a quarentena, a posição mais responsável foi a do resguardo, mas conforme avançavam os meses, ficava claro que o confinamento era um privilégio. De forma perversa, o presidente acabava aparecendo como aquele que se arriscava junto com o povo, e quem ficava em casa fazendo compra pela internet era a esquerda. Além disso, a ciência veio depois a confirmar que ao ar livre e com a máscara adequada, as chances de contaminação são mínimas.

Então o clima estava posto para um grande grito de desabafo nas ruas e para uma recolocação da luta política.

Caminhei a partir do Paraíso e vi a avenida Paulista em seu sábado de normalidade pandêmica: turistas, consumidores, entregadores e ciclistas, alguns músicos de rua e transeuntes aproveitando o lockdown de mentira que é o caso em São Paulo.

Não notei aparato policial exagerado. Tinha visto nas redes a repressão da PM em Recife, inclusive com ataque a uma vereadora, e estava preocupado que o cenário pudesse se repetir aqui em São Paulo: a PM reprimindo indiscriminadamente e causando caos nas capitais de estados governados por opositores ao Bolsonaro, uma ação descolada dos já parcos controles institucionais, uma iniciativa golpista de uma força paralela ao estado.

Notei que os vendedores de bandeiras estavam presentes – só que desta vez com cores e mensagens da esquerda. O faro empresarial dos ambulantes elegeu a figura do Lula como o filão a ser explorado. Essa primeira impressão me deu a ideia inicial equivocada que ele – e o calendário eleitoral – ia dominar o ato. Ao lado do ex-presidente, tremulavam bandeiras LGBTQ e flâmulas Fora Bolsonaro.

Segui até o MASP e já havia gente lá, umas 300 pessoas com dois pequenos carros de som. Na maioria eram das juventudes de partidos marxistas. Todo mundo de máscara, e vi pelo menos três grupos de ativistas distribuindo a proteção facial no correr do ato. A organização fez muita questão de sublinhar procedimentos de cuidado. Me senti seguro.

Dei um giro e às 15h15 desabou um aguaceiro medonho, daqueles que chicoteiam as costas de quem corre, encolhido, em busca de abrigo. Mas logo passou e o povo retomou o asfalto.

Deu para ver que havia uma diversidade de grupos muito grande ali, e uma variedade de pautas. Obviamente que a vacina aparecia em todo o lugar, e também críticas à condução do combate à pandemia. Alguns pediam impeachment, outros a anulação da chapa Bolsonaro-Mourão, vacinação universal, auxílio emergencial, um alarme ambiental e outras mensagem. Muitos se referiam às mortes da COVID, em termos numéricos e genéricos, mas outros nomeavam vítimas singulares.

Logo vi as torcidas organizadas Porcomunas e Coletivo Democracia Corinthiana. Ao longo do ato vi também camisas do SPFC. Além dessas, vi uma camisa do Juventus. Há todo um movimento contra o modelo atual do futebol e ligado ao futebol de várzea. O Juventus é um time que, outrora grande, não fez a transição para o modelo corporativo hegemônico e ficou num limbo onde pôde existir ainda como time de bairro. Assim, ele está no coração do futebol popular e é frequentemente homenageado pela esquerda autonomista na forma da camisa cor-de-vinho.

Depois da breve chuva o povo saiu do vão tomou conta da rua e logo as duas faixas estavam tomadas pelos manifestantes.

Encontrei S e ele contou que estava rolando o clássico embate pela frente do ato. A faixa que abre uma passeata é que dá o tom da manifestação, pelo menos na foto da imprensa. Como vi no final, realmente estar no lugar certo rende ganhos simbólicos importantes.

Ao redor do carro de som predominavam os partidos e entidades estudantis, tipo o PCO, PCdoB, PCB, PSOL, a Juventude do PT, UNE, UEE, UPES, mais coletivos como o Juntos, RUA, Revolução Solidária, vários coletivos dos movimentos negros e a Bancada Feminista.

Vi também uma bandeira da Palestina.

Mas o mais legal de ver foram os cartazes feitos à mão. Notei que tinha muitos deles, mais do que já tinha visto desde o louco verão Fora Temer e o Tsunami da Educação. Tinha menos cartolina da Kalunga, como foi o caso em 2013 e na campanha de 2018. Hoje tinha mais pedaços de papelão. Muita gente veio fantasiada. A maioria das pessoas era jovem, o que reforça a necessidade de resistência pública imediata: se fôssemos esperar que os jovens estivessem vacinados para ir às ruas, daria mais de ano e meio!

Absolutamente todo mundo de máscara, e havia todos os graus de aglomeração. Tinha mais aperto para quem queria, e tinha espaço mais em volta também para aqueles que preferiram guardar certa distância.

É muito bom quando uma manifestação ser grande – é assim é possível buscar os ambientes onde cada um se sente melhor. No geral evito carros de som grandes. Eles são agressivos, como púlpitos turbinados esmagando tudo à sua volta. O acesso ao microfone é controlado e no geral é um compone nente do embate eleitoral das agremiações. Como um elefante de guerra, pesado e lento, mas potente em poder de fogo, ele é bom para percorrer território inimigo ou hostil, tipo um bairro nobre, ou para se fazer ouvir por cima do cerco policial.

Os atos da direita, desde 2016, são espalhados e descentralizados. Como uma timeline no celular ou computador, o manifestante se desloca e vai percorrendo os vários carros e barracas. Assim é mais generoso e menos opressivo. Parte da esquerda institucional tem por pano de fundo existencial a unificação de todas as pautas e todas as lutas em uma só. Se isso dá força na luta pelo poder do estado, tende a afunilar e apagar os movimentos, impor adaptações e redundar em sequestro de pauta.

Assim, não fiquei muito perto do carro de som principal, que era da Frente Brasil Sem Medo e entidades estudantis – e perdi a fala do Boulos. Mas vi outros carros menores (PSTU e outro da APEOESP), além da maravilhosa pipoqueira do Arrastão dos Blocos, onde outras vozes eram irradiadas.

Encontrei S e ele me alertou para a presença de “arrependidos” no ato. De fato, agora vinha chegando muita gente que não era militante, famílias e adolescentes, e até grupos escolares. Estes eram uns cachos de crianças de uns 12 anos acompanhadas por uns adultos ansiosos. Em 2016 vi muitos grupos assim.

Mas acho que o perfil “arrependido” pode ser uma fantasia da esquerda. Eu mesmo alimento este fantasma, com minha camiseta onde escrevi “Eu avisei” (hoje obtive interações interessantes!). Ainda há uma posição fora da esquerda que é “Bolsonaro mentiu e não fez aquilo a que se propôs. Fui enganado”. Este não é o penitente com que sonho, nem um que ajoelhará no milho e pedirá perdão, contrito e choroso. É um lugar confortável de estar.

Vi sim muitos cartazes à mão que já tinha visto, letra por letra, em 2018 ou em 2016, tipo “Um filho teu não foge à luta”, “Tem tanta coisa errada que não cabe em um cartaz”, ou “Sérgio Moro ex-juiz omaior traidor da pátria brasileira”, mas o que predominou nesse campo hipotético do coxinha ou isentão arrependido eram mensagens mais genéricas, focando na incompetência e na imoralidade do presidente, além da – adivinhem – corrupção.

Creio que o Tsunami da Educação dos anos Fora Temer foi em parte perdido pela má condução das entidades estudantis, que tendem a replicar as posições de suas naves-mães partidárias. Lembro de ter conversado com muitos jovens então que eram contra as reformas educacionais, mas que se ressentiam do estilo das entidades e coletivos políticos de esquerda que tentavam fazer ligar as pautas locais ao calendário eleitoral.

Mas se no passado eu me preocupei mais em incluir esta posição isentona, hoje em dia liguei o foda-se, pois testemunhamos que este lugar da isenção nos jogou aos lobos. Os centristas e liberais não vieram em socorro da democracia, então foda-se agora e vocês que venham correndo atrás: que façam o “respawn”, como nos games, e que recomecem o nível do início. A esquerda está na frente agora e não vamos esperar.

Um termômetro bem visível desta volta dos arrependidos são as cores nacionais: o sequestro do verdeamarelo pela extrema-direita ainda torna tímida sua presença nas manifestações de esquerda. Dentro da esquerda tem uma divisão entre os nacionalistas e os interacionalistas, e é claro que entre os primeiros a questão da bandeira ou não é ardente, mas não entre os segundos, para quem as cores nacionais são por definição ou de extrema-direita ou pelo menos autoritárias. O debate em si é meio vazio, mas a presença do pavilhão nacional na rua pode ser um indicador interessante para o analista ou comentarista.

Achei que vi faixas e bandeiras desse tipo hesitante: além daqueles manifestantes que assumiram e levaram a dita cuja, havia faixas e bandeiras com rastros verdeamarelos sublinhando mensagens anti-Bozo.

De qualquer forma, a palavra “genocida” apareceu muito. Esta é uma definição do presidente que incomoda muito a direita mas acho que está colando. Como o proverbial demônio na garrafa, uma vez solto não volta mais…

O nome de Marielle apareceu muito, em camisetas, cartazes, falas e palavras de ordem.

Eram 16h30 e fiquei percorrendo a extensão da manifestação e deu para ver que a avenida fora fechada desde a rua Augusta até pelo menos a rua Pamplona. Depois fecharam tudo, até a Brigadeiro. Achei que a presença policial era bem discreta e algo pequena para o tamanho que vinha tomando a manifestação. A Tropa de Choque não estava lá. Só a CET e os PMs de jaleco verde, que são tipo os soldados rasos genéricos. Foram discretos até a dispersão na praça Roosevelt, quando houve momento tenso.

Fui vendo diversos movimentos, sindicatos e coletivos: o Sintrajud, os metroviários, trabalhadores do SUS, indígenas, movimentos de moradia, o MTST com presença forte, a CUT, vários coletivos feministas, outros dos movimentos negros, anarquistas e autonomistas, sindicalistas.

Vi uma bandeira dos indígenas andinos, a Wiphala. Vi uma moça, solitária, que batia a panela que trouxera consigo. Outra mulher trouxe uma coroa funerária de flores, com os dizeres “Fora Bolsolixo”.

Fiquei muito surpreso com um moço de camisa da CBF. Cheguei perto e vi, nas costas, o nome “Luiz Ignácio”. Esta é uma camisa que o PT fez um tempo atrás, oportunisticamente explorando essa tal recuperação das cores nacionais.

Fiquei muito feliz de estar na frente da FIESP, onde acompanhei muita manifestação bolsonarista. Hoje, muitos jovens, muita energia boa, saber que não estou sozinho em casa torcendo as mãos. Que alívio enorme! Acho que a maioria das pessoas estava, como eu, meio perplexas e chocadas com o longo período de confinamento.

Encontrei uma fanfarra de metais muito animada. Eles têm estado em manifestações faz muitos anos, mas não tenho certeza se ainda se chamam Fanfarra Clandestina. De qualquer forma, dão um clima muito legal ao ato, de rés do chão, sem amplificação elétrica. Tocavam cirandas e “covers” inesperados, tipo o hino “We Will Rock You”.

Anotei os cartazes “Bolsonaro seu bobão”, “Fim do governo do apocalipse”, “O verme é pior que o vírus”, “Xô familícia, peculato do crime”, “+ raiva, – medo”, “Viva Nelson Sargento”, “Foda-se o machismo”, “Por que não te Salles?”, “Até a bíblia avisou sobre falso messias, e vcs não acreditaram”.

Já perto das 17h encontrei o Arrastão dos Blocos. Eles são uma espécie de federação dos blocos de carnaval de São Paulo, muito presentes nas manifestações do Fora Temer e na campanha de 2018. Seu hino imortal define a luta do momento:

“Arrastão dos Blocos, nem um passo atrás.

Folia da democracia, ditadura nunca mais (…)

Tira seu ódio, vem vestir a fantasia.

Desce do Moro, rala o Cunha até o chão.

Justiça mercenária; Congresso obscuro.

Se eles se acham macho, nosso grelo é duro!”

Fiquei com eles um tempo, e lá vi uma moça com um cartaz preso às costas, talvez o melhor que vi hoje. Ao estilo das clássicas mensagens “Lute como Marielle”, “Lute como uma garota” e “Lute como uma professora”, o cartaz trazia “Lute como um carnaval”. Bingo.

Vi os observadores da OAB presentes. Encontrei E, R, M e L.

Toda a extensão da avenida estava tomada de gente, mas em densidades diferentes, então foi difícil estimar o número de manifestantes. Cheguei a calcular dez mil pessoas, mas as fotos aéreas que vi depois sugerem algo mais próximo de 50 mil.

Vi os cartazes (feitos à mão): “Ô Bolsonaro, as bichas vão te derrubar!”, “Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada neste meu penar” – em referência à famosa canção de Chico Buarque), “Não ao trigo transgênico”, “Desencontra o ânus Bolsonaro”. Vi uma camiseta “Linda, louca, vacinada”.

Lá pelas 18h o povo se movimentou para sair em passeata. Deu uma preguiçona, mas decidi descer a avenida Consolação com o povo mesmo assim.

A saída não foi muito organizada e rolou que os anarquistas saíram à frente, só atrás do Arrastão dos Blocos. Resolvi não esperar a multidão toda e segui com a frente do ato.

Os anarquistas cantavam a Internacional e puxavam palavras de ordem, algumas clássicas: “É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital!”.

Lá pela altura do cemitério da Consolação o Arrastão e a frente do ato parou para esperar o resto do povo que ainda saía do MASP. Ficamos uns 20 minutos ao som da pipoqueira do Arrastão, que animou o povo, que dançava.

Ouvi com eles uma versão da canção Bela Ciao, adaptada para os dias de hoje: “O povo está se levantando para dizer Bozo tchau, Bozo tchau, Bozo, tchau tchau tchau, em defesa de nossa vida, nós queremos viver”.

Notei que alguém tinha pixado “Foda-se o Mack” na parede branca de uma unidade da universidade Mackenzie.

Por fim avançamos, e na esquina da rua Maria Antõnia, vi as projeções que alguém fazia na empena cega do cruzamento. Até mesmo a bolinha de luz, que é irradiada por uma lanterna de mão, jogou sua mensagem sobre a larga superfície. Essa galera da bolinha de luz é vezeira de manifestação, e nos loucos anos Fora Temer a bolinha de luz apareceu muito nas paredes da cidade.

Afinal chegamos à Praça Roosevelt, o ponto final, mas a passeata como um todo demorou muito a desaguar lá. Eram 19h30.

Vi um skatista com uma camiseta “Lula Livre”.

De repente um zumzum na multidão e vejo que a equipe de filmagem da PM, 5 soldados que estiveram conosco todo o tempo, saiam fora do meio do povo. Muita gente os xingava.

Os anarquistas e autonomistas são muito visados pela PM, e é possível que tenham sido provocados pelos PMs. A filmagem e identificação de manifestantes desse campo é intensa e desproporcional.

Os PMs saíram fora do meio do povo e buscaram a calçada do lado oposto à escadaria da praça. A tensão ficou muito alta, e temi ação policial repressiva àquela altura, milhares de pessoas acorrendo ao lugar. Mas não tinha tropa de choque e só uns 100 jalecos verdes chegaram. Não houve provocação nem violência explícita da polícia, o que garantiu a paz. Como coloca palavra de ordem do movimento: “Que coincidência, não tem polícia, não tem violência”.

Subi até a Maria Antônia e o cruzamento estava totalmente fechado, nas duas vias. Vi um fogo no asfalto, li depois que era um boneco do presidente.

Fiquei um pouco mais e lamentei não poder ir a um boteco e terminar a jornada do dia cercado de antigos e novos amigos, tomando uma gelada nalgum muquifo perdido do centro.

Conversei com C que me contou como tinha havido carreata de manhã para aqueles que não quiseram sair na multidão, e como no seu bairro do Rio Pequeno há ações solidárias, de cuidado alimentar. Avaliamos que quem saiu em socorro dos outros e se organizou nas redes de apoio e cuidado vai sair com mais força dessa fase escrota.

Sob a luz pública artificial das ruas da cidade, naquela noite quente, olhei para a avenida Consolação tomada de gente. Aqui percebi como é potente estar na frente da passeata. A faixa da frente podia ser fotografada contra a multidão transbordante da avenida, dando a impressão que a pauta da mensagem da frente mobilizou todo aquele povo.

A passeata ia chegando devagar e o povo dispersando. Continuei achando que a PM estava com um contingente pequeno e improvisado. A CET tentava desesperadamente reorganizar o fluxo do tráfego, mas já tinha milhares de pedestres escorrendo por entre os carros… breve ia ter 50 mil pessoas zanzando pelo centro.

Estava muito feliz como dia de hoje. Muita gente, muito jovem. Sei que é temerário ser otimista, já que o ato de hoje não resolve nenhum dos problemas ardentes do Brasil: as instituições continuam derretidas, ovo fascista está a chocar, a esquerda ainda meio perdida, a imaginação política embotada pela avalanche de violência cognitiva.

Mas o Fora Bolsonaro ganhou a rua e é agora incontornável, o grito não vai voltar para a caixinha. Tem sim disputa pela narrativa e há um caminho muito longo a percorrer, e ainda dá para dar tudo errado. O calendário eleitoral atrapalha mas é inevitável, um eventual governo Lula vai apenas iluminar os problemas que já temos…

Mas, consistente com as recentes medições de fluxo de rede, parece que alguma coisa está a mudar… Somos a maioria.

Quem veio hoje não vai esquecer. A coisa vai crescer.

A fanfarra atacou de “Tequila” quando decidi pegar o metrô e ir para casa.

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