Manifestações de Oposição

Nos dias 13 e 14 de junho 2020, quatro manifestações indicam o florescimento de diversas oposições no cenário político brasileiro – e o refluxo do bolsonarismo nas ruas.

Todas as imagens generosamente cedidas por Alice Vergueiro

Sábado – Ato contra a Morte

Caminhei a partir do Paraíso para chegar às 14h no MASP na avenida Paulista em São Paulo para um ato pelas vítimas do covid-19, da ditadura de 1964 e da violência do estado brasileiro.

Neste sábado, a presença policial era bem marcante, muita viatura e policial parado ou patrulhando a avenida.

Mas depois entendi que o aparato policial que eu via poderia ser dedicado ao ato antifascista que tinha sido chamado para as 16h. Ou então era só ostentação opressiva, que ocorre muito também.

Cheguei ao museu e vi que o vão tinha sido gradeado e assim impedia acesso ao espaço livre.

Logo vi a fotógrafa A. Conversamos um pouco sobre a situação geral e a vida profissional nos tempos atuais.

Encontrei F e falamos do estado atual das mobilizações e do dilema da manifestação dentro da pandemia. Ele falou da iniciativa de formulação da lei de apoio ao trabalhadores da cultura. Ele falou que o presente ato foi do Grupo de Ação, que nasceu daquela iniciativa do Vira Voto, que era gente que saiu aos lugares públicos para conversar e tentar convencer os eleitores a não votar no fascismo, às vésperas das eleições.

Todos os manifestantes hoje usavam máscaras.

Imagem: Alice Vergueiro

O ato era uma espécie de performance. Recebemos uns A3 com o retrato de uma das vítimas homenageadas, de trabalhadores da saúde até militantes, incluindo Marielle, Amarildo, Marighella, Aldir Blanc e muitos outros. O ato tomou uma via da avenida às 14h30 e, distanciados em 2 metros, cada umas das mais ou menos 100 pessoas segurava o seu retrato, em três filas. Três faixas ladeavam a concentração: “Fora Bolsonaro”, “Estado genocida”, e Vidas Negras importam”.

Dois jovens ao megafone puxaram um jogral e o manifesto do grupo foi lido. A seguir, os nomes das vítimas homenageadas foram entoados por todos, intercalados pelos gritos de “Presente” ou “Fora Bolsonaro”.

Imagem: Alice Vergueiro

Uma coluna de uns 50 policiais tomou o canteiro central, mas não houve repressão. Vi um moço da OAB, uma camiseta do Juntos! E um figura com uma bandeira do estado de São Paulo, mas ele não participou muito.

Entregadores em suas bicicletas e motoristas festejaram ao passar.

O ato se dispersou 15h15 e ouvi conversa de policiais que esperavam o próximo ato, o antifascista. Resolvi esperar e ver o que era.

Caminhei pela avenida e acabei por ver, já perto das 16h, um grupo de militantes do PCO na esquina com a Ministro Rocha Azevedo. Estavam portanto meio longe de onde se concentrava o aparato policial – mas eram mesmo assim observados de perto por uns 15 soldados.

O grupo era animado por um grupo de percussionistas, e muitas bandeiras vermelhas e seu faixão gigante: “Partido da Causa Operária. Revolução, governo operário, comunismo.” Outra faixa trazia “Fora Bolsonaro”. Outros cartazes menores traziam os itens da pauta atual: Fora Bolsonaro, eleições gerais já.

Fiquei pouco, não esperei para ver iam sair ou ficar. De saída, notei outra faixa: “Fim da PM Já. Coletivo de Negros Antônio Cândido”.

Domingo: Atos antifascista e bolsonarista

Imagem: Alice Vergueiro

Ao mesmo tempo que o consenso bolsonarismo parece refluir, diversos manifestos e iniciativas, inclusive de rua, começam a florescer e disputar espaço político. Hoje tinha pelo menos três eventos a checar.

Saí de bicicleta às 13h em busca da Pedalada Antifascista. Tinha sido marcada para a Praça do Ciclista, mas ela já tinha sido impedida de ocorrer na semana passada pela polícia. Fui ver memso assim.

No caminho, passei pela frente da FIESP e vi uma figura que abria uma faixa que pedia a intervenção militar. Havia também uma caixa de som e fiquei muito alarmado achando que ia ter manifestação bolsonarista ali, hoje, o que seria extremamente provocador. Notei que os 15 PMs à volta da pessoa não se mexiam nem se incomodavam, em evidente cumplicidade.

O indivíduo em si era uma mulher que vejo muito em manifestação, desde pelo menos 2016. Trata-se de uma mulher de uns 50 anos, com uniforme de soldado, boina verde, cabelo curto e óculos escuros. Seu porte é bem ao estilo militar, mas o arranjo final é tão caricato e ela poderia ser uma inverossímil personagem do Chaves.

Mais tarde vi que ela não permanecera no local e se fora antes do início do ato antifascista.

Segui para a Praça do Ciclista, e quando cheguei ao local, havia muitos policiais, cavalos e também o caveirão, que é o blindado israelense adquirido pela PM de São Paulo.

Além disso, lá também era o local de concentração de palmeirenses antifascistas, e já havia uns 50 deles lá.

Depois me falaram que os ciclistas, provavelmente majoritariamente autonomistas, tinham preferido ir ao bairro vizinho de Pinheiros e fazer sua manifestação lá. “Teve mais gente do que na Paulista”, fui informado depois, mas não achei notícia do evento na minha bolha.

Mas li também um manifesto antifascista que anunciava o boicote à manifestação de hoje. Há, de fato, um embate político entre os “originais” antifascistas, notadamente anarquistas e autonomistas, e os “novos” antifascistas, que inclui também partidos e coletivos marxistas e socialistas. Os primeiros parecem apostar num crescimento horizontal de massas, isto é, mobilizar a população ao largo da esquerda institucional. Os segundos apostam no crescimento com a sociedade civil e veem como naturalidade a presença de organizações hierárquicas que lidam, por definição, com o Estado.

O pomo da discórdia se deu nas negociações com a PM e a aceitação do chamado “rodízio de manifestações” por parte da esquerda institcional. Para os libertários, o ponto é justamente confrontar o fascismo e expulsá-lo das ruas, e não combinar alternância.

Depois de muito hesitar fui dar uma olhada no ato bolsonarista do Viaduto do Chá. Desci a rua Augusta e peguei a Xavier de Toledo, virando à direita para ganhar o Viaduto. A presença policial era muito forte (pelo menos uns 100 soldados, 15 motocicletas, 5 viaturas), e fui revistado antes de chegar ao carro de som em frente ao prédio da prefeitura.

Mas tinha poucos manifestantes, uns 50, na maioria homens ao redor dos 30-40 anos de idade. Vi muitos rostos que já vira antes nos atos da Paulista. As faixas eram as de sempre e faziam referência ao governador Doria. No carro de som, bandeiras do Brasil e Espanha, além de uma faixa com a mensagem “Representante dos bolsonaristas que estão no Japão”, e outra “Libertem Bronze e Jurandir”, que são os ativistas presos em frente a casa do ministro do STF Alexandre de Moraes, semanas atrás.

Vi com pessoas as bandeiras dos EUA, Israel e do estado de São Paulo.

A tarde era fria e achei tudo desanimado. Depois li que “muita gente tem medo de vir ao centro” como justificativa da baixa adesão de hoje. Típico da classe média paulistana.

O carro de som tocava uns jingles da campanha de 2018, às vezes um reggae, por vezes um rap genérico. Mas quem dançava eram moradores de rua. Vi um homem de barba branca cheia, paletó puído e chinelo desmantelado bailar feliz na calçada, no meio dos coxinhas. Depois foi uma senhora paupérrima que dançou desenvolta, com seus pertences embalados num saco de lixo preto, arranjado em um carrinho de mala.

A energia louca do centro penetrava o ato, como ocorre com tudo que acontece na região. Só que os direitistas, ao contrário da esquerda e dos artistas, não tinham vocabulário para absorver e incorporar essa vibração. Logo antes de ir embora, uma jovem trans, do povo da rua também, ia e voltava acintosa pela calçada. Ninguém teve coragem de mexer, mas causou desconforto!

Fiquei uma meia hora e, vendo que nada de novo ia sair daqui, retornei à avenida Paulista, subindo a rua Augusta. Era evidente que a presença do bolsonarismo nas ruas entra em crise.

Imagem: Alice Vergueiro

Cheguei às 14h30 e estava bem mais cheio. No final, calculei os manifestantes em uns 1500, talvez dois mil. A presença visual mais marcante era talvez a da organização “Somos Democracia”, que traziam faixa amarela e muitas camisetas da mesma cor.

O ato tinha um carro de som pequeno, e assim não oprimia ou esmagava os manifestantes. Uma faixa no carro trazia “Gabriel Presente. Coletivo Democracia Corinthiana”. Logo vi uma enorme faixa no asfalto, de uns 10 x 100 m: “Fora Bolsonaro: sua gripezinha já matou mais de 40 mil”.

Todos os manifestantes usavam máscaras, e vi voluntários aplicando álcool gel nas mão das das pessoas que pediam.

Imagem: Alice Vergueiro

Cheguei logo antes da passeata sair. A presença policial era forte, e duas colunas de 50 soldados envelopavam o início da passeata. Atiradores avulsos caminhavam nas calçadas, acompanhando a movimentação, e umas 10 viaturas vinha atrás, fechando a passeata.

É muito evidente a diferença no tratamento dado às manifestações de direita e esquerda. Nunca vi esse cercamento em ato coxinha,em contraste com o MPL, por exemplo. Os passelivristas sofreram muito esse tipo de aperto, que isola a movimentação do resto da vida na rua. Além disso, toda a região em volta da avenida fora isolada, de modo que o impacto da movida é diminuído e se resume ao registro videográfico. Além disso, o desligamento da iluminação pública em passeatas de esquerda é prática comum e provavelmente ilegal.

De qualquer forma, não houve repressão hoje e a passeata seguiu até o fim, na Praça Oswaldo Cruz.

Imagem: Alice Vergueiro

Achei que a idade média dos manifestantes era de 20-30 anos, quase meio a meio em termos de gênero.

Estava bem diverso e jovem, especialmente quando contrastado com os coxinhas no centro, mas o perfil dominante era militante. Tinha até muitos cartazes e faixas feitos à mão, a maioria deles, o que dá um ar mais humano e espontâneo aos atos. Mas não foi um ato para o qual a sociedade civil acorreu em massa.

As torcidas de futebol e movimentos da gente preta traziam corpos menos institucionais, mas o próprio formato dessa frente “Somos Democracia” dava um ar meio oficial e menos inesperado à passeata. A criatividade louca do ato massivo ainda não irrompeu nessa frente.

A presença de bandeiras do Brasil e de camisas da CBF indicavam a espinhosa atual questão da “ressignificação dos símbolos nacionais”.

As pautas principais foram “Fora Bolsonaro” e “Vidas Negras Importam”, passadas em escrito e em viva voz.

As mensagens manuscritas incluíam “O STF não pode ficar sob a tutela dos militares”, “Pele preta é o alvo da bala perdida”, “Preservar o meio ambiente e destruir o capitalismo”, “Enquanto houver racismo não haverá democracia”, “Marginal é quem assalta o poder. Fake News”, “Cassação de Bolsonaro e Mourão já” e “Privilégio branco é antidemocrático”.

Imagem: Alice Vergueiro

Vi coletivos e organizações marxistas e socialistas, como o PCO, Quilombo Vermelho, UMS, UJR, UJC, Juntos!, o PSOL, PSTU e CSP Conlutas, PCB, AFRONTE, PT, Ação Petista, Juventude e Revolução, UBES e UNE, Liberdade e Luta,

Vi bandeiras da Palestina, LGBTQ e uma outra grande do Brasil onde escreveram meio toscamente “Fora Bolsonaro. Volta Lula. Vidas Negras Importam. Democracia”.

Presentes também a Frente Povo Sem Medo, um estandarte “Já Basta!”, MUP (moradia), Pompéia Sem Medo Antifascista, MTST e vi um estandarte da “Resistência antifascista”.

Vi vários coletivos feministas, mas deu a impressão de que a maioria era ligada a um coletivo institucional.

Alguém trouxe um armário de verdade, de madeira. Dentro, um Carlos Bolsonaro de papel olhava para fora… Trata-se de uma referência a uma suposta homossexualidade do filho do presidente. O armário ficou para trás, no asfalto, quando a passeata avançou.

Caminhamos ao som de alguns batuques, com a presença de torcidas. A imprensa fez muito da presença de palmeirenses no ato. Em contraste com o Corinthians, que historicamente permaneceu um time popular, o Palmeiras hoje é mais de classe média, e a identidade italiana do clube frequentemente converge com as fantasias de branqueamento dos setores médios paulistanos. Ademais, o presidente marcou muito sua preferência pelo Palestra. Vi bandeiras e faixas do Palestra Sinistro e dos Porcomunas.

Imagem: Alice Vergueiro

Notei que muitas palavras de ordem eram novas:

“Veja, veja, veja, que coisa mais bonita, o povo organizado, lutando pela vida”.

“Ô Bolsonaro, seu fascistinha, o povo negro vai por você na linha”.

“Ô Bolsonaro, presta atenção, você tá mexendo com a revolta do povão”

“A, e, i, o, u, pega o AI-5 e enfia no cu”

Além das favoritas:

“Doutor, eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano” e “É barricada, greve geral, é ação direta que derruba o capital”. Esta última é assinatura de autonomistas, mas estes não estavam presente em grandes números.

Vi uma camiseta “Keep calm and press play”, vi os advogados da OAB e a fotógrafa A, que não me reconheceu debaixo da máscara.

Passamos pela esquina da avenida Brigadeiro Luiz Antônio, que estava bloqueada por uma coluna de escudeiros e atiradores.

Já um homem negro e magro trazia um cartaz ao pescoço que pedia a leitura de trechos da bíblia, Mateus e o apocalipse, para “entender o que está acontecendo hoje”.

Chegamos à Praça Oswaldo Cruz por volta das 16h e, depois da leitura em forma de jogral, o ato foi encerrado e a dispersão começou.

Vi ainda várias equipes de reportagem, e uma delas entrevistava Gleisi Hoffman do PT.

Foi um ato bom, grandinho se não massivo. Acho que agora o mais importante é acompanhar a diversidade de atos e manifestos, vendo como as iniciativas se recombinam e sobrevivem. No momento, no geral do Brasil, parecemos estar entre dois polos: um deles quer saída que mantenha ou recomponha um normal conhecido, um novo consenso democrático, sem rupturas que não seja a remoção da pessoa do presidente – no seu pior extremo é o “bolsonarismo sem Bolsonaro”. O outro polo prefere avançar para transformações democráticas e redesenhar toda a sociedade e economia. Há posições intermediárias.

Seria lamentável voltar ao ponto do governo Temer, por exemplo, ou mesmo do governo Dilma. Na esquerda há forte sensação de esgotamento e de fechamento de ciclo, mas essa não é necessariamente o caso ao centro e à direita.

Pedalei pela avenida e fui para casa.

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