O 13 de maio de luta em São Paulo

Manifestações por todo o Brasil marcam jornada de lutas dos movimentos negros.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Saí de casa às 17h para o ato chamado pela Coalizão Negra de Direitos em São Paulo. Atos ocorrem em todo o Brasil no dia de hoje.

O 13 de maio não é a data comemorativa, mas é uma data de luta para os movimentos. A chacina de Jacarezinho deu urgência especial ao ato de hoje.

Também está em disputa a viabilidade de sair às ruas em protesto. Por um lado, tem o isolamento e resguardo, por outro tem a necessidade de dar um breque em Bolsonaro. No começo da pandemia, ainda não estava claro que a principal transmissão se dá pelo ar, e a quarentena veio a ser o procedimento responsável e aquele adotado pela esquerda. Criticamos muito as carreatas e aglomerações bolsonaristas. Apesar de estritamente correta, essa posição gerou um lugar de censura moral que acabou por atingir tanto os negacionistas quanto aqueles que não têm escolha senão sair à rua e trabalhar. A pandemia recortou a sociedade também em termos de classe, e quem não tem home office e não é assalariado tem grandes dificuldades de respeitar o resguardo sem o auxílio emergencial.

Mas a urgência da resistência, e também o que se sabe da transmissão da COVID hoje, tem persuadido gente que acha que tem que sair à rua: por um lado encontros ao ar livre, com máscaras apropriadas, não provocam contaminação – conforme testes já realizados (a BBC reportou experiência na Espanha, que fez uma rave sob condições reguladas – máscara e testagem – e não houve contágio significativo). Além disso, na Colômbia, Chile, Palestina, Uruguai e outros países (em Glasgow!), o povo saiu às ruas para resistir. O próprio Black Lives Matter gerou talvez o maior levante global da história e não houve aumento de infecções relacionadas à tomada das ruas. Quem enche manifestação é corpo jovem, e no atual andor, quem tem 20 anos pode ser vacinado apenas em 2022.

Esse é um debate que vai ser preciso fazer com muita serenidade e desprendimento. Quem quer deve ficar em casa sem censura, mas precisamos admitir que a quarentena não é igual para todos e que para muitos não há a opção de se resguardar e aguardar tempos melhores. Além disso, pode ser que a maior aposta na vida é remover o atual presidente já. Todos vamos ter que continuar a criticar o negacionismo ao mesmo tempo que é preciso achar uma boa formulação que faças as distinções necessárias entre quem vai resistir pela vida e quem milita pela morte. No ato de hoje, absolutamente todos estavam de máscara e se pedia muito o distanciamento.

Dei um giro inicial e notei a predominância de jovens ao redor dos 20 ou 25. Muita juventude de vários coletivos partidários, mais uma constelação de movimentos negros. Em contraste com o ato da semana passada, de reação mais imediata ao massacre do Jacarezinho, hoje havia mais organizações presentes, em clima um pouco mais festivo do que o luto da semana passada.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Logo vi uma mulher negra sentada na calçada, ao lado de uma poderosa caixa de som. Tocava um funk americano muito bom. Notei que vestia uma espécie de fantasia de girafa, com o padrão de pele característico do animal, mais uma cauda de pano e um gorro de lã com as cores dos EUA. Sorri para ela e fiz gesto de aprovação. Ela sorriu de volta. Seu som inundava a multidão.

Notei também que havia bastante cartazes e faixas feitas à mão, o que indica capilaridade das pautas para fora das direções. Calculei que, no seu máximo, tivemos uns 2 mil manifestantes, o que achei muito bom.

Não vi ninguém que eu conhecesse, fora os 5 amigos que estavam trabalhando: C, os fotógrafos A, L, S e o FS da comissão da OAB. Até o fotógrafo coxinha estava lá, ele que registra movimentação de esquerda para o MBL, até onde sei. A PM filmou tudo com seu trio de registro videográfico (cameraman mais escolta).

Vi os cartazes feitos à mão: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, “VACHACINA”, “Não foi operação, foi chacina”, “Vidas Negras Importam”, “Pelo fim do necrocapitalismo”.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Vi uma bandeira do Brasil sendo manchada de vermelha, e mais tarde a vi envolvendo um caixão de papelão.

“Olha a polícia, hein!” disse uma manifestante a um delegado da OAB, que sorriu em resposta.

Logo ouvi entoado em voz alta: “Marielle perguntou, e eu também vou perguntar, quantos mais têm que morrer, pra essa guerra acabar?”.

Às 17h30 os manifestantes já eram suficientes para ir fechando a avenida. Achei a energia ótima, uma alegria de estar juntos na rua, com disposição para a luta e certa solenidade em face ao perigo que corremos e os massacres recentes. Tinha saído de casa meio deprimido com a violência na Palestina e na Colômbia. A CPI pouco me alegrou.

Sempre que ouço a gente preta falar, cai a ficha da urgência da luta. Oradores lembram as chacinas anteriores que continuam sem apuração e punição: Osasco, Barueri, Paraisópolis, Jacarezinho, Candelária… e a lista macabra de nomes de executados, jovens e crianças. O efeito cumulativo é horrendo, e só em ocasiões como esta é que a figuração do horror aparece para alguém como eu. Faz tempo que venho a atos dos movimentos negros e o apelo é sempre igual – estão nos matando!

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Ouvi uma melodia conhecida e fui ver a mulher da caixa de som, e ela irradiava a famosa cançãocom a frase “You are just another brick in the wall”, do Pink Floyd.

Acho falsa ou pelo menos improdutiva a formulação “classistas x identitários”, mas é notável que – de novo – sejam os movimentos de base e não a esquerda institucional que estão saindo às ruas e possivelmente inaugurando uma jornada de luta pública que pode ser decisiva mais para frente. Precisa ter carinho e respeito pelos movimentos, sua coragem e protagonismo sustentam o campo da esquerda e ativam a murcha imaginação política da canhota hoje.

Vi a faixa que depois abriu a passeata: “13 de maio de luta. Nem bala, nem fome, nem COVID. O povo negro quer viver. #chacina de jacarezinho #fora bolsonaro genocida #coalizão negra por direitos”.

Vi muitos entregadores em suas bicicletas pararem e registrarem o evento em seus celulares.

Algumas palavras de ordem clássicas de novo ressoaram pela avenida Paulista: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar!”, e “Marielle vive e viverá, as mulheres negras não param de lutar”.

Uma outra palavra de ordem forte foi a “Povo negro unido, é povo negro forte, sem temer a luta, sem temer a morte”.

Os coletivos de partido estavam lá com seus corpos e suas bandeiras, como Emancipa, UJR, UJC, Juntos, UP, LSR, CSP Conlutas, UPES, “Já Basta!”. Notei uma presença autonomista sinalizada pelas bandeiras negra e vermelha, da OASL, LOI e “ABC Antifascista”.

Conversei com C e N, que estavam fazendo entrevistas. Estavam pessimistas com o Brasil no geral e cobravam presença das lideranças e dos partidos ali, lamentando que o calendário eleitoral estava a dominar a política e que na quebrada não há quarentena nem resguardo e que é hora de sair mesmo.

Vi uma camiseta “Black Panther Party for Self-Protection”.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Ouvi a palavra de ordem “Bolsonaro, eu não me engano, seu governo é miliciano”. Trata-se de uma versão de uma marchinha de carnaval, “Transplante Corinthiano”, gravada no passado por ninguém menos que o Sílvio Santos (“Doutor, eu não me engano, o coração é corinthiano. Eu não sabia mais o que fazer. Troquei meu coração cansado de sofrer. Ah! doutor, eu não me engano: botaram outro coração corinthiano”).

Também “Ô Bolsonaro, seu fascistinha, a juventude vai por você na linha!”,

Chegou um carro de som por volta das 18h30.

Conversei com FS e ele me contou que no meio jurídico há intensa crítica à Lava Jato e ele me garantiu que Moro está morto politicamente. Sua avaliação é que o dinheiro já abandonou Bolsonaro e que a atuação recente do STF – e a conversão de Carmen Lúcia no caso Lula – é sinal disso (e também a presente atuação de Renana Calheiros seria um embrião de aliança com ex-presidente). Contou também um pouco do seu contato com as articulações nacionais dos Policiais Antifascistas.

Depois vi Érika Hilton, que tirava fotos na calçada – ouvi-a falar no carro de som mais adiante na avenida Consolação.

Conversei brevemente com o fotógrafo S e ele me falou que o ato da semana passada o impactou mais.

Caminhava pelo povo ao som de um batuque, e ouvi algumas das falas. Falaram parlamentares negros e outros. É notável que os movimentos negros tenham articulado crítica ao colonialismo que vai muito além das teorias da dependência, atentos a continuações e permanências dos poderes coloniais hoje.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Vi as faixas “Pelo fim do genocídio negro. Nem mais um dia para Bolsonaro. Diálogo e Ação Pestista”, “Coletivo Democracia Corinthiana contra o Genocídio”, “Volta às aulas só com vacina e o fim da pandemia”, “Basta de guerra aos pobres! Punição aos assassinos da chacina do Jacarezinho – UP/UJR”, “Abolir a polícia, destruir as prisões”, “Poder ao povo”, “J. S. Luis organizado. Periferia quer viver”.

Vi as bandeiras da “UNEAFRO – conhecimento é poder”, UNEGRO, “Fora Bolsonaro. Bancada Feminista”, do PCB, PSTU, PSOL, CMP, MTST, SINTRAJUD, Porcomunas.

Saímos em passeata logo depois das 19h. Quase em frente ao Conjunto Nacional, o povo entoava o “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar…”, e, na calçada, vi um homem da rua agarrado a seu cobertor cinza dançando ao som das frases cadenciadas, juntos a duas moças negras manifestantes. Parei e assisti um pouco, comovido.

Seguimos e anotei os cartazes, feitos à mão: “Psicologia contra o genocida”,, “Parem de nos matar”, “Apuração e punição da chacina de Jacarezinho”, “A fúria negra outra vez”, “Estado burguês mata mais que o Covid”, “O plano do governo é o genocídio”, “A democracia não chegou na favela”, “Morreremos de fome ou de covid?”.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Ainda na Paulista, vi uma propaganda do Uber no painel luminoso de um ponto de ônibus: “Se você é racista, a uber não´pra você”.

Lembrei da Amazon. Li que o seudono, o Bezos, poderia dar a cada empregado de sua empresa um bônus de CEM MIL dólares e ainda assim ser tão rico quanto no começo da pandemia…

Seguimos com “Chega de chacina, eu quero o fim da PM assassina” e também “Ô Bolsonaro, pode esperar, a gente preta vai te derrubar!”.

Os oradores foram se sucedendo, e pelo menos duas vezes ouvi o delicioso Slam, que é a fala cadenciada, tão poderosa. Aguardo com ansiedade o momento em que o estilo gritado do discurso sindical, ainda tão prevalente, seja substituído pela poesia da gente preta.

Todos celebravam a luta e a vida – “A gente tem que estar vivo” – e buscavam resignificar o 13 de maio e outros capítulos da história do Brasil.

Érika Hilton falou “Negros organizados, em luta, reafirmando o óbvio: queremos viver! Olham para a gente como alvo”.

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Outros fizeram lembrar a parcialidade das ações policiais: “Quem é que lembra da cocaína no avião presidencial?”. Muitos recordaram que a maior apreensão de armas do Rio de Janeiro foi no Condomínio da Barra, onde mora o presidente, e lá não teve tiro nem morte.

Dobramos à direita para descer a avenida Consolação.

Vi uma bandeira da Palestina. Uma camisa do Flamengo. E duas moças com camisas do SPFC Antifascista.

Adiantei-me um pouco e caminhei na frente da passeata até a esquina da rua Fernando de Albuquerque. Lá vi um moço escrevendo com giz no asfalto. Vi que ele era do povo da rua, e carregava consigo um saco de plástico preto. Concentrado na sua escrita, não percebeu uma viatura que veio muito devagar por trás e parou rente. Quando notou o veículo, ele não deixou de escrever e só depois foi ter com a polícia. Nada decorreu do encontro, e ele finalizou sua frase no chão: “Este movimento é forjado pelas autoridades”. Apesar da ambiguidade da frase, fui até ele e cumprimentei-o pela coragem, mas ele me ignorou e foi embora, descendo pela Consolação com seu saco preto.

Continuamos e ainda anotei as faixas: “Chega de genocídio. RUA”, “Radicalizar as ideias e as ações. AFRONTE”, “SOS Mães do Brasil”, “Pelo fim da polícia militar já. João Candido. Partido da Causa Operária”, “A juventude negra vai derrotar Bolsonaro. Nem fome, nem vírus, nem bala. Juntos”.

“Você é Pandolfo?” perguntou de repente um moço que segurava uma faixa. Disse que não, mas fiquei intrigado com o nome… e fiquei me perguntando de que forma eu poderia ser Pandolfo, sem sabê-lo…

Todas as imagens cedidas por Alice Vergueiro

Chegamos finalmente à Praça Roosevelt e nos reunimos todos em frente às escadarias. Eram 21h. . Oradores finais falaram, como o Douglas Belchior. Ele lembrou que quem derrotou Trump foi o Black Lives Matter e saudou o Milton e Dona Regina, do Movimento Negro Unificado.

Fizemos um jogral e começou a dispersão.

A atuação da PM foi razoavelmente discreta, mas cercaram a passeata pelos lados. Além disso, como já de praxe, o quartel dos bombeiros na avenida Consolação abrigava dois caveirões mais um contingente anti-motim, ostensivamente hostis.

Mesmo cansado, não quis tomar o metrô e caminhei para casa.

Passei pelo MASP agora vazio e vi a senhora da caixa de som e fantasia de girafa ainda sentada na calçada. Ao lado dela, uns 5 sem-teto embrulhados em cobertores, tristes. Eles certamente passariam a noite ao relento.

Passei pela FIESP, que, em seu painelzão, mostrava dados da vacinação contra a covid sob fundo verdeamarelo – só que indicava “doses distribuídas”, em agenda “positiva” pró-governo.

Cheguei ao fim da avenida e fui para casa.

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2 comentários para "O 13 de maio de luta em São Paulo"

  1. Caro Gavin,

    É sempre prazeiroso ler seus textos e comentários a respeito dos movimentos progressistas. Dá uma sacudida na gente, acomodados no dia a dia pequeno burgês, admirando sua coragem de não compor com o sistema. Parabens e continue na luta!!!

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