Carreata coxinha Fora Bolsonaro em São Paulo

Os direitistas MBL e VemPraRua saem às ruas pelo impeachment de Bolsonaro com discurso de traição no domingo dia 24 de janeiro de 2021.

Todas imagens capturadas de Chernobyl

Saí de bicicleta em busca da praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, de onde saiu a carreata Fora Bolsonaro chamada pela direita – pelo MBL e pelo VemPraRua. As duas agremiações apoiaram abertamente o capitão e fizeram campanha para ele em 2018. Queria muito ver como o discurso agora oposicionista daria conta desse fato.

Para provocar reações nesse sentido e obter conversas dentro do formato carreata, escrevi a canetão numa camiseta amarela os dizeres “Eu Avisei”. Achei que isso me aliviaria daquilo que está na garganta desde 2016, que é a hipocrisia dos ditos democratas e liberais.

Esperava também interagir na praça, mas fui surpreendido pela carreata ainda na avenida Paulista, liderada pelo carro de som do VemPraRua. Claramente tinha me enganado quanto ao horário, então pedalei até a esquina da avenida Consolação.

No caminho, tive a oportunidade de fazer a primeira provocação. Discursava em cima do carro o notório emebelista “Mamãe Falei”, quem eu já tinha ouvido pedindo voto a Bolsonaro, naquela mesma avenida. Chamei sua atenção, parado na calçada, mostrando minha camiseta como se faz no futebol, realçando os dizeres no peito. Ele começou saudando minha pessoa, mas logo leu o que eu trazia ao peito e ficou puto, dizendo “é ‘eu avisei’, mas não ia votar no PT. Olhaí um cabo do PT”.

Achei divertido e resolvi pedalar de volta à cabeça da carreata e ouvir o que dizia o VPR. No caminho, notei que muitos daqueles que corriam na ciclovia se irritavam com a carreata e mostravam o dedo médio. Me contaram depois que um ex-membro do VemPraRua estava na esquina da Consolação e ficou hostilizando o carro de som com uma bandeira. Acho que essa campanha do impeachment abre uma divisão muito ardida na direita. Como relato abaixo, há uma narrativa, porém, que garante o arrependimento sem expiação.

As carreatas de hoje e ontem se pareciam, o que não é surpreendente. Quando há corpos na rua, é possível realizar a ambígua mas deliciosa sociologia das aparências, isto é, julgar classe social pelo visual da pessoa. Mas hoje grande parte das janelas dos automóveis estavam cobertas pelo odioso filme escuro que apaga a presença humana dentro do veículo. Cheguei até a ver hoje carros que tinham estado na carreata de ontem. Curiosamente, um deles era o carro que trazia o cartaz “Vacinas salvam, ele não”, que tinha lido errado ontem.

Confirmei que a PM hoje era amistosa e garantia o fluxo de automóveis da carreata em todos os cruzamentos, ao contrário de ontem.

O tom geral das falas do carro de som do VPR era de responsabilização do presidente pela má condução da saúde pública, e que “vidas brasileiras importam”. “Chega de negacionismo”. Mas o mote principal era o da “traição” de Bolsonaro. “Os brasileiros que sonharam” foram traídos pela maldade do presidente. O acerto do voto no capitão em 2018 não era questionado. Mencionaram a luta contra a corrupção e pediram que Rodrigo Maia abrisse o processo de impeachment.

O orador ainda sublinhou que a campanha pelo impeachment era “suprapartidária, defendendo o Brasil”, e de fato só tinha bandeira do Brasil e um único cartaz impresso em grande quantidade (“Lira Não Fora Bolsonaro”). Mas notei que tinha sim bastante cartaz feito à mão, como “Pior que o vírus só o mito”, “Fora Capetão” e “Fora Bozo”. Cheguei a ver um boneco com a máscara do ministro Pazuello, feito de ataduras, desconfortavelmente inclinado para fora de uma janela de carro. Sinistro mas efetivo.

Já um outro automóvel passou com um bolus de fezes inflável, daquele tipo espiralado que é ilustrado em emojis.

Sou forçado a admitir que a primeira palavra de ordem nova deste ano eu ouvi do VPR: “Comprou a cloroquina e não comprou vacina!”. Nem é o máximo da poesia insurgente, mas é novo.

Estava agora na esquina da avenida Brigadeiro. A carreata desceu esta avenida em direção ao Ibirapuera, e me postei no meio fio da esquina, ao lado de um homem de camisa amarela e um look de ciclista coxinha: camisa amarela e equipamento caro. Tinha em mente ficar lá para contar os carros e exibir o “Eu avisei”, mas acabei interagindo com o ciclista verdeamarelo ao meu lado. Achei que ele era um pouco mais ousado do que a média, já que claramente chamava Bolsonaro de “miliciano”.

Provocado por minha camiseta, ele me revelou que tinha sim votado no Bolsonaro. Disse que se decidiu pelo voto no atual presidente no evento da facada. Passou a dar mais atenção a ele, e, quando o capitão declarou que “se filho meu for criminoso, eu apoio a condenação”, decidiu o seu voto.

Afirmou que não dava para votar no Haddad. Disse a ele que eu tinha feito o mesmo cálculo no segundo turno, mas que votar em miliciano de extrema-direita não contemplava meus interesses. Ele disse que não sabia que Bolsonaro era miliciano então.

Retorqui que então 200 mil mortos era um preço muito alto para não votar no Haddad.

Perguntei a ele qual fora o momento da virada, quando foi que ele passara a ser contra o presidente. Ele falou que foi em fevereiro de 2019, portanto logo depois da posse. O ciclista já vinha descontente com a “humilhação” com que Bolsonaro vinha castigando seu ministro da justiça. Mas a gota d’água foi uma live do presidente, onde reclamou que a PF tinha agido em seu curral eleitoral, no Rio de Janeiro, prejudicando o esquema miliciano local. Elencou ainda uma série de projetos de Moro que Bolsonaro teria impedido: o juiz de garantias e Lava Toga.

Ele admira o Moro e uma das peças do isolamento de Bolsonaro como traidor foi que ele impediu seu ministro da justiça de trabalhar. Disse ainda que “O PT finge que é contra mas estão todos juntos”. Perguntei como é que Lula e Bolsonaro estão juntos, e ele respondeu que o PT votou contra a investigação dos ministros do STF (a Lava Toga).

Uma moça que passava leu e gostou dos dizeres da minha camiseta e interviu com apoio à minha posição. Mas ela logo desistiu da conversa e saiu fora.

Eu não tive abertura de colocar um de meus argumentos mais caros, que é afirmar que Bolsonaro nunca mentiu: ele fez tudo o que disse que ia fazer, isto é, destruir e espalhar a morte. A demissão de Moro garantiu a esses coxinhas um evento narrativo que apaga a luta de ex-juiz em prol de Bolsonaro, quando impediu Lula de concorrer às eleições, fora as excrescências como o “excludente de ilicitude”. Moro é a garantia da superioridade moral do arbítrio. Bolsonaro falhou porque não operou o que, nas minhas palavras, a Lava Jato fez: quebrar e lei para fazer justiça.

Tentei apontar a corrupção da Lava Jato, apontando que Dallagnol queria criar uma empresa privada para receber recursos dos EUA. O ciclista reagiu dizendo que não era uma empresa privada exatamente, que ela estaria dentro da Procuradoria. Lamentou que ele tivesse caído.

Perguntei do novo emprego de Moro em empresa de consultoria jurídica. O ciclista afirmou que a empresa é famosa por defender o pequeno acionista contra as diretorias de empresa, que são corruptas. Apontei que fundos abutres e especuladores são minoritários em empresas, e que usam consultorias como a de Moro para obter lucro de curto prazo contra a saúde das empresas, mas não surtiu efeito.

Consegui marcar pontos quando disse ao ciclista que o presidente em campanha tinha prometido me matar, e que ele, ciclista, não me protegeu. Ele não defendeu a democracia então. O verdeamarelo não respondeu.

Nos despedimos depois de um pouco, e percebi que, se o “Eu avisei” parte de uma posição de absoluta superioridade moral, ela precisa ser melhor trabalhada para atingir as direitas e liberais que vão recorrer à narrativa da traição. Não vai colar muito com quem já é direitoso e\ou morista.

Nada disso me desanimou, porém, de provocar mais coxinhas nesse domingo nublado.

Desci a Brigadeiro em direção ao Ibirapuera em grande velocidade, levemente frustrado de não ter contado os carros com o rigor que prezo. Cheguei ao Monumento às Bandeiras no momento em que os carros de som chegavam e encerravam a carreata.

O carro do MBL tinha um orador que falava mal dos bolsonaristas, “eta gado bravo, gado que muge!”. O carro do VPR instava seus seguidores a entrarem no site em que monitoram a preferência de voto do impeachment no Congresso.

Segui ao longo da fila de carros que ainda serpenteava pelo bairro e fui checar o acampamento dos ultra-bolsonaristas que tinha visto ontem, habitado por apenas três homens.

E os mesmos homens de 50 anos, os arquetípicos “tiozões do pavê,” estavam no meio fio, desafiando a fila de carros Fora Bolsonaro. O semáforo que dá acesso à avenida Pedro Álvares Cabral fazia com que os automóveis ficassem parados um tempo antes de ganharem a avenida.

Os bolsonaristas brandiam uma pequena faixa de plástico com “Supremo é o povo”. Um outro tinha um megafone e gritava “Petistas, golpistas, não passarão!”.

Fui ficar do lado deles, meio afastado, mas em boa posição para ver como que velhos companheiros de rua – coxinhas e bolsonaristas – agora brigavam. Esperava sublinhar esse ponto com os dizeres da minha camiseta.Um casal muito jovem com seu filho caminhava pela calçada e eles reconheceram um moço de uns 40 anos que gritava muito a partir de seu carro, desafiando os tiozões do pavê. Ele gritava “Gado arrombado!” com muita raiva. Não sabia quem fosse o figura.

Foi divertido ver as brigas e insultos dos antigos amantes, mas ninguém reagiu muito à minha camiseta. Na minha fantasia, muitos baixaram os olhos ao compreender o ponto, mas foi difícil verificar se foi o caso.

Saí fora, já quase 12h, mas passei antes pelo carro do VPR, agora estacionado em uma rua paralela. Gritei às pessoas no carro e de novo exibi a camiseta como fazem os futebolistas, apontando o dedo enquanto gritava “Eu avisei”. As pessoas na rua acharam engraçado e um moço veio concordar, mas não creio que tenha convertido o pessoal do VemPraRua.

Minha avaliação final depois das duas carreatas, uma de direita outra de esquerda, é que há grande poder de mobilização da campanha, a despeito da pequena chance de passar pelo Congresso. A carreata de hoje foi menor do que a de ontem, segundo o companheiro P, que esteve nas duas.

Mas a esquerda precisa saber acolher as diferenças e protagonismo que não domina, isto é, as centrais e partidos precisam abrigar iniciativas locais, pequenas, progressistas mas não-filiadas. Há enorme passivo de resistência e alegria, mas não adianta querer hegemonizar.

A hipocrisia da direita que apoiou Bolsonaro está blindada com a narrativa da moral traída.

Por outro lado, não há alternativa senão a rua. A classe média de esquerda se confinou, mas os porteiros, caixas, empregadas, empilhadores, seguranças, motoristas, entregadores, faxineiras, lojistas e muitos outros trabalhadores são obrigados a ir às ruas e ainda por cima ouvir de quem consegue se isolar, que são fascistas – com direito a insultos foucaultianos. Como no Black Lives Matter e sua insurreição global, ou no Chile, vai ser preciso sair às ruas.

Pedalei pela Vergueiro e fui para casa.

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