O canto do cisne verdeamarelo?

As jornadas bolsonaristas dos dias 9 e 10 de maio 2020 revelam limitações e propiciam novos encontros.

Saí de casa a pé para meu final de semana com Bolsonaro. Isto é, queria acompanhar o ato-carreata bolsonarista de sábado na avenida Paulista e o evento de domingo. Eram 13h45.

A pauta jornalística do momento era tanto o churrasco falso do presidente quanto o assalto ao STF chamado por milicianos bolsonaristas, mais preocupante.

Nenhum dos dois eventos aconteceu, mas duas presenças na avenida Paulista, uma velha e uma nova, fizeram-me pressentir que um ciclo político se encerra.

Cheguei na frente da FIESP e já encontrei uma pouca gente concentrada – uns 10 coxinhas apenas. A carreata estava marcada para sair de lá e não chegar na avenida, como é mais usual. Segui para o MASP, buscando checar o entorno.

Cheguei e logo fiquei apreensivo. Tinha muito homem jovem, na casa dos 20-25 anos, de bobeira no vão do museu. Disfarcei e fui sentar no parapeito atrás do MASP. Observei os caras e fiquei alarmado de ver uns três deles de camisa da CBF, brancos e bojudos. Mas a maioria parecia, na duvidosa sociologia das aparências, mais periféricos e negros. Contei 40 ou 50 pessoas, mas não vi nenhuma identificação, logo ou frase que os localizasse no espectro político. Fiquei perturbado porque estava achando que podia ser um grupo de jovens bolsonaristas claramente preparados para a briga – e que o bolsonarismo estava capilarizando nas periferias, o quer seria um desastre.

Mas rolou que logo se juntaram todos, e vi três moças com eles. Conversaram um pouco e foram estender uma faixa preta com os dizeres “Somos Pela Democracia” e o desenho de um punho cerrado. Respirei aliviado e compreendi que finalmente alguém da esquerda veio às ruas também.

Alguns veículos de esquerda, li depois, deram que este grupo era de “corinthianos” e que tinham impedido fascistas de se manifestar. Não foi bem assim, eles estenderam a faixa no meio da avenida, punhos cerrados e máscaras cirúrgicas, fizeram a foto e se dispersaram.

Mesmo assim, achei de enorme importância o encontro que testemunhei, que foi cuidadoso e prudente. Forças antifascistas estão alertas e dispostas ao embate, ao contrário da esquerda institucional e acadêmica, que acaba por terceirizar a morte ao fazer compras pela internet.

Hoje a PM acompanha as carreatas e atos bolsonaristas, mas apenas 3 semanas atrás teria sido possível varrê-los das ruas com um grupo de resolutos antifas. Hoje seria mais temerário, dada a proteção policial. Fiquei feliz de vê-los, e a esquerda em geral ainda há de agradecê-los.

Os antifas se dispersaram e retornei à FIESP às 14h20, onde tinha apenas uns 30 coxinhas. Um megafone dava voz a dois ou três jovens de 30 anos, muito radicais. Estavam irritados com a inexpressiva presença de militantes e apoiadores. Quem participou do “Fora Temer” até seus últimos estertores, também se fez a pergunta que hoje certamente agoniava estes moços: “a nossa pauta é urgente e justa, por que a sociedade NÃO RESPONDE?!”. Um deles clamava “Vocês vão ficar em casa esperando a morte?”. Quando a liderança culpa a militância, está claro que o movimento tem problemas.

O desânimo era captado pela conversa de dois homens do interior de São Paulo, na casa dos 40, que conversavam junto a mim. “Isso aqui tinha que estar transbordando! O pessoal é foda, quando é a Marcha da Maconha, enche de gente!”. Ri muito.

Um homem de uns 50 anos parou e puxou conversa com os interioranos. “Eu já estou com um pé na cova, mas vai ter neguinho que vai passar a vida escravo da China. Eu sei porque eu eu já trabalhei com eles”.

A primeira impressão do evento foi que seria pequeno, o que se confirmou. Até encheu mais no final, mas estava claro que a sociedade brasileira em São Paulo não está aderindo.

O recorte hoje ainda era, como nas semanas passadas, mais de pequena-burguesia radical do que elite, e o perfil militar geral prevaleceu. O verdeamarelo obrigatório presente, incluindo um pavilhão imperial brasileiro e uma bandeira dos EUA – aos ombros de um moço jovem negro. A pauta era a mesma das últimas semanas: Fora Dória, Fora STF e Globolixo.

O intervencionismo militar aberto tem sido atenuado estrategicamente, e a pauta do impeachment do governador parece ter duas utilidades. Por um lado ilumina o suposto papel do governador no sufocamento da economia, em contraponto ao presidente. E por outro relativiza o conceito de impeachment – quando o impedimento do presidente for pauta, vai ser fácil alegar que “cada um esperneia como quer” e que o impeachment presidencial é só um lance simétrico da oposição, e não uma exceção para salvar o que resta da república.

Um homem da rua passou e gritou para o pessoal do outro lado da avenida: “Vota de novo nele, otário!”.

Vi passar a “Rota Veteranos” em sua veraneio preta, restaurada como era nos anos 1970 e 1980. Foram muito aplaudidos, eles com seus uniformes e boinas.

O carro de som só chegou às 15h30, e saiu irradiando canções da campanha de 2018. A primeira foi uma no estilo rap, “mito, acredito em seu compromisso” e “bateu de frente com a mentira comunista”. Já havia notado que esta série de jingles de campanha, que inclui um reggae quase competente, tem dois cantores cujas vozes têm sotaque hispânico, que me fez recordar de dois brasileiros adotivos, os argentinos Tio Sam e Walter Mercado (“Ligue Já!”).

Fui contar os carros e cheguei a 120 automóveis, 25 motocicletas, e, no pico, umas 250 pessoas aglomeradas ao redor do carro de som. Vi o Paulo Kogos, de novo com moleton de templário, espada de plástico, boné, óculos escuros e um cartaz na mão: “Se mexa, brasileiro, o STF é comunista!”.

O efetivo policial parecia ser o mesmo das semanas passadas: uns 100 soldados, mais umas 40 motocicletas, e o BOPE.

A certa altura, o orador no carro de som anunciou o “enterro político do governador Dória!”. Esta foi a senha para que quatro jovens de luva branca aparecessem carregando um caixão, ao som da infame melodia “Astronomia”, que é aquela do meme do funeral africano de Gana. O povo vibrou muito, e os jovens chegaram dançando e fazendo uma coreografia à maneira dos africanos no famoso vídeo. O povo filmava tudo ao celular, e notei que o caixão ERA DE VERDADE. A madeira era muito barata, um tipo de compensado, mas as alças e a tampa não eram cenográficas. Arrepiei.

Chamar a macabra dancinha de “enterro do Dória” é uma maneira de amenizar a grosseria de fazer troça das mortes pelo covid-19, mas o mórbido da cena era indisfarçável, uma rave de celebração da morte. Notei que uma das jovens que carregava o caixão era negra. Ela depois falou ao microfone em cima do carro, e ela foi identificada como a pessoa que arrancou o microfone de uma repórter da Globo ao vivo.

Aliás, muitos usavam máscara, mas vários oradores falaram ao mesmo microfone sem proteção, aproximando muito o aparato sonoro da boca…

O “enterro” acabou com uma canção de Tim Maia, “Não quero dinheiro”. Um orador explicou que essa canção foi escolhida por Dória como tema de sua celebração da vitória na eleição de 2018, e por isso a tocavam, para marcar o “início de sua queda”.

Vi faixas “#Globolixo. Bolsonaro tem razão”, “Ajude-nos a libertar o Brasil do mal chamado STF e a esquerda”, e uma grande de plástico com retratos e nomes e dados de contato de vários deputados da ALESP.

Ouvi muito “Fora Dória”, mas também “Dória, comunista, não gosta de polícia”, “Ova, ova, ova, já cavei a tua cova!”, além da tradicional “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Falavam muito em voltar a trabalhar, que eram o povo e que eram os trabalhadores. Um orador disse que a queda na arrecadação estadual decorrente da diminuição da atividade econômica ia “afetar os policiais, que não vão ter os salários pagos”. Ele e vários outros oradores pediram “palmas para a PM”, e um deles disse “O presidente está com vocês!”.

Um dos motes principais do encontro era a “ditadura” operada por Dória e pelas medidas sanitárias dos governadores. Alguns oradores articularam isso como “vigilância” e “supressão de liberdades”. O exemplo do estado do Pará foi singularizado como um exemplo da implantação paulatina do comunismo. Essa pauta da vigilância e aumento do poder estatal é mesmo delicada, mas seu uso pela extrema direita é oportunista e hipócrita.

Muitas evidentes contradições pipocavam nas falas. Uns diziam que não há mortos e clamavam por ver os cadáveres. Mas outros em seguida afirmavam que a supressão do uso da cloroquina estava causando inúmeras mortes. Não creio que algum fato da realidade vá derrubar Bolsonaro, mas essa aposta bolsonarista de se esquivar da responsabilidade dos óbitos que causa é de uma monstruosidade que um dia tem que ser apreciada. Tomara que todo o ódio que eles manipulam volte-se contra eles com muita força.

O ambiente de rave macabra se intensificou em vibração de arrebatamento e entrega. Tocaram de novo a melodia “Astronomia”, mas desta vez uma versão meio funk-rap onde vozes femininas e masculinas se alternavam em enunciar “Bolsonaro tem razão” e “Globolixo”.

Eram 17h15 quando cansei daquela barragem sonora. A estratégia bolsonarista parece estar reduzida a isso mesmo: gerar um excesso de ruído, de vibração informacional meio aleatória, para cancelar a possibilidade de entendimento e discussão informada.

É difícil apontar um ponto exato onde a curva inverte e a escolha escabrosa do regime atual se volta contra ele mesmo, mas me caiu a ficha da fragilidade do bolsonarismo hoje, pelo menos em termos de apoio social, quando o orador chamou não novo ato ou ocupação das ruas ou mesmo ação direta radical. Apenas afirmou que, “a partir de segunda-feira, não vamos usar máscara nas ruas, quem não for do grupo de risco”. Só isso.

De fato, no dia seguinte, o domingo 10 de maio, percorri de bicicleta a avenida Paulista e o bairro do Ibirapuera. Os acampamentos anti-Dória e o intervencionista militar restavam lá, mas desertos, tristes e abandonados. Não teve carreata, não teve ato, não teve verdeamarelo nas ruas. Depois, contei 8 coxinhas na FIESP, de noite. O vazio político em São Paulo é evidente, e, contrastado com os antifas que vi sábado na avenida, resta claro que há espaço a disputar.

Caminhei em direção ao Paraíso e fui para casa.

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