Ato Bolsonarista na FIESP contra Dória

No domingo 12 de abril de 2020, mais uma agitação bolsonarista contra a quarentena. O alcance ainda é restrito, mas a rua começa a responder às narrativas extremistas.

Saí de casa às 13h30 em busca do ato pelo impeachment de Dória. Ontem teve uma carreata bolsonarista que percorreu as ruas de São Paulo.

Tem algo de fantásmico nessas aglomerações da extrema-direita. Está difícil saber delas de antemão, pois elas parecem ser organizadas por whatsapp e já não conheço mais quem frequente tais ambientes.

Eu já tinha ido à uma manifestação deles no dia 5 de abril, na Assembleia Legislativa no Ibirapuera. Nesse dia achei que faltava direção e motivação. A estratégia narrativa bolsonarista é boa: jogar no colo dos governadores todos os sofrimentos gerados pela crise sanitária e econômica. Mas, apesar de aguerrido, o movimento precisa furar a bolha das bases fanáticas e atingir o precariado e os desesperados.

A minha relativa tranquilidade acerca das limitações daquele grupo de coxinhas ficou abalada quando vi, nas redes, imagens da carreata de ontem – e também as imagens do presidente se comunicando ao vivo com suas bases, na rua, através do celular. É muito difícil aferir o tamanho das carreatas a partir dos vídeos postados, e menos ainda a partir das hipérboles do discurso gravado por manifestantes, mas o que chamou-me muito a atenção foi a presença de caminhões e de numerosas motos junto aos automóveis – sugerindo capilarização e expansão da base social de apoio.

Uns dez anos atrás escrevi uns contos cujo pano de fundo era o colapso do trânsito em São Paulo: o excesso de veículos fazia finalmente com que todos os engarrafamentos se tornassem um só, sem começo nem fim, e as pessoas simplesmente deixavam seus carros onde estavam e iam embora a pé. Nesse cenário, os motoboys (como os chamávamos na época) dominaram a situação, já que logravam a locomoção na cidade paralisada. Mas tinha a questão do combustível, então imaginei que a aliança petroleiros-motoboys seria a vanguarda da transformação social.

Hoje a politização dos entregadores, ciclistas e motociclistas, está em jogo também. Há inúmeros aspectos positivos da quarentena e dos horizontes da imaginação política abertas pela crise sanitária e econômica. Mas a quarentena pode estar cavando uma cova profunda para as esquerdas, onde o fascismo consegue sempre se reposicionar, não importa como a realidade se comporte. Não vai haver fato ou evento que desmascare Bolsonaro, nem mesmo os corpos nas ruas e nas filas. A culpa sempre vai ser de alguém outro, e não estar nas ruas agrava uma contradição gritante que só é visível de fora: não existe a possibilidade de quarentena horizontal no Brasil.

No caminho até a FIESP, notei que o trânsito estava mais ou menos intenso, mas os pedestres eram os mesmos de outras saídas: muitos sem-teto e carroceiros, garis, trabalhadores terceirizados, pedintes e gente passeando. Notei que as bancas estavam abertas.

Um jovem, com um cachorro nos braços, veio me oferecer “Quer comprar um verdinho? Bom e barato!”. Não soube dizer se me vendia drogas, dólares ou mesmo o cão que trazia nos braços. Não fiquei para saber.

Nada vi na Federação das Indústrias e segui até o MASP. De longe vi um pequeno grupo de gente de verdeamarelo, e fui ver.

Eram apenas uns 10, e estavam bem quietos. Mais poderoso era ver umas 50 cruzes brancas de pé, mais ou menos até a altura dos joelhos, alinhadas na calçada do museu. Fui ver e cada cruz trazia um retrato de um servidor público que morreu por causa do covid-19. As idades variavam muito, tinha enfermeira, médica, uma PM e outros.

Não vi ninguém tomando conta do arranjo, e chequei as três faixas que estavam estendidas ao lado: “Salvem a enfermagem (a escrita estava desfocada). Embaçado mesmo é saber que a enfermagem está morrendo por falta de equipamento de proteção individual”.

“Queremos viver para salvar. EPI já! É sério! É urgente! É pra ontem!”

“Domingo o ato será silencioso porque o descaso é gritante! Caso esteja na av. Paulista, deixe uma flor em homenagem em memória das vítimas do covid-19 no vão do MASP. #Fiqueemcasa. #FaltadeEPImata. Campanha em defesa dos trababalhadores(as) essenciais”

Vi que a iniciativa era do Movimento dos Ativistas de Enfermagem Brasil e ANATEN. Mais vários sindicatos apoiavam.

Achei incrível a potência da mensagem e do formato. As pessoas vinham e liam os textos relatando as histórias. Achei que a mensagem totalmente derrotava o discurso bolsonarista em todas as suas modalidades. Era um testemunho humano, tocante e pela vida. Irrefutável.

Alguns coxinhas vieram olhar as cruzes e até registraram em foto. Acabou que eles saíram fora e foram para a FIESP.

Caminhei até a Consolação para ver o resto da avenida.

Parei para contar o número de entregadores que passavam. Contei 10 em um minuto, nos dois sentidos. Calculei que em uma hora seriam 600 viagens realizadas, e, presumindo que há ida e volta, chega-se à grandeza de 300 entregas por hora na região da Paulista.

Fiquei muito atento à reação deles à manifestação bolsonarista, e foi no geral efusiva. Essa meninada é altamente precária, nativa da internet, enfrenta a morte todos os dias e eles veem que quem se confina é quem pode. O (falso e hipócrita) discurso bolsonarista de defesa de quem trabalha tira proveito de uma contradição fundamental: a quarentena terceiriza a morte para quem não tem escolha. Para a esquerda, está claro que quem causa o sofrimento é o governo federal, ao não propiciar a sustentação digna da vida, seja pela taxação do mercado financeiro, seja pela impressão de dinheiro, seja pela renda mínima, seja pela distribuição justa dos sacrifícios. A aposta suicida e necrófila de Bolsonaro é provocar o sofrimento e canalizar a revolta resultante.

Mas jogar a culpa do mau atendimento do SUS à população no Dória tem certo gênio: o sucateamento e privatização foram de fato políticas tucanas. O Gabinete do Ódio e suas ramificações estão jogando muito pesado, muito material que busca ativar a revolta popular, inclusive numa guinada evangélica que é de arrepiar. A cloroquina não precisa ser verdade, basta ser uma esperança para que parentes desesperados exijam dos médicos exauridos a aplicação do remédio que nem está disponível nos hospitais. Mas basta para que a culpa seja do sistema viciado.

Está pegando entre os entregadores. Eles são em sua maioria jovens e negros, e estamos mandando-os para a morte. Eles sabem. Se o bolsonarismo conseguir capturar o precariado em geral, teremos na mão um levante popular só que liderado pela extrema-direita.

Já anotei como eles, nesta mesma avenida, celebraram um matrimônio com a morte.

Ao caminhar pela avenida, vi muitos cartazes que traziam o rosto do diretor da Organização Mundial da Saúde e as palavras TESTE, TESTE, TESTE.

Eram 14h30 quando busquei a FIESP e vi que tinha umas 100 pessoas lá, muito animadas. Contei 40 bandeiras brasileiras, desfraldadas em mastros ou sobre os ombros. Não havia carro de som nem microfone. Achei que eram bem as mesmas pessoas que vi na ALESP na semana passada. Homens e mulheres ao redor dos 50 anos de idade, mais jovens de 30, o clássico perfil coxinha.

Não é correto dizer que são a elite. Na ALESP, até vi uma mulher que era claramente de elite, mais Oscar Freire do que rua São Carlos do Pinhal. Ela não ficou muito. Mas este extrema-direita era um pouco mais tosca, nos termos da sociologia da aparência que pratico aqui.

A avenida Paulista está na crista da cadeia montanhosa cuja encosta abriga a elite, tipicamente nos Jardins e Ibirapuera, até a avenida Faria Lima e margens do rio Pinheiros. Mas os coxinhas que tento descrever vivem no entorno da Paulista mas não na encosta dourada necessariamente: pequenos rentistas, viúvas, militares e policiais aposentados, pequenos proprietários, talvez endividados, enfim, a pequena burguesia. Qualquer variação do dólar ou do regime fiscal os ameaça material e existencialmente.

Eram eles que julguei estar lá na rua hoje.

Ocupavam dois lados da avenida, ao redor da faixa de pedestre.

As faixas todas traziam mensagens contra o governador: “Fora Dória”, “Fora Ditadória” e “Impeachment do Dória”.

As palavras de ordem eram as esperadas, e o hoje popular “vai tomar no cu”, frequentemente abreviado nas redes como VTNC, achou os alvos João Dória, o prefeito Covas, a China e, surpreendentemente, a Dilma. Acho difícil pensar em alguém mais irrelevante hoje em dia do que a ex-presidenta.

“Quero trabalhar” figurou também assim como “Imposto é roubo!”.

Uma outra faixona trazia “Fora políticos. Nossa pátria vamos honrar. O exército brasileiro vai ocupar seu lugar. Polícia Federal, orgulho nacional”.

Muito entregador passava festejando, e uma quantidade razoável de carros passavam buzinando.

Fiquei do lado oposto da avenida, longe da muvuca mas atento ao movimento. A PM apenas observava, uns 7 policiais mais duas viaturas e quatro motocicletas.

Se Dória realmente mandar a PM reprimir aglomerações e forçar um toque de recolher, quero ver como a polícia vai reagir. Vai ser louco também a esquerda confinada ser protegida pela PM do governador.

Um morador da rua passou dizendo “Precisa bom senso! Só tem empresário reclamando. Fora Bolsonaro! Quanta gente burra!”.

Um manifestante perto de mim filmava a si próprio gritando muito alto: “Sou brasileiro, não sou chinês. Dória lixo! Dejeto!”.

Muitas vezes gritaram “Dória é comunista!”.

Dois ciclistas passavam pela ciclovia na ilha central e pararam para discutir. Ficaram uma meia hora, e no final se despediram com cordialidade.

Uma menina negra de uns 10 anos veio me perguntar o que eu estava escrevendo e contei que acompanhava manifestações, todas elas, de qualquer lado. Ela falou “Dizem que o Lula roubou os pobres mas não é verdade”. Ela perguntou em quem eu votava e eu respondi. Ela tinha excelente percepção da tensão social entre ricos e pobres, mas baixei as expectativas quando ela disse “Dória quer que a gente fique em casa, mas ele tem o armário cheio. Ele quer fechar as empresas de comida”. Não retorqui. Ela contou ainda que “moro longe, mas passo um tempo por aqui”. Entendi que ela mora na rua.

O coro “Viva a PM” ressoou várias vezes. No geral, as muitas viaturas que passaram pela manifestação não reagiam aos festejos da galera, até onde vi. Mas uma mulher ciclista veio reclamar com os quatro motociclistas da PM que estavam na minha calçada, do outro lado da avenida. Ela protestava contra a ocupação da ciclovia pelos manifestantes. Ela falou um montão, mas nenhum deles esboçou qualquer reação, num misto de arrogância e indiferença. Mas quando ela saiu fora, zombaram dela entre eles.

Apareceu uma bandeira de Israel e um pavilhão do Brasil imperial – e depois uma dos EUA.

A imagem do dia ficou com o momento quando uma ambulância (uma de muitas) passou de sirene ligada. Coxinha gritando, entregador passando e festejando, a PM parada observando.

A energia desse povo foi ficando louca, muita ira santa. Notei que hoje havia mais jovens, e também um pessoal muito fascista: bojudos, carecas, camiseta preta.

De fato, ouvi o povo gritar o que eu acho que era: “Uh, camisa verde!”. Achei mais integralista do que palestrino.

Amarraram um boneco do Dória no totem preto da avenida. Chegou um som com microfone e começaram a recolher assinaturas para o impeachment do governador. Ouvi também que iam voltar ao mesmo lugar amanhã, terça, a partir das 14h.

Um coxinha trazia um cartaz impresso: “Se mexe, brasileiro, o STF é comunista”.

Eram mais de 16h e cansei de ficar lá, já meio deprimido. A carreata cuja chegada eu suspeitava não veio e estava claro que não viriam mais pessoas do que aquelas 200.

Se eu fosse um militante bolsonarista lá, teria saído energizado. A quarentena está sendo sabotada, a rua está começando a responder, a oposição está confinada, e o próprio presidente está junto. A narrativa governista parece estar pegando, e o momento dos corpos nas ruas, que a oposição esperava canalizar em seu favor, pode detonar um levante popular.

A esquerda está mandando a juventude negra aos campos da morte, onde o presidente caminha gigante, desafiando a morte em sua defesa. Ela está sendo vista como conivente e beneficiária do esmagamento do trabalhador, numa inversão perversa de causa e efeito. Mas ela não está dialogando com este segmento, em geral.

Talvez seja a cisão trabalho remoto-trabalho presencial não esteja madura como está no mundo hegemônico. Acho que corremos perigo, essa aposta louca de instrumentalizar a morte pode funcionar…

Saí fora e caminhei em direção ao Paraíso.

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