Ato e carreata bolsonaristas em São Paulo

No dia 3 de maio de 2020, carreata contra a quarentena e contra as instituições. Em dia de clima golpista, o cordão da morte dança seu baile na avenida.

Saí às 14h de casa para ir checar a movimentação bolsonarista na avenida Paulista. Não tinha visto chamada específica, mas eles têm feito carreatas nos finais de semana sempre no mesmo horário. Além disso, tinha visto que de manhã teve uma carreata expressiva em Brasília, de que o presidente participou, e certamente haveria algo em São Paulo também.

Tinha também checado a carreata do 1o de Maio, que foi mais ou menos idêntica à de hoje, mas com menos veículos (então contei 70 veículos).

Por um lado, os números de manifestantes têm se mantido relativamente pequenos, mas como eles estão agindo no vácuo da quarentena e nas brechas institucionais, na beira do golpismo aberto, noto que eles estão crescendo – e isso a despeito do baque da virada de Moro.

Chegando à esquina com a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, vi que já dobravam à esquerda para ganhar a avenida Paulista. peguei a carreata que tinha subido a avenida a partir do Ibirapuera, região da cidade que abriga, além de várias instalações militares, a Assembleia Legislativa de São Paulo. Compas entregadores contam que o acampamento intervencionista militar ainda está lá. Recentemente foi aberto um hospital de campanha para as vítimas do covid-19 no bairro, e que é comum que manifestantes bolsonaristas se aglomerem na porta do local para buzinar e gritar contra o governador, duvidando que existam os óbitos divulgados pelo governo.

A carreata se instalou em frente à FIESP, dos dois lados da avenida. Muito carrão, alguns carros antigos reformados, um caminhão de mudanças. Não tinha carro de som. Contei nessa chegada uns 350 carros, que achei bastante, além de uma 50 motocicletas.

A PM estava presente, acho que com o mesmo contingente de sexta-feira, uns 100 soldados, 7 viaturas e umas 40 motocicletas. Mas notei que o BAEP, a antiga “Tropa do Braço”, estava lá, de rosto escondido. Um trio de PMs filmava em vídeo a manifestação. A polícia estava à vontade e tolerante com o povo. Mas, ontem, na frente da casa do ministro do STF Alexande de Moraes, dois manifestantes foram presos.

Aos poucos o pessoal se aglomerou no canteiro central na frente da Federação. Vi uns poucos cartazes feitos às mão. Muitos tinham aquela letra característica de supermercado, feita com canetão na cartolina colorida. Um cartaz até fora feito no verso de um aviso comercial: “Queijo frescal Palma – 700g”. Atrás, sobre a cor amarela, “Nós apoiamos Bolsonaro”.

A pauta era fora Dória, Fora Maia, Fora STF, Globolixo e Fechado com Bolsonaro – e algum Moro Traidor. Reconheci várias faces dentre os manifestantes, é o mesmo pessoal da sexta-feira e das semanas passadas: a base bolsonarista, sem lavajatistas. Senhorinhas e senhorzinhos coxinhas de 50-70, homens de 30, alguns jovens, homens com jeitão de militar, policial ou ex-soldado.

As buzinas reinavam estridentes, e não houve discurso até a chegada de uma picape com caixas de som e microfone. Fiquei ao lado e escutei o hino nacional várias vezes, e também a canção “Eu te amo meu Brasil”, de que essa galera gosta muito. Ela infalivelmente provoca o que mais me constrange de ver em manifestação coxinha: os tiozões e tiazinhas fazendo canhestras dancinhas na calçada, ao som das “mulatas cheia de calor”.

Além disso, ouvi uma canção sertaneja que não conhecia:

“O Coronavírus agora é culpado por todas as pessoas que morrem no Brasil!

Se morreu de Fome, foi o Coronavírus. Se morreu de Sede, foi o Coronavírus. Se morreu de Cirrose, foi o Coronavírus. Se morreu de Velhice, foi o Coronavírus. Caiu de bicicleta, foi o Coronavírus. Caiu lá da escada, foi o Coronavírus.

Todos os que morreram e os que ainda vão morrer, A ESQUERDA VAI DIZER, foi o Coronavírus”.

Ao fundo estava a sede da CNN, onde uma tela grande mostrava um locutor de notícias com uma barra de texto embaixo: “Bolsonaro: ‘nomearei o chefe da PF amanhã’”.

Tenho notado, quando caminho pela avenida, que os sem-teto que se espalham nas calçadas, quando se manifestam, quase sempre gritam contra Bolsonaro. Os entregadores que passam ou que ficam parados na calçada, quando se manifestam, são quase sempre a favor do presidente.

A população de rua é uma poderosa antena para as vibrações afetivas da política. Toda vez que tem manifestação de esquerda, especialmente aquelas onde não há carro de som dominante, muitos moradores da rua chegam junto e falam alto ou gritam, muitas vezes no meio dos jograis.

Alguns desses homens e mulheres apenas recitam suas pirações interiores, mas outros engajam com a pauta do momento. Uns tem raiva, outros não.

Só que essas carreatas bolsonaristas operam isso de outro jeito: vi muita gente mesmo filmando a si mesmas em lives no asfalto. Mas as falas são muito exaltadas, estilo pastor alucinado, caminhando e se dirigindo a um ouvinte ausente, berrando com incandescente ira santa. É muito louco

Um casal de jovens de classe média passou vendendo máscaras cirúrgicas. Um carro no sinal discutia aos brados com uma velha Chevrolet vermelha, que era bolsonarista. Um vendedor de bandeiras do Brasil pendurou seus panos no fio que esticou no canteiro central, de poste a poste.

Vi uma bandeira do Brasil imperial. Vi um cartaz escrito a estêncil, que não consegui entender: “Peço o auxílio. Sai de casa senão vai ficar sem”.

Eram 15h e tinha dado uma enchida. Umas 600 pessoa se aglomeravam no local. A PM veio para garantir uma faixa ao fluxo de carros.

Reparei no cartaz “STF conspira. STF escritório do crime. #nãovotenoDEM”, e na camiseta “Mulheres com Bolsonaro”, que vestia uma senhora.

A certa altura, depois de canções como o reggae da campanha de 2018, o locutor falou: “Gente, vamos escutar a voz do patriota mais jovem aqui, o Andrézinho. Andrézinho, quantos anos você tem?”. “Seis”, respondeu o guri, de boné na cabeça. “E o que você quer falar para o povo brasileiro?” O menino gritou “Fora Dória!” muitas vezes, para o aplauso dos manifestantes. Reforçou a minha opinião de que todo filho é um prisioneiro político.

Andrézinho era negro.

A coisa ficou ainda mais canhestra quando em seguida a pickup começou a irradiar a música que anima o meme do funeral em Gana, tão famoso hoje em dia. Trata-se da música “Astronomia”, e de fato é estupidamente dançante. Só que na conjuntura atual, a associação da melodia às milhares de mortes desnecessárias e criminosamente induzidas pelo presidente jogou macabra sombra sobre o ato.

De repente, apareceu um caixão de papelão preto com o adesivo “#ForaDoria”, e quatro homens saíram dançando com ele na mão, atravessando a faixa de pedestre sob o aplauso dos manifestantes. Andrézinho também dançava em cima da pickup.

Olhei a cena e reconheci um gringo de rabo de cavalo que vejo bastante em manifestação de extrema-direita. Vestia uma bermuda, óculos escuro e é muito magro. Agitava uma bandeira do Brasil acima da cabeça, em competente coreografia solo ao estilo “house”.

Ficou essa a imagem do dia: um brasileiro adotivo dançando ao som eletrônico do funeral bolsonarista do Brasil, cercado de idólatras do genocida-em-chefe.

Eram 15h45 quando duas garis da limpeza municipal chegaram e pararam no meio do povo, mais afastadas um pouco, onde eu estava. Não demonstravam muita emoção. Mas um dos líderes veio falar com elas, apertou a mão, sorriu e pôs a mão no ombro. Outros dois homens vieram falar, mas conversaram só com a moça que era jovem e era bonita.

As buzinas não paravam nunca, e o povo gritou “Eu vim de graça”, e ouvi um figura gritar muito contra Janaína Paschoal.

Um senhor magro de terno e boina pretos segurava um cartaz: “Denunciamos a esquerda (tem nuances de socialismo, comunismo, nazismo e fascismo). Psicopatia da ideologia dos esquerdopatas”. Pelo teor da mensagem e pelo visual, achei que era ultra-católico.

Atravessei a avenida e vi um grupo de 12 jovens (15-20 anos) católicos passar. Carregavam um quadro de Nossa Senhora Aparecida ao alto, seguravam rosários e rezavam uma ave maria em voz alta, tudo isso num visual de subjugação e dor de sacrifício muito particular da igreja romana.

Ao lado, um figura segurava um cartaz que na verdade era uma camisa azul onde se lia, escrito em branco, “Só Jesus salvará pelo seu sangue”.

Ao microfone, um homem negro falava contra o STF. Disse que tinha ido até Brasília e tentado entrar no Supremo Tribunal Federal, mas que “eles têm reconhecimento facial e eu fui barrado”. “Estamos juntos com o capitão”, concluiu.

Outros oradores falaram mais contra Dória e contra o comunismo.

Já eram 16h30 e cansei de tanta reiteração e buzina.

Caminhava de volta pela avenida quando ouvi uma mulher negra e maltratada, puída e de olhar desesperado gritando muito alto, encostada ao poste: “Abram o comércio! Joga bola Corinthians!”.

Tentei avaliar o que eu vira na avenida. O ato não foi super grande, mas estão crescendo há semanas. A saída de Moro não foi fatal para este campo. A sensação que tinha era que, em consonância com a torrente de contrainformação gerada pelo bolsonarismo, há resposta para tudo na narrativa de extrema-direita. Eles contemplam a dor gerada pela depressão econômica, mas culpam as medidas sanitárias. Eles contemplam as reclamações do mal atendimento e do caos na saúde, mas culpam os governadores. Para todos os tópicos há narrativa.

Nenhum fato da realidade vai derrubar Bolsonaro. Não vai ser o número de mortos, nem acho que nada do que Moro possa revelar vai ser decisivo. Tudo vai ser digerido e devolvido pelo Gabinete do Ódio. Tudo parece depender do STF formular queixa-crime e a partir daí fazer mover as rodas institucionais.

Mas, se os coxinhas de carreata em si não oferecem perigo, eles estão na rua e a oposição não está. Quem viria às avenidas protestar contra um fechamento do Congresso? Ademais, cada vez mais acho que o ex-ministro Sérgio Moro vai murchar depois da delação, que ele em si não vai derrubar ninguém (o processo judicial resultante sim) e não é candidato forte à presidência. Ele não é a superação de Lula, é o inimigo que morreu agarrado a sua nêmesis, o metalúrgico.

Curiosamente, a superação dialética do Lulismo é o próprio Bolsonaro. Paulo Arantes recentemente disse que o presidente reinventou o lulismo na figura da ajuda emergencial de R$600, nas suas alianças políticas no Congresso e ainda na derrota do lavajatismo da classe média.

Vai ser difícil derrubá-lo, menos ainda através das forças que buscam a restauração do antigo normal.

Caminhei mais e cheguei em casa.

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