Ato Bolsonarista Contra a Quarentena

5 de abril 2020. Bolsonaro tenta trazer corpos às ruas contra o governador Dória e contra a quarentena. O dia foi pleno de contradições.

Estava decidido a acompanhar uma das fantásmicas carreatas bolsonaristas que aparecem muito nas redes e um pouco na imprensa. Queria aferir a sua real extensão e potência na rua, difícil de fazer pelo vídeo. O presidente tinha chamado a população para um “Dia de Jejum” e também para sair às ruas em desobediência à quarentena que está posta pelo governo de São Paulo e por quase todos os estados do Brasil. Bolsonaro está se isolando e há reposicionamentos na direita e militares, o que fazia de hoje um teste importante para a capacidade de mobilização do presidente e de suas alas ideológica e digital. O resultado foram dois atos cheios de contradições.

A pauta de “volta ao trabalho” e fim da quarentena tem sido muito vocalizadas pelo campo bolsonarista, por vezes na voz de empresários vampiros, como o Véio da Havan e outros. Essa formulação acho potente, porque consegue falsamente opor economia x saúde, sugerindo que em certo número de mortes é aceitável e que gente (pobre ou trabalhadora) vai ter que se sacrificar pelo bem do Brasil. Muitas indústrias e áreas da economia simplesmente foram varridas pela quarentena, e a precariedade do trabalhador informal e a insegurança do trabalho em geral está muito nítida.

A aposta de Bolsonaro parece ser canalizar esse desespero antes que o colapso da saúde pública ocorra.

Saí de manhã com a bicicleta pela avenida Paulista, em busca de algum indício de atividade coxinha. Tinha achado uma única chamada para um ato na Assembleia Legislativa de São Paulo às 14h, mas achei que poderia ter alguma carreata antes.

Encontrei a Paulista ensolarada e relativamente ativa: gente passeando, correndo, os muitos entregadores já trabalhando, policiais e outros. Acho que o presidente está conseguindo sabotar lentamente a quarentena.

No MASP vi uns 40 trabalhadores da prefeitura sentados, aguardando suas jornadas dominicais. Perguntei ao motorista de uma van qual era a operação e ele me disse que estavam fiscalizando e, se necessário, apreendendo, o comércio ilegal. Disse que a equipe atua pela cidade toda. Contei que tinha visto o tenso fechamento da Galeria Pagé semanas atrás e ele disse que ninguém está contente, “desde o marreteiro até o Armarinho Fernando, que tem mil funcionários”. Contou que, a despeito das portas fechadas por causa da proibição estrita ao comércio, os fiscais tem detectado intenso tráfego na área, indicando que há atividade clandestina.

Ele contou que mora na Zona Norte e que “na periferia o povo está todo na rua, pois não tem o que fazer e a televisão dá desânimo. A Globo só mostra desgraça e dá a impressão que só de por o pé na calçada você vai morrer”. Ele não citou Bolsonaro nenhuma vez. Achei que ele entendia que a situação é mais complexa.

Perguntei se ele achava que ia ter saques e caos e ele disse que sim, mas também que “tem muita polícia na rua agora”. De fato, faz dias que é notável a presença ostensiva de policiais, tanto no centro como na região da Paulista.

Eram 11h quando desci a avenida Consolação e peguei a rua Major Sertório à esquerda. Vi que no Matilha Cultural, três jovens de máscara distribuíam alimentos preparados à gente que vinha pegar.

Mas adiante, na esquina da General Jardim, 5 travestis faziam ponto. Muito morador na rua, muitos comprando coisas nos mercados abertos.

Um rolê que incluiu a avenida Duque de Caxias, Cracolândia, Luz e a Praça da Sé revelou o que já tinha visto em dias anteriores: a população de rua acampadas aos montes pelas ruas e praças, muita polícia, ônibus circulando vazios – e muitos ciclistas.

Na Praça João Mendes, além desses grupos, vi 5 prostitutas de pé na calçada, jovens e tristes.

Subi e desci a avenida 23 de Maio para alcançar o Parque do Ibirapuera, ao lado do qual fica a ALESP.

O parque mesmo está fechado, mas muita gente veio correr ou passear nos gramados do lado de fora das grades. Nenhum sinal de atividade política, ninguém de verdeamarelo ou bandeira do Brasil.

Ainda peguei a avenida Brasil até Pinheiros e o Largo da Batata, mas nenhum sinal de carreata. Nenhum carro com adesivo, nenhuma daquela eletricidade que a campanha presidencial de 2018 apresentava, mesmo nos bairros ricos.

Isso contrastava com as redes. A atividade bolsonarista no twitter era bem intensa, ainda que claramente impulsionada pelos discursos repetidos e concertados dos robôs: ataques ao ministro Mendetta, contra fundo partidário, um vídeo de Bolsonaro em culto religioso com Malafaia e Edir Macedo, notícias da delação de Sérgio Cabral envolvendo a Globo… mas nada no Facebook, e nada nas páginas mais oficiais. Parecia que a atividade acontecia no whatsapp, onde eu não entrei.

Mas quem consulta apenas as redes, dá a impressão que há vigorosa oposição à quarentena.

Afinal voltei ao Parque, às 13h45 e vi pessoas vestidas com as cores nacionais se aglomerando pouco a pouco na esquina em frente a ALESP, e logo achei a manifestação, que era na entrada de trás.

Vi umas 150 pessoas em frente a rampa de acesso ao prédio, sem carro de som.

O visual era o esperado: muito verde e amarelo, homens e mulheres de uns 50-60 anos, mais homens de uns 30. O clássico perfil coxinha. Logo vi cartazes como “#foradoria #boratrabalhar”, “Bolsodoria traidor”, “Quarentena vertical. Volta ao trabalho”. Muitas camisetas com o nome ou rosto de Bolsonaro, além de outra do “Ação Conservadora”. As palavras eram as de ordem as de sempre: “A nossa bandeira jamais será vermelha”, “Fora Dória”, “Viva a PM”. Alguém trouxe uma caixa e muitas canções militares e hinos patriótico foram tocados.

Mas aí eu ouvi alguém dizendo ao megafone, com afetada voz afeminada, “gente, vai para casa, tem quarentena”. O povo respondia com gritos a apupos, e também com “Êêêê, tem viado querendo aparecer!”. Achei estranhíssimo eu fui olhar.

Vi um figura de camisa social branca e um cachecol rosa, e seu cabelo estava penteado para trás com gel. Uma mulher veio com uma bandeira do Brasil para cima dele e o homem saiu fora, dizendo “ai não, essa bandeira me dá alergia!”. Além disso, o povo gritava “Cadê o Frota? Tá debaixo da tua cama!”, sugerindo relação sexual entre os dois. De primeira, achei que tratava-se de uma pessoa de extrema coragem que tinha vindo ali esclarecer os manifestantes do perigo que corriam.

Mas logo caiu a ficha que o homem encarnava uma caricatura do governador João Dória. De fato, todas as suas falas buscavam figurar o cidadão privilegiado e indiferente ao sofrimento do “Brasil que trabalha”.

Mas, apesar de sua atuação, era indisfarçável que o ato era pequeno e que a motivação era baixa. Tinha deixado a última manifestação Bolsonarista na avenida Paulista, em 15 de março, com a sensação de que a base estava motivada e que tinham decidido abraçar a morte e a insurreição. Mas o encontro que eu testemunhava hoje contava outra história, e as contradições falavam alto sobre os impactos inesperados da pandemia sobre a política brasileira.

Vi várias pessoas de máscara, pelo menos 5, incluindo um casal idoso. Ouvi uma outra moça, de máscara de pano ao pescoço, conversando animadamente numa roda, afirmar que o coronavírus era mentira.

As conversas em geral eram sobre conspirações contra o presidente, envolvendo a Globo, a China. Curiosamente, ouvi pouco sobre a presente atuação dos militares no Planalto, que só estavam presentes ali na forma de melodias marciais.

Passou um carro marcado com o logo da CNN, que foi intensamente vaiado.

Vi uma faixa “4o Princípio da República: direito ao trabalho”.

A certa altura, um orador ao microfone pediu que “todo mundo fica aqui junto para cantar o hino nacional”. As pessoas se aglomeraram e entoaram o hino, e achei a imagem incrível: o hino nacional brasileiro como trilha sonora para o contágio por proximidade presencial de todas aqueles patriotas.

Vi o cartaz que trazia “Doria Covas. Vocês não sabem o valor do trabalho. FACISTAS”. Achei curiosíssimo que a palavra “fascistas”, no cartaz sem o primeiro S, fosse usado aqui nesse contexto.

Uma faixa trazia: “Limites ao Leviatã. Abaixo a ditadura dos prefeitos e governadores”.

O povo não fez carreata mas foi a pé até a avenida fazer um aê. Acabaram fechando a avenida aos poucos, sob o olhar complacente da PM que só organizou o fluxo.

O pessoal acordou e ficou feliz com o apoio de alguns motoristas que passavam buzinando. Gritaram muito “Fora Ditadória”, “Queremos trabalhar, abaixo a ditadura” e “ei, Dória, vi tomar no cu”.

Vi um cartaz “China fora do Brasil. Seu vírus acaba com empregos”. Vi uma bandeira de São Paulo.

Uma evento muito bizarro foi a passagem de uma ambulância do hospital Sancta Maggiore, que cortou seu caminho pelo meio do povo. Da janela aberta do veículo, sirene tocando, vi o braço de um idoso que festejava a manifestação com o punho cerrado, de dentro da ambulância. O povo vibrou.

Um trio de vendedores empreendedores amarrou dois fios, um de cada lado da avenida, e lá pendurou bandeiras do Brasil e camisetas do Bolsonaro. Um deles gritava: “Ó a bandeira, bandeira, passa cartão, bandeira!”.

Um manifestante ia aos carros parados, que aguardavam o semáforo abrir, cobrar que se manifestassem também: “pô, põe a mão na buzina, faz alguma coisa!”.

Vi uns três homens com a mesma camiseta, um A anarquista com a palavra “Action” escrita embaixo. Todos eram carecas, e um deles de ar meio sinistro. Reconheci líderes do MDC (Movimento Brasil Conservador)

Chegou uma faixa impressa “Dória vergonha de São Paulo, desgraça do Brasil. Impeachment já”

Eram 15h45 quando a PM acabou por interromper o trânsito das duas vias.

Depois de um tempo, passou a euforia e o povo ficou mais quieto. Parecia que não tinha liderança nem plano certo. Uma mulher veio perguntar o que eu escrevia. Disse que era uma crônica das ruas e ela respondeu “então escreve aí que este ato foi espontâneo, organizado por whatsapp entre amigos”.

Dali a pouco um orador ao microfone chamou todos para uma reza. “Gente, junta aqui para rezar o pai-nosso”. Como na hora do hino nacional, achei a imagem definidora deste encontro: uma oportunidade de auto-contágio ritual supervisionado por deus.

A seguir ele falou que iriam voltar ao mesmo local na segunda-feira, dia seguinte, para acompanhar a votação do impeachment de Dória. E disse que tinha gente na frente da FIESP, na avenida Paulista.

Agradeceu à polícia militar e puxou um vigoroso “Viva a PM”.

Eram 16h50 quando subi a avenida Brigadeiro Luiz Antônio e busquei a FIESP.

Já tinha umas 40 pessoas lá, com bandeiras. Alguns eram da manifestação anterior, mas não todos. Bandeiras do Brasil, uma de Israel, um ou outro cartaz anti-Dória.

Achei as falas mais confusas e de cunho fortemente religioso, misturando moralidade com economia. Tomei isso como uma desorientação das bases, isoladas e sem liderança clara com pautas viáveis para defesa na rua, regredindo a narrativas meio estapafúrdias sem colocação institucional.

Um homem de barba discursava cobrando a liderança da FIESP apoio ao impechment de Dória e revogação da quarentena. Afirmou que Bolsonaro ia assinar segunda-feira o decreto de suspensão as quarentena e que Dória ia ao STF contra a decisão. E que esse era o estopim para a revolta.

Aqui, a interação com a rua era muito maior. Muito motorista passava buzinando, e um número muito expressivo de entregadores em suas bicicletas passavam fazendo festa ou paravam para conversar.

Mas tinha também quem desafiasse, e vi muita gente passando e xingando. A mais corajosa de todas foi uma travesti muito jovem, 20 anos ou menos, que passou pelo meio do povo, na mesma calçada, saltitando e dançando enquanto gritava: “Vocês vão todos morrer! O vírus existe!”. O orador percebeu e retrucou: “Olha lá quem pegou AIDS!”. Ela não se abalou e, sorrindo muito, continuou a dançar e a gritar. E ela ainda fez o percurso de volta uns 15 minutos depois, indomável.

Fiquei até as 17h45. O ato ia continuar indefinidamente, mas não consegui ficar mais. Tudo muito repetido e triste.

Avaliei ao final que a mobilização das bases bolsonaristas está muito fraca e eles se sentem isolados. Fiquei convencido que a máquina digital do Carluxo não está funcionando. A torrente de informação continua, o fluxo de informação foi forte no sábado, mas não gerou corpos na rua – e parece não ter ainda não capilarizado para fora das classes médias.

Pode ser que esta posição política busque gerar frutos apenas no futuro imediato, quando explodir a tensão social decorrente da fome e\ou do colapso da saúde pública. De certa forma, a posição de Bolsonaro blinda-o nas duas situações: se o impacto do covid-19 foi controlado e relativamente baixo, poderá dizer que ele tinha razão ao fazer pouco da pandemia; e se tudo sair do controle, poderá dizer que o remédio da quarentena é doloroso demais e que ele zelava pelo bem-estar do povo.

Mas o atual isolamento político de Bolsonaro traz perigo à sua permanência imediata, e aposto que ele gostaria muito de ver multidões em seu apoio agora. No momento, só os evangélicos. O clã Bolsonaro, os “ideólogos” e o Gabinete do Ódio podem ser esmagados ou anulados por militares que se aliem a outras forças políticas.

Pedalei pela Paulista e fui para casa.

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