O novo presente de Niterói ao SUS

Município prepara projeto “Navegadores Clínicos”. Profissionais de Saúde conduzirão pacientes de câncer para garantir serviços médicos e assistenciais. Secretário sustenta: é essencial derrubar teto de gastos, mas vazios assistenciais podem ser enfrentados desde já

.

Rodrigo de Oliveira, em entrevista a Flávio Dieguez

Com uma longa tradição como pioneira na construção do sistema público de saúde brasileiro, que remonta ao movimento pela reforma sanitária, nos anos 1970, Niterói acaba de dar nova contribuição à garantia do direito à Saúde. A Câmara Municipal aprovou em primeira votação, na última quarta-feira (10/11), lei que cria uma inovação notável no atendimento, pelo SUS, aos pacientes de câncer. Eles serão guiados por um profissional de saúde de nível superior a quem será dada nova função: a de “navegador clínico”.

A ideia, como expôs a Outra Saúde o secretário de Saúde, Rodrigo Oliveira, é “garantir os procedimentos médicos adequados no tempo adequado”. Ele salienta a urgência imposta por essa doença, em termos das chances de sobrevivência. Mais do que isso, porém, a inovação humaniza o atendimento em uma escala emocionante, pois o navegador clínico terá o papel de “mobilizar toda a rede de cuidados, tanto de saúde quanto de outras redes intersetoriais, como assistente social e outras, para garantir todo o apoio”, continua o secretário.

“Ou seja, vai ser alguém que conhece a rede, que conhece todos os dispositivos de apoio para essa paciente, e vai ajudá-la em todo esse percurso para cuidar da doença”. A iniciativa de Niterói é uma resposta concreta os chamados “vazios assistenciais” existentes no SUS. Em muitos casos, os pacientes esperam tempo demais por procedimentos como consultas e exames. O déficit é resultado direto do subfinanciamento da Saúde Pública, agravado desde 2018, com o “teto dos gastos sociais”, que limita tragicamente as despesas no orçamento federal.

Niterói, segundo o secretário, luta ativamente, há dez anos, contra a insuficiência de recursos para a saúda, como se vê, especialmente pela expansão da atenção à saúde. O gráfico abaixo mostra que nas áreas consideradas “de especial interesse social”, por exemplo, a cobertura do Programa Médico de Família cresceu de pouco mais de 50%, em 2013, a quase 100% hoje. Rodrigo concorda que o desfinanciamento é desastroso. “A gente reverter o mais rápido possível o teto de gastos”.

Mas o secretário pondera que não basta aumentar o financiamento. Em âmbito local, diz, é preciso investir com muita força em planejamento. “ É fundamental uma estratégia gerencial-organizacional da rede de cuidados, para garantir que ninguém fique para trás – por exemplo no enfrentamento da mortalidade por câncer.

Rodrigo Oliveira tem uma visão bem definida sobre o aprimoramento do SUS, dizendo que há dois grandes desafios. Um é que o sistema de saúde está incompleto e precisa de inovação. “A gente precisa fazer um investimento forte na ampliação da incorporação tecnológica e na melhoria da sua eficiência e eficácia”. O outro desafio é fazer “um forte investimento que necessariamente tem que ser público, estatal, de coordenação, planejamento, programação e regulação, colocando as necessidades de saúde do povo no centro dessas discussões”.

O município parece empenhado, também, em ampliar a participação popular na gestão da Saúde Pública. Em plena pandemia, realizou um Conferência Municipal de Saúde. E tratou a pandemia de forma exemplar, antecipando, inclusive, sua chegada ao Brasil. Desde janeiro, quando OMS anunciou a situação de emergência internacional, a cidade começou planejar o seu enfrentamento. Em meados de março, logo após o seu primeiro caso, a prefeitura criou um “gabinete de crise” e uma “sala de situação” da secretaria de Saúde para lidar eficientemente com a situação.

Num Brasil que sofre tantos retrocessos, Niterói parece alcançar sucesso remando contra a maré, fortalecendo as políticas públicas e o debate democrático. No campo da saúde, aposta na reprodução de suas experiências precursoras, hoje tema de pesquisa acadêmica. Como sua medicina comunitária, que deu origem ao conceito de Conselho Municipal de Saúde, em 1970. Inovou também nas décadas de 1980 e 1990, inspirando-se no modelo cubano para implementar o emblemático Programa Médico de Família que serviria de modelo para todo o país. Fique com a entrevista de seu secretário de Saúde:

A Câmara Municipal de Niterói acaba de votar lei que cria uma inovação notável no atendimento, pelo SUS, aos pacientes de câncer. Eles serão apoiados por um profissional de saúde – “navegador clínico” – que os conduzirá tanto pelos meandros da Saúde Pública quanto da assistência. Como isso funcionará?

Esse projeto vai de encontro à reorganização que a prefeitura e a secretaria de Saúde vêm pensando para garantir a integralidade do cuidado e o bom atendimento. A ideia foi lançada no final de outubro e é parte de um esforço maior nosso, Niterói Contra o Câncer, para organizar a rede de atenção à saúde e garantir o cuidado aos portadores da doença.

Um profissional de saúde de nível superior vai acompanhar uma pessoa a partir do momento que seja suspeita de estar com câncer. Para apoiá-la em todo esse processo, tanto para garantir os procedimentos médicos adequados no tempo adequado, quanto para mobilizar a rede de cuidados, tanto de saúde quanto de outras redes intersetoriais, como assistente social e outras, para garantir todo o apoio.

A iniciativa de Niterói parece responder à existência dos chamados “vazios assistenciais”, um problema reconhecido no SUS. Em muios casos, os pacientes esperam tempo demais por procedimentos como consultas e exames. Os “navegadores clínicos” podem ser uma alternativa a este problema?

Quando a gente pensou o programa Niterói Contra o Câncer – e especificamente o Niterói Mulher, para cuidar de câncer de colo de útero e câncer de mama, primeiro reconhecemos que há um problema de oferta, o que você pode chamar de vazios assistenciais. Faltam no estado do Rio de Janeiro doze centros de atendimento ao câncer.

Esses vazios assistenciais precisam ser enfrentados com ampliação da oferta. Mas não é verdade que no SUS sejam necessárias apenas mais unidades. Faz falta uma melhor articulação de uma rede de cuidados em saúde, algo que vai além do problema da oferta. Em Niterói, iniciamos ampliando a oferta para atender 100% da população. E o projeto navegadoras deve intervir no que vemos como uma certa desorganização sistêmica, em que pessoa, por culpa inclusive do sistema, tem dificuldades para saber quais recursos deve acessar.

Esse apoio, principalmente a doenças em que o tempo é decisivo, e o câncer é uma doença absolutamente tempo-dependente, significa que quanto antes eu estabelecer o diagnóstico, fechar esse diagnóstico e iniciar o tratamento, melhores são os prognósticos. Ou seja: é fundamental uma estratégia gerencial-organizacional da rede de cuidados para garantir que ninguém fique para trás. A gente aposta na reorganização sistêmica, apostando muito em tecnologias de informação para garantir comunicação com o usuário, e oferta de informação de qualidade.

Os vazios assistenciais estão diretamente relacionados a um problema estrutural: o subfinanciamento da Saúde Pública, agravado desde 2018, com a Emenda Constitucional (EC)-95 e o “teto dos gastos sociais”. Como o município de Niterói age para enfrentá-lo?

Primeiro é importante enxergar o papel do teto dos gastos. A gente sai de um cenário já difícil do Sistema Único de Saúde, de subfinanciamento, devido a questões tributárias do Brasil, e em 2018 passa a um cenário de desfinanciamento, onde a participação federal no financiamento do SUS é retraída. Niterói tem nadado contra a corrente. Principalmente nos últimos oito anos, o município aumentou bastante a quantidade de recursos investida em saúde. Além dessa expansão nominal do financiamento, tem investido fortemente em processos de planejamento voltados para organizar uma programação assistencial capaz de intervir nas principais necessidades de saúde do nosso povo – como por exemplo no enfrentamento da mortalidade por câncer. Mas é fundamental a gente pensar de forma mais sistêmica. A gente tem de reverter o mais rápido possível a EC-95.

A nova iniciativa parece relacionar-se também com o tema da humanização do atendimento no SUS. Em especial quando estão em situação de fragilidade, os pacientes sentem-se muitas vezes perdidos no sistema. Como Niterói tem buscado lidar com isso?

O Projeto Navegadoras tem a ver com uma concepção e um princípio básico que a gente adota. A ideia de que a Saúde é um direito exige a garantia de acesso aos procedimentos necessários para que esse direito se realize. É, portanto, responsabilidade do Estado. Ele precisa se organizar para que a oferta de serviços seja quantitativamente suficiente para atender toda a população – mas também precisa de uma organização gerencial.

Ou seja, a gente precisa pensar em dispositivos capazes de garantir que ninguém fique para trás para que a as pessoas que precisem de determinado procedimento tenham esse acesso. A regulação assistencial é um debate que vem avançando bastante ao longo do das últimas décadas no Brasil. A gente precisa enfrentar a questão da programação, reorganizar a forma com que a gente se comunica com a população.

A instituição de uma figura como o “navegador clínico” remete também ao sistema de Assistência Social, que tem sido igualmente desvalorizado pelos últimos governos. Niterói pretende envolver a rede do SUAS nesta iniciativa?

O processo de saúde não é unidimensional, não pode privilegiar apenas a dimensão biológica, ou clínica ou médica. É necessariamente um fenômeno social complexo. Para tanto a gente precisa articular políticas intersetoriais e coordenadas, e envolver o conjunto da sociedade.

Para a gente produzir uma cidade mais saudável precisa necessariamente garantir segurança alimentar e a renda mínima pra o conjunto dos cidadãos. E estabelecer relações muito profundas com a assistência social e parcerias que façam, por exemplo, a gestão do esporte, ou da cultura, trabalharem a promoção da saúde.

O SUS é um sistema nacional, porém fortemente decentralizado. As políticas e a gestão municipais fazem toda diferença. Enquanto alguns municípios usam seu poder para privatizar por dentro o sistema – recorrendo abusivamente a serviços privados. Niterói parece apostar na direção oposta. Quais têm sido os resultados?

É importante reconhecer que as políticas nacionais hoje implementadas com os melhores resultados – como saúde da família, a rede de saúde mental e outras – surgiram a partir de experiências nacionais. Quando a gente pensa em sistemas locais de saúde, um elemento é reforçar o papel do Estado na coordenação, planejamento e regulação, e na planificação de um conjunto de investimentos, para que a gente tenha um quantitativo necessário para atender as necessidades de saúde da população. Isso é um elemento fundamental.

Outro elemento decisivo é garantir que cada unidade dessa rede complexa de serviços de saúde tenha um bom resultado. Para diminuir a mortalidade por doença cardiovascular, preciso ter uma rede de cuidados que consiga fazer promoção, prevenção e prevenção da saúde, e preciso ter acesso aos exames. Mas preciso ter também um bom hospital que consiga fazer, por exemplo, as cirurgias cardíacas e a implantação de cateterismo, hemodinâmica e outros processos. Ou seja, nós temos dois grandes desafios no sistema de saúde: ele está incompleto e precisa de inovação. É preciso fazer um investimento forte, investimento na incorporação tecnológica e na melhoria da sua eficiência e eficácia. Por outro lado, a gente precisa fazer um forte investimento que necessariamente tem que ser público, estatal, de coordenação, planejamento, regulação, colocando as necessidades de saúde do povo no centro dessas discussões.

Outro esforço do município parece ser a busca de participação popular na gestão da Saúde Pública. Niterói realizou, em plena pandemia, uma Conferência Municipal de Saúde. Como esta participação ajuda a enfrentar os problemas do SUS?

A gente tem muito claro que o processo de saúde e doença é um fenômeno social complexo. Ele exige que a política pública articule e coordene ações intersetoriais para intervir na complexidade que o tema demanda. E precisa partir de um processo de envolvimento do conjunto da sociedade na construção da política pública ou, como falava o Sérgio Arouca, de aumento da consciência sanitária do nosso povo.

O envolvimento do conjunto da sociedade é elemento decisivo para se apropriar cada vez mais do Estado. Mas também para que cada vez mais o povo brasileiro compreenda os fatores condicionantes de sua saúde e consiga tomar as decisões de forma livre, esclarecida, no sentido de preservar sua vida e de se proteger dos riscos.

Em Niterói a gente estabeleceu, em fevereiro e março deste ano um conjunto de debates visando à construção do plano municipal de saúde participativo. Lançamos, mesmo em meio à pandemia, um Encontro Municipal de Saúde que sistematizou as propostas para tanto.

Só com o movimento de ampla participação e um movimento político e social em defesa a gente vai conseguir superar os enormes desafios da garantia do direito à Saúde. E espero que a partir de 2023, possamos enfrentar também os desafios da reconstrução democrática do nosso país.

Num Brasil que sofre tantos retrocessos, Niterói parece alcançar sucesso político remando contra a maré. O município foi inovador também em temas como o combate à covid e na recente implantação de um sistema de Renda Básica. Como isso tem sido possível?

Niterói tem sido governada, ao longo das últimas três décadas, pelo campo progressista. O povo alternou entre partidos como PDT, PT e PV. Ao longo da pandemia ficou claro que era preciso compreender o conjunto complexo de fatores que condicionavam a transmissão do vírus. Um elemento decisivo foi a criação de uma renda básica temporária, que repassou quinhentos reais para cinquenta mil famílias. Isso garantiu maior adesão às medidas de isolamento social e de restrição da circulação. Também protegeu a economia e permitiu estabelecer um processo de retomada econômica. A partir do ano que vem, esse programa será permanente e incluirá a construção da moeda social Araribóia, que vai garantir renda básica de forma permanente para milhares de famílias.

Estamos fazendo um esforço grande para modernizar a nossa rede atenção a saúde e qualificá-la, inclusive do ponto de vista gerencial. Mas é fundamental investir em ações intersetoriais, como é o caso da renda básica e da segurança alimentar. Por fim, vale a pena dizer que esse processo também foi possível porque a cidade passou por um forte processo de modernização, conseguiu reorganizar a parte fiscal, orçamentária, e ter a consciência de garantir um grande fundo com o recurso dos de petróleo que a cidade recebe.

Leia Também: