Aldeias na reclusão: invasão e luta nas fronteiras Norte

Dário Kopenawa e Biraci Yawanawá relatam: garimpo, desmatamento e invasões levam covid a seus povos. “Os médicos da floresta, os xamãs, os pajés, estão trabalhando para proteger o nosso território.” Mas pandemia pode ser chamado à reconexão com a Terra

Povo Yawanawá
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ALDEIAS NA RECLUSÃO
Há três décadas, a jornalista Angela Pappiani convive com os povos indígenas brasileiros e escreve sobres seus dramas, lutas e sonhos. Em meio à pandemia, escolheu nova tarefa: recolher, das lideranças, depoimentos sobres a batalha contra o coronavírus, em meio ao descaso do governo.

Leia os relatos já publicados:
1. Histórias das aldeias na reclusão
2. Vírus e cerco à vida indígena
3. Invasão e luta nas fronteiras Norte
4. Os Guarani Kaiowá entre a covid e o despejo
5. Vozes indígenas: como os Baniwa enfrentam a covid
6. No Xingu, mulheres encaram a covid
7. A guerreira Munduruku vê a pandemia
8. “Enfrentamos a doença há 520 anos”
9. A pandemia numa São Paulo indígena

Por Angela Pappiani, com relatos de Dário Vitório Kopenawa Yanomami, da aldeia Watorik (TI Yanomami/RR e AM) e Biraci Nixiwaká Yawanawá (TI Rio Gregório/AC)

O povo Yanomami ocupa um território de 9.419.108 hectares na divisa com a Venezuela, demarcado em 1992, depois de mais de 20 anos de árdua batalha encabeçada por Davi Kopenawa Yanomami e pela Comissão pela Criação do Parque Yanomami – CCPY. Uma luta que alterou os rumos de vida de Davi Kopenawa (ler “A Queda do céu” com relatos e reflexões de Davi transcritos por Bruce Albert) e de Cláudia Andujar, uma das mais importantes fotógrafas do mundo que se dedica, desde a década de 70, em corpo, espírito e ação a essa causa, colocando sua arte, visão poética e política para levar ao mundo as imagens do povo Yanomami.

Dário Vitório Kopenawa Yanomami, filho mais velho de Davi Kopenawa e Fátima, neto do grande xabori (xamã) e chefe político Lourival (falecido ano passado) nasceu e cresceu na aldeia Watorik, sob pressão de invasões constantes, longas ausências do pai que, mesmo sob ameaças de morte, enfrentava viagens cansativas na busca de alianças e apoios para a luta do povo Yanomami.

Dário Vitório Kopenawa Yanomami

Dário aprendeu a falar português, cursa universidade em Boa Vista e assume um papel importante à frente da Hutukara Associação Yanomami. É dele o depoimento a seguir, onde fala das ameaças que colocam em risco a vida de seu povo.  No relato, Dário cita o massacre do Haximu,  ataque que aconteceu em 1993,  quando garimpeiros ilegais invadiram a aldeia com esse nome e mataram e esquartejaram 16 indígenas, segundo dados oficiais contestados pelos próprios Yanomami que creem que o número foi muito maior. Esse crime foi julgado como genocídio e depois da condenação, o julgamento foi anulado e o réu solto. Com a palavra, Dário Kopenawa:

“Nós convivemos hoje com vários problemas antigos aqui na Terra Indígena Yanomami, com os invasores que prejudicam a vida do nosso povo. São mais de 30 anos com garimpo ilegal, poluição de nossos rios, massacre do Haximu, mortes e assassinatos de nossos parentes e ameaças constantes. Esses problemas são antigos e continuam, os invasores estão cada vez mais dentro do nosso território. Uma perturbação muito grande. Desde que eu nasci, desde que era criança, já estávamos com esse problema,  as outras gerações que estão nascendo agora também vivem com o mesmo problema. Os invasores prejudicam a vida do Povo Yanomami, ameaçam o nosso território, os animais, a biodiversidade, trazendo a poluição do ar e contaminação dos nossos rios. Isso a gente está vivendo.

Conseguimos a demarcação da Terra Yanomami, também conseguimos retirar os garimpeiros ilegais na década de 90. Foram conquistas muito grandes, muito importantes. A população cresceu bastante. Hoje temos aproximadamente 27 mil pessoas no território total.

Agora estamos enfrentando de novo a invasão e a epidemia, como no passado quando o sarampo matou muita gente. Agora é a pandemia de coronavírus.  Ela saiu de outro pais, de outro continente que não está cuidando de seus territórios, onde estão destruindo a mãe Terra, o ar, causando mudanças climáticas.

Há muito tempo, o nosso criador Omama deixou esse xawara (veneno/epidemia) muito distante das famílias Yanomami, fora dos limites do nosso território.  Esse xawara foi liberado de baixo da terra. Essa pandemia já atingiu 200 países, prejudicou a vida do mundo inteiro. A cosmologia do povo Yanomami fala isso. Nosso criador disse que não podemos destruir nossa mãe Terra, temos que cuidar dela. Dentro da cosmologia dos não-indígenas, eles têm leis que asseguram que não se pode destruir o meio ambiente, não pode queimar, não pode desmatar, não pode tirar o ouro, não pode explorar o petróleo dentro da floresta. Fala isso na legislação brasileira. Mas na prática não funciona. Então a cosmologia não-indígena não está respeitando as suas hierarquias, a própria constituição brasileira.

Essa pandemia que veio, que saiu debaixo da terra, é uma vingança pela ameaça ao nosso planeta Terra, é a resposta para a sociedade não-indígena que não está cuidando do planeta. É o resultado para vocês, não-indígenas, aprenderem, sentirem a dor. A Terra está pedindo socorro, está doente. Por isso essa doença que se chama coronavírus saiu de baixo da terra.

Esse xawara chegou na nossa terra também, nas comunidades Yanomami. Isso que está acontecendo aqui é o resultado de desmatamento, destruição e retirada do ouro das terras indígenas. Os xamãs já falaram: isso significa que a mãe Terra está braba, triste e doente, está falando para os não-indígenas pararem de ameaçar o planeta. Assim os xamãs falaram.

A gente está criando nossas estratégias para prevenir a contaminação: não pode ir para a cidade, não pode ficar perto dos não-indígenas, do garimpo ilegal, não pode ficar perto do posto de saúde, do distrito sanitário Yanomami.

As comunidades onde ainda não chegou esse coronavírus estão tranquilas, estão trabalhando, organizando as festas, cuidando de seus familiares, com saúde. Onde chegou a pandemia, estão perturbados, com preocupações por não conseguirem trabalhar, ir para pescaria, caçadas, fazer as roças, construção de malocas, as festas, cuidar do território, do meio ambiente, da cultura. Tem aumentado muito o garimpo ilegal e também os surtos de malária. Esse ambiente de prejuízo da saúde está acontecendo.

Por outro lado, os médicos da floresta, os xamãs, os pajés, estão trabalhando para proteger o nosso território. Eles estão trabalhando para enfraquecer os espíritos da pandemia, é um trabalho muito importante que estão fazendo.

Estamos preocupados, tristes. Os indígenas não buscaram essa pandemia para matar as pessoas. É culpa das autoridades que não impediram a destruição da nossa terra. Roraima é o estado brasileiro mais preconceituoso, mais anti-indígena. Não respeita os povos originários que vivem aqui. A população não gosta dos povos indígenas, são a favor dos políticos, da mineração, dos fazendeiros, da destruição. Aqui, nenhuma autoridade nunca defendeu os povos indígenas. Já faz muito tempo que a gente faz denúncias aos órgãos públicos, às autoridades brasileiras, mas a gente não conseguiu resolver ainda. O governo brasileiro mente muito, não fala a verdade. Nosso presidente falou muitas mentiras no Conselho de Meio Ambiente da ONU.

As pessoas do Brasil e do mundo precisam enxergar isso. Então criamos essa estratégia: uma campanha nacional e internacional, para o mundo inteiro, para a sociedade perceber esse risco para a vida dos povos indígenas brasileiros, especificamente para os Yanomami. Para o mundo perceber o desrespeito ao direito dos povos originários, que o Governo brasileiro não está cuidando, apoiando os povos indígenas aqui no Brasil.  A campanha “Fora garimpo – Fora covid” é muito importante. Está nas redes sociais ocupando a visão do povo brasileiro e do povo estrangeiro para a sociedade reconhecer nossos problemas. Para cobrar o dever do estado brasileiro de fiscalizar os territórios, retirar imediatamente os garimpeiros para que os povos originários sejam respeitados. Esse é nosso objetivo.”

Nas florestas do Acre, divisa com o Peru, o povo Yawanawá comemora a vitória sobre o coronavírus. Os Yawanawá são cerca de 1.200 pessoas vivendo em várias aldeias ao longo do Rio Gregório.

Até a década de 1970 viveram tempos difíceis de trabalho escravo para seringalistas, de violência e desenraizamento,  depois foram invadidos por missões evangélicas que completaram o apagamento cultural e distanciamento da espiritualidade tradicional. Mas chegou um momento em que decidiram emergir e respirar. Nos anos 1980, expulsaram os missionários e iniciaram um novo tempo de revitalização da cultura e dos conhecimentos da tradição, de fortalecimento da espiritualidade, da formação de novos pajés. Biraci Nixiwaká Yawanawá assumiu essa liderança ainda muito jovem, ao lado dos poucos anciãos que guardavam a memória do povo. Em sua trajetória, como outras lideranças, também foi obrigado a se afastar da aldeia por longos períodos na luta por direitos. De volta à terra de seus ancestrais, Biraci reverencia a floresta e os espíritos e nos conta de suas descobertas:

Cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá

“Para mim, a pandemia foi um presente divino, porque se não fosse isso, ninguém voltava para o seu canto e não sentia que temos um ser supremo criador que precisamos respeitar amar e cuidar dele. Não é uma conversa teórica ou teológica, estou falando do físico, da terra, da floresta, dos rios, dos animais. O homem e a natureza, nós nos desconectamos. Por isso estamos vivendo o maior balanço agora. A pandemia veio dizer que somos todos iguais: preto, branco, índio, pobre e rico. Todos que estão em cima desta terra são iguais, são descendentes da morte, independente de qualquer cor, raça e poder. A pandemia veio falar isso, a natureza está falando isso. Estamos vivendo o momento mais crucial. Infelizmente esse miserável desse presidente entrou no momento de transição do mundo. Veja as queimadas que estão acontecendo na Amazônia, no Brasil. A maior floresta tropical do planeta sendo azarada incompetentemente pelas autoridades! Se não bastasse a Amazônia, agora o Pantanal está em chamas! A guerra começou. A guerra agora não precisa dos norte americanos, as grandes potências mundiais inventarem seus aviões, navios de guerra, suas armaduras. Eles e tudo isso vão apodrecer. Não será preciso usar nada disso porque o que está acontecendo é muito maior, todo um balanço da natureza, pode vir a fome, a falta de água, do alimento e muitas outras coisas.

Eu senti isso, e, independente da pandemia, eu voltei para casa, voltei pra esse lugar onde viveu minha avó. Vim agradecer ao criador, aos meus ancestrais, agradecer a esta floresta. Esta floresta, eu não vejo simplesmente como a mata, aqui está o meu hospital, meus médicos, enfermeiros, a farmácia com os remédios estão nas plantas, há milhares de anos sobrevivemos por causa dela. A pandemia veio me dizer que se a gente, os povos indígenas no Brasil e em qualquer lugar do mundo dependesse da farmácia dos brancos, tínhamos entrado em colapso.

Dentro do nosso povo Yawanawá, 80% foi contaminado e só perdemos um ancião, e foi por um descuido. Estamos preparados para receber outras epidemias que virão, como essa. Não morreremos mais. Fui na farmácia? Eu tive médico, alguém do governo, algum programa de proteção aqui na minha casa? Fiquei entregue à própria sorte. Mas eu tenho a sorte do nosso conhecimento ancestral e da floresta. Aqui é minha escola, aqui estão meus professores, os pássaros, os grandes cantores no mundo espiritual, do universo. Eles nos ensinam a cantar, trazem a melodia. Vou queimar a minha escola?  Nunca, jamais farei isso. Essa pandemia me ensinou: tá vendo? Você prefere a cidade? Vocês são tão frágeis quando abandonam sua natureza. Voltei para minha casa e me sinto hoje uma pessoa firme. Tenho minha aldeia, um lugar para cuidar, valorizar, plantar a medicina, ficar com meus filhos, ensinar meus filhos. Os mais jovens estão aqui, pode escutar no fundo da nossa conversa eles brincando, cantando, um de 9 e outra de 11. Vou ensinar esses meus filhos.

Este momento mudou muito a minha vida. A gente se isolou. Ficamos longe de nossos amigos, e no começo eu pensei: como vamos sobreviver agora? Eu fiquei com medo, pensei até que ia morrer, porque vi tantos amigos irem embora. Chorei muito, foi como as pedras do dominó caindo, pessoas que a gente conhecia, nossos amigos de luta, grandes caciques como o Paulinho Paiakan, o Aritana, o Mário Poyanawa, o tio Chicó, o meu tio caçula, o único Yawanawá, outros companheiros que não me lembro de tantos nomes, irmãos caindo.  Foi como se caíssem pedaços do meu corpo, um dedo, uma mão. Comecei a me dissolver em dor.

Essa covid vai escolhendo as figuras principais, para machucar mesmo! Tem por traz disso uma questão espiritual, ela não veio somente como uma doença, uma gripe… tem o lado espiritual muito forte. Mas o tempo veio para nos ensinar a manter o equilíbrio, o comportamento, de viver na nossa casa, de valorizar mais a nossa história, nosso conhecimento.

Os políticos, as instituições têm nos dividido, como propriedades que pertencem a um e a outro. Isso é muito negativo. Precisamos manter a autonomia, o entendimento independente entre nós, povos indígenas, e nossa solidariedade.

Ainda estamos vivendo esse momento da pandemia, o Acre ainda tem índice de mortes altíssimo. Mas a gente aqui nas aldeias superou. Depois que fiz um contato com o tratamento espiritual, com as ervas, eu senti como se estivesse nascendo do ventre de minha mãe de novo. Então comecei a ajudar minha família, nosso povo. Quando comecei minha luta (na década de 80) a gente não era nem 200 pessoas, agora somos mais de mil Yawanawá. Sou o pai dessa história, do renascer desse povo.

Já estou falando com a Funai, pedindo autorização para receber pessoas porque quero ajudar a curar aqui na nossa aldeia. Tenho absoluta certeza de que temos como ajudar o mundo nessa pandemia, de curar as pessoas. Já estou velho para mentir, estou falando com certeza porque tratamos mais de 600 contaminados com o vírus, e estão todos bem. Esse foi meu trabalho nesses últimos quatro ou cinco meses.”

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