A pandemia numa São Paulo indígena

Cerca de 70% dos Guarani Mbya contraíram covid, a 40km do centro da cidade. Fizeram testes e isolamento, e trataram-se com ajuda da medicina ancestral. Em meio à doença, a luta pela preservação de suas terras teve de continuar…

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Tiago Karaí, do povo Guarani Mbya de São Paulo, em relato a Angela Pappiani

ALDEIAS NA RECLUSÃO
Há três décadas, a jornalista Angela Pappiani convive com os povos indígenas brasileiros e escreve sobres seus dramas, lutas e sonhos. Em meio à pandemia, escolheu nova tarefa: recolher, das lideranças, depoimentos sobres a batalha contra o coronavírus, em meio ao descaso do governo.

Leia os relatos já publicados:
1. Histórias das aldeias na reclusão
2. Vírus e cerco à vida indígena
3. Invasão e luta nas fronteiras Norte
4. Os Guarani Kaiowá entre a covid e o despejo
5. Vozes indígenas: como os Baniwa enfrentam a covid
6. No Xingu, mulheres encaram a covid
7. A guerreira Munduruku vê a pandemia
8. “Enfrentamos a doença há 520 anos”
9. A pandemia numa São Paulo indígena

No extremo sul da cidade de São Paulo, a paisagem ainda guarda um pouco da memória do que era a capital até o começo do século 20: áreas preservadas da Mata Atlântica, casas com quintais amplos cheios de pés de fruta, chácaras de cultivo de hortaliças e flores. Parelheiros e Marsilac são os dois bairros mais distantes, a cerca de 40 km do centro, os de maior tamanho e menor densidade populacional. Ali, cerca de 1.200 pessoas do povo Guarani M’byá resistem, cuidando do que resta de natureza com sua sabedoria e cultura milenar, recuperando os alimentos sagrados, a qualidade das águas e da vida.

Depois de mais de 10 anos de muita luta pela ampliação de seu território, e com a demarcação oficialmente reconhecida pela FUNAI em 2012 de uma área de 15.969 mil hectares, os Guarani do Tenondé precisaram ocupar o Escritório da Presidência da República, na Av. Paulista em 2016 com grande cobertura da mídia, para conseguirem a assinatura da portaria declaratória pelo Ministro da Justiça.

Desde 2014 eles fazem a autodemarcação de sua terra e ocupam o território com várias aldeias com atividades de afirmação cultural e iniciativas de turismo, suspensas por conta da pandemia, para divulgar sua cultura e forma de vida e ainda conquistar aliados para a luta. Mas ainda esperam a homologação – ato final de proteção a uma Terra Indígena como terra da União com usufruto da comunidade — que pode ser afetada pelo julgamento do Marco Temporal. Por isso esse povo forte e guerreiro cria estratégias para garantir seus direitos enfrentando governos e polícia e se fortalece todos os dias na Opy, a Casa de Rezas, entoando seus cantos sagrados sob a fumaça do Petynguá, o cachimbo sagrado Guarani.

A seguir o depoimento de Tiago Karaí, que integra com outros jovens e anciãos o Conselho de Lideranças que agora faz a governança das aldeias Guarani onde não existe mais a figura do cacique. Ele fala de um lugar político da interlocução com as instituições na busca dos direitos de seu povo e sobre a importância da tradição e do modo de viver Guarani – o Nhanderekó, nesse momento de grande reflexão sobre nossa relação com o planeta Terra:

“A Covid-19 é uma questão mundial que segue ainda até este momento e provoca a reflexão sobre nossa sobrevivência humana no planeta Terra. A gente vem refletindo bastante sobre todas as consequências da pandemia no mundo e em especial para os povos indígenas. A gente já sabia que íamos ser os mais frágeis e afetados, nós, os povos indígenas e também as comunidades tradicionais no mundo todo, pelo aspecto cultural e tradicional. Mesmo que a gente esteja em contato com a sociedade não indígena há mais de 500 anos, temos muito forte o Nhanderekó, o nosso jeito de ser, nossa maneira de ver o mundo. Temos a coletividade como valor muito forte, estar junto com os mais velhos compartilhando os sonhos, vivenciando o cotidiano, de estar fazendo os trabalhos comunitários. E também nossa religião, o jeito de estar na casa de rezas, a Opy, onde a gente mantém muito forte a espiritualidade. E é esse viver coletivo que, de certa forma, facilita a contaminação muito rápida dentro das Terras Indígenas. Isso a gente viveu e ainda está vivendo.

Sabíamos que, pelo contexto, as Terras Indígenas aqui seriam das mais vulneráveis: a Tenondé Porã está a 40 km do centro, no extremo sul do município, e o Jaraguá está dentro da cidade, no acostamento, entre duas rodovias, Bandeirantes e Anhanguera.

Logo no começo, a gente teve aqui a morte de uma criança de 1 ano. A situação no país não estava muito clara, tudo era muito novo para todos. Corremos atrás para saber do laudo médico da morte e demorou mais de 1 mês para ter o resultado confirmando como Covid. Muito tempo! Percebemos então que, desde que a doença começou em São Paulo, ela já estava aqui no Tenondé, dentro das Terras Indígenas. A partir daí fomos atrás do poder público, principalmente da Secretaria da Saúde, porque tem uma parceria da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) com o município, para saber quais os cuidados, as medidas que tinham que ser tomadas aqui dentro. Entramos com ação junto ao Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União e assim conseguimos ter um mínimo de assistência. Em meados de abril, conseguimos os testes PCR e depois os testes rápidos também. Conseguimos fazer a instalação de um isolamento social no espaço da escola municipal com alguns equipamentos e equipe médica para cuidar dos mais vulneráveis, os que não tinham boa condição de saúde. Conseguimos ter dois espaços de isolamento dentro da TI, com acompanhamento de uma equipe 24 hs contratada por essa campanha. O apoio veio um pouco tarde, mas conseguimos, do município e de várias parcerias com a Comissão Guarani Yvyrupá que representa os Guarani no sudeste, com campanhas para conseguir alimentos, cestas básicas e kits de higiene para o sudeste inteiro. A campanha teve visibilidade e muito apoio. Foi fundamental.

Os dados oficiais indicam que 70% da população Guarani de São Paulo foi contaminada desde março até novembro. Tivemos várias internações e perdemos três membros da comunidade para a Covid.

Foram várias etapas em que sofremos muito, principalmente de maio para junho, no pico da doença dentro da aldeia. Nesse período ficamos muito preocupados, não sabíamos o que fazer. Tentamos fazer o isolamento coletivo dentro da aldeia. Individualmente a gente não consegue, por causa da cultura. Nós não somos igual o Juruá – o não indígena, que vive em caixinhas, quadradinhos. Então, quando decretaram o isolamento social pelo país, ele simplesmente ficou dentro da casa, do apartamento. Nós não, vivemos de forma muito aberta, todos fazemos parte da comunidade, somos uma família só. Tentamos fazer a mediação mas a Covid já estava dentro e foi se alastrando muito rápido.

O que nos fortaleceu foi a espiritualidade, o contato com a terra, com as medicinas tradicionais que foram fundamentais para a gente se fortalecer, o físico e também o espírito diante das incertezas. Fomos fortalecendo as ervas, os cipós, todos os conhecimentos milenares de nosso povo. A gente foi tomando os remédios para amenizar, com efeitos muito positivos. Fortalecer e cultivar a espiritualidade que é vivida de forma muito forte pelo Guarani Mbya dentro das casas de reza.

Hoje, em novembro, já estamos numa situação muito mais tranquila, menos turbulenta, como no pico da doença. A maioria dos contaminados já estão imunizados. Estamos acompanhando o número de contaminações que ainda acontecem, mas que é pouco agora.

Este é um momento muito apropriado para termos uma reflexão sobre nossas vidas, sobre nossos conceitos. Como vamos viver daqui para frente, como vamos cuidar da mãe terra, da natureza. Até onde somos superiores em relação a todos os seres que habitam este planeta Terra? Os mais velhos Xeramoĩ, Xejaryi, já sinalizavam que nossa mãe terra não estava bem, que estava doente e que temos que cuidar dela. Eles alertavam a gente. A pandemia veio para fazer esse momento de reflexão mesmo, para repensar até onde vamos agredir a Terra, o meio ambiente, até onde o dinheiro faz sentido. Será que o dinheiro é mais valoroso do que as vidas dos seres humanos, das florestas, dos animais, dos rios, das pedras, das areais?

A gente se encontra muito fragilizado nesse momento politico desde a eleição desse presidente que é o Bolsonaro, com vários ataques contra os povos indígenas que começaram desde a campanha. Tivemos muitos retrocessos de direitos, sucatearam a Funai. A gente está numa situação bem preocupante no Brasil. A gente acompanha pela nossa Organização e também pela Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) o que vem acontecendo. Estamos muito preocupados. Agora com a eleição de 2020, estamos atentos com as possíveis mudanças na gestão municipal. Já tivemos muitas mudanças negativas. Estamos dialogando com vários políticos sobre isso, mas o descaso é muito grande, os candidatos não apresentam nenhum plano de gestão que tenha a presença do povo indígena no município. Não reconhecem nosso povo milenar, nosso direito. Estamos nos preparando para continuar resistindo mesmo que venham coisas piores.

Estamos trabalhando junto ao Município sobre a PL 181/2016, (proposta em discussão na Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente que institui a Política Municipal de Fortalecimento Ambiental, Cultural e Social de Terras Indígenas) que prevê o cinturão verde Guarani, uma gestão territorial e ambiental das terras indígenas no município que está paralisada na Câmara Municipal. Estamos conversando com o prefeito, com assessores, a coordenação que trata da questão indígena, com os vereadores para ver se a gente consegue levar para uma segunda votação porque foi aprovada na primeira em 2017 e até agora não foi para votação no plenário. Estamos nessa campanha para que o prefeito reconheça as comunidades do município, para fazermos a gestão territorial e ambiental para preservar o mínimo de verde que resta no município e o único rio limpo que resta que é o Capivari, com a tecnologia e metodologias para cuidar do território incluindo o conhecimento Guarani também.

Tivemos muitos ataques no Brasil inteiro, invasões, pressão do entorno, queimadas na Amazônia, Pantanal e outras regiões com esse novo governo que incita a violência, promove o corte de direitos, que disse desde a época da campanha que não ia ter mais nenhuma demarcação. Já estávamos com essa apreensão, e aí a população não indígena entendeu que estava tudo aberto para a invasão. Aqui na TI Tenondé tivemos muitas invasões da área porque as pessoas têm uma segurança politica da impunidade, o descaso da Funai e de outros órgãos ambientais que deveriam fazer essa proteção e não fazem a fiscalização adequada. Então muitas comunidades estão sofrendo nesse momento da pandemia porque os invasores estão se aproveitando do momento. A pandemia se soma com o governo anti-indígena.

A gente não está parado, estamos lutando para conseguir conter, resistindo, fazendo a auto demarcação. Desde 2014 estamos lutando para conseguir a demarcação pelo poder executivo de nossa nova terra que é a maior do sudeste. Temos uma portaria declaratória de 2016. Agora temos 11 aldeias, estamos ocupando nossas aldeias antigas, fazendo essa luta porque não podemos esperar o governo, a comunidade tem que conseguir o seu direito, reconhecer o próprio território e não esperar pela caneta, pela assinatura para ocupar o nosso espaço, porque se a gente não ocupar, mais para frente não vamos ter mais onde ocupar.

Muitos dizem que os indígenas não existem mais, estamos no passado histórico, mas estamos vivos, com nossa língua materna, nossa cultura, nossas tradições que a gente mantém.

O movimento indígena e o indigenista, estamos atentos ao marco temporal que seria votado em 28/10 mas foi adiado por conta da indicação de um novo ministro no STF. Esse marco temporal agride totalmente os direitos dos povos indígenas e fere a Constituição Federal. Até a gente que não é jurista, não é advogado, que não entende de lei, percebe essa incoerência, a tentativa de tirar o direito de qualquer forma, de qualquer jeito. A preocupação é muito grande com todas as ameaças do executivo, do legislativo e até do judiciário. Estamos acompanhando ansiosos por esse julgamento que teria repercussão geral a partir do julgamento de um caso de Santa Catarina retomando o marco temporal que surgiu na demarcação da TI Raposa Serra do Sol.”

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