Seria Torto Arado literatura periférica?

Trama do premiado livro passa-se em território periférico rural. Os marginalizados são os protagonistas. E inglório, o desfecho. Mas obra afasta-se da produção das quebradas por por sintaxe despregada do cotidiano e olhar feminimo

Foto: Giovanni Marrozzini/Intercept Brasil
.

As classificações na literatura e nas artes em geral, são, via de regra, de interesse acadêmico ou pedagógico. A abordagem jornalística também tem esse impulso de enquadrar determinadas produções. Ou seja, as delimitações configuram um movimento externo à obra, feito também por um agente igualmente exógeno.

Talvez por isso, é muito comum autores e autoras não se reconhecerem em certas classificações, preferindo não se apegar a chancelas na expectativa de que sua obra seja vista como “literatura universal”. Em recente entrevista, a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do aclamado Um defeito de cor, assim se manifestou ao ver sua obra identificada como “literatura negra”1.

Sua rejeição, evidentemente, não é por se alinhar à negritude, posto que é uma mulher negra e ativista, mas, por um certo temor de que tal rótulo rebaixasse a obra perante a literatura estabelecida. É compreensível o argumento da autora, mas, independentemente de sua vontade, seu livro pode sim ser classificada como literatura negra, o que acaba por valorizar essa corrente com uma obra tão importante.

Deparei-me com essa questão com Torto Arado, o premiado livro de Itamar Vieira Jr., um autor também negro. Mas minha hipótese de alinhamento aqui é com a literatura periférica que caminha junto com a literatura negra e com ela se conecta historicamente como já demonstrou Mario Augusto Medeiros em sua tese de doutorado ( Unicamp, 2011)2. Talvez, em virtude de meu ofício dedicado à leitura e estudo da literatura produzida nas periferias (de São Paulo, especificamente), acabei fazendo associações que podem ter alguma pertinência entre a narrativa de Itamar e de escritores como Sacolinha, Alessandro Buzo e Ferréz, por exemplo.

Para isso, é importante indicar alguns parâmetros que podem definir se um texto é literatura periférica. Começando com os elementos externos à obra, há o critério de identificação do autor e autora com a periferia. Ou seja, para escrever literatura periférica é preciso ser ou ter sido da periferia e com ela ter um laço de identidade inviolável, o que dá ao narrador uma centralidade na estrutura do texto em prosa. Outro aspecto é a motivação. A autora e autor buscam, por meio de sua obra, emitirem um anúncio que pode ser de exaltação, denúncia ou os dois juntos.

Internamente à obra, há que se ter uma história que se passa no contexto periférico ressaltando a verossimilhança que exponha os conflitos no interior da frátria. Os personagens, por sua vez, devem ser protagonistas desses territórios, valorizando a sintaxe e narrativas da quebrada sem estereótipos.

Feitas essas considerações, vamos ao livro de Itamar Vieira Jr.

Um épico de vidas inglórias

Torto Arado é um best-seller que conjuga excelentes vendas com boa aceitação da crítica, pelo menos daquela que se manifesta pelas mídias. O livro ainda não foi objeto de trabalhos acadêmicos de fôlego. Mas creio que passará pelo crivo da Academia também, porém, presumo, sem a exaltação que vem tendo nos meios de comunicação, eventos literários e prêmios do mercado editorial.

A história de Bibiana e Belonísia, duas irmãs com menos de um ano de diferença uma para a outra, se passa numa fazenda chamada Água Negra, onde sua família ocupa um pedaço da terra em regime de servidão (autorização do uso da terra para moradia e plantio de subsistência em troca de trabalho). O autor não demarca o espaço nem o tempo. Sabe-se que a tal fazenda fica no interior da Bahia, possivelmente na Região do Vale do São Francisco, hipótese sustentada pela recorrente referência a Bom Jesus, município de onde partiu Donana, a avó paterna, com seu filho Zé Altino, o Zeca Chapéu Grande. Uma família negra, de descendentes de escravizados que migrou pelo interior da Bahia em busca de um pedaço de terra para plantar e se sustentar.

A trama se desenrola, provavelmente, entre as décadas de 1960 a 1980. Bibiana narra o primeiro capítulo, enquanto Belonísia faz esse papel no capítulo seguinte. O terceiro, e último, tem múltiplos narradores, incluindo as duas. A narração é retrospectiva, mas o ponto de partida desse novelo de memória não é definido. Suponho que seja da época em que a história se encerra, ou seja, possivelmente o final do século XX.

Torto Arado tem sido exaltado por muitos de seus leitores como uma história de mulheres fortes que não aceitaram o destino de miséria e servidão e buscaram mudar suas trajetórias e de sua comunidade. Não é bem assim. O livro é uma história de mulheres, por certo. De Donana à Domingas, a irmã caçula das protagonistas, passando por Salustiana, a mãe delas, o fio condutor da trama passa pelo feminino. Mas, os homens têm um lugar muito importante no livro.

Há também personagens laterais que são mulheres: as irmãs Crispina e Cripiniana que disputam entre elas o amor de um jovem, acarretando um surto psicótico na segunda; Maria Cabocla que aparece na última parte do livro, mas é fundamental para entender um traço importante da personalidade de Belonisia e, por fim, embora um tanto caricata, há a Estela, esposa de Salomão, o fazendeiro que compra Água Negra no final da história e inicia uma guerra com os trabalhadores que, àquela altura, já formavam uma comunidade consolidada.

São mulheres protagonistas, mas não são heroínas. Os heróis são homens, dois, especificamente, Zeca, pai das irmãs, e Severo, primo delas.

Zeca Chapéu Grande era um conciliador na comunidade, um sábio e incansável trabalhador. Recepcionava os que chegavam na fazenda, organizava o trabalho, gozava da confiança do fazendeiro e de seu capataz. Além disso era o líder religioso, curandeiro e parteiro. Ao seu modo, sem confrontar o patrão, conseguiu benfeitorias na localidade como uma escola.

Severo, por sua vez, era um jovem inquieto, idealista, inteligente e bonito. Era desejado por Bibiana e Belonísia. Ficou com a primeira. Para se casar com a prima, porém, teve que armar uma fuga temendo a rejeição dos pais ao matrimônio. O casal perambulou por cidades grandes do interior. Ele tornou-se um líder político enquanto ela formou-se professora, atuando no magistério, seu antigo desejo profissional. Anos mais tarde voltam para a comunidade onde Severo ocupa o lugar de Zeca, já adoentado, e dá um perfil mais combativo à liderança local.

E há os anti-heróis como Tobias, funcionário da Fazendo com quem Belonísia se casará mantendo uma relação tão efêmera quanto tensa. O outro é Salomão, o fazendeiro comprador de Água Negra que chega a fim de guerra com os posseiros e, para isso, se instala na Fazenda, coisa que os proprietários anteriores nunca fizeram, tornando-se assim um agente direto no conflito agrário que se instala desde sua chegada. Não podemos deixar de mencionar o Zé Altino, um dos três ex-maridos de Donana, pai de Zeca Chapéu Grande, cujo destino guarda o segredo do “fio de corte”.

Mas como pode uma história toda construída em torno de mulheres ter nos homens personagens tão relevantes? Uma reposta possível é que todos os homens morrem; as mulheres ficam. Somente Donana padece na história, mas por vontade própria. E somente Zeca morre em circunstâncias normais, digamos assim, devido à doença agravada pela velhice. Zé Altino, Tobias, Severo e Salomão são assassinados. É o “Rio de Sangue”.

As mulheres têm suas complexidades melhor exploradas pelo autor, até por conta da perenidade dessas personagens femininas. E todas elas são sofridas, com a alma dilacerada, perturbadas por dramas do passado e dissabores da vida cotidiana. Bibiana que sofre a culpa de ter se casado com o homem supostamente desejado por sua irmã, vive o luto e a indignação pela morte do marido com quem teve quatro filhos. A orfandade de seus rebentos aprofunda o drama. A primogênita tornou-se uma mulher amargurada, descrente e vingativa.

Belonísia, que foi a irmã que perdeu um pedaço da língua em decorrência do acidente com a faca de Donana logo no início da história, além de carregar as dificuldades inerentes à perda da fala, sofreu com a fuga da irmã e viveu um casamento frustrado com o nefasto Tobias. Além disso, se afeiçoou com Maria Cabocla a quem defendeu das sucessivas agressões do marido, mas se decepcionou ao vê-la aceitar seu algoz de volta para casa. Seguiu a vida na solidão de sua casa na beira do rio. Guardiã do punhal que lhe tirou a voz, pode ter sido ela a autora da vingança desejada pela irmã.

Já Salustiana não suportou a morte do marido. Recusou ocupar o lugar dele como curandeira e, mesmo parteira, papel que já exercia ao lado de Zeca que passou apenas a ser seu assistente. Entregou-se à bebida e passou por um período de profunda depressão. Com os filhos crescidos, viveu passivamente sua condição de avó, mantendo do marido o jeito conciliador e conformista perante os conflitos na comunidade. Recolheu-se, assim, a uma insignificância um tanto surpreendente dada a personalidade altiva e proativa que tinha.

Donana, a avó, matriarca, saiu da vida para se tornar um mito convertida em animal e segue rondando as terras de Água Negra como guardiã do povo frente à tirania do fazendeiro.

O livro de Itamar Vieira Jr. é, assim, uma narrativa épica de sofrimento e vidas inglórias. Porém, a história termina sob o advento de uma nova era para aquelas famílias com a possibilidade de serem reconhecidas como comunidade quilombola. O filho primogênito de Bibiana, mais um homem, quando jovem, vai para a universidade e quer dar sequência à luta liderada por seu pai. Presume-se que sejam os anos 1980, época de redemocratização. Um povo cansado de guerra, enfim, poderá ter sua terra reconhecida, algo que se tornou possível com a Constituição de 1988.

Diferenças e semelhanças com a literatura periférica

Retomando a questão proposta neste texto, ou seja, a possível classificação de Torto Arado como literatura periférica, destaco os seguintes elementos de aproximação. O autor tem identidade com o território e com o povo abordados na história. Nascido em Salvador, Itamar é periférico de baixa renda e construiu laços com as comunidades quilombolas em virtude de seu trabalho como servidor do Incra – Instituto de Colonização e Reforma Agrária. Dada essa vinculação, ele assume um papel perante a essas comunidades, cujas vidas são retratadas na obra. O livro, por sua vez, se passa em território periférico não urbanizado e toda a trama é conduzida por personagens locais entre os marginalizados.

Os conflitos internos são explorados com muita ênfase, o enredo de sofrimento e o desfecho de fracasso também aproxima o livro da literatura periférica. Essa percepção pode ser verificada nos dois primeiros romances de Ferréz, Capão Pecado e Manual prático do ódio. Não sobra quase nada nessas duas histórias, nem os personagens, quase todos mortos, exceto as mulheres. Paula sobrevive em Capão Pecado e Aninha, única mulher no quinteto que assalta um banco em Manual prático do ódio, é também a única que não morre.

Até aí, portanto, o Torto Arado é literatura periférica na veia. Entrando em aspectos mais internos à obra, outros elementos afastam o texto da escrita suburbana. O protagonismo feminino definitivamente não é um traço que se vê em Ferréz e Sacolinha, autor do romance Graduado em Marginalidade. Alessandro Buzo, em Guerreira, fez de Rosi uma personagem principal, mas acabou por diminuir a protagonista ao subordiná-las aos caprichos de homens inescrupulosos. O mesmo faz Ferréz em Capão Pecado, no qual monta uma história em que Paula, a protagonista feminina, só atua para fazer par sexual com os três homens com quem se relaciona, montando uma cadeia de sucessivas traições.

A posição do narrador é um outro aspecto que diferencia o livro de Itamar da literatura periférica, pelo menos de sua primeira fase na qual se destacam os autores aqui mencionados. Enquanto em Torto Arado a narrativa é em primeira pessoa e por mulheres, os autores periféricos preferem serem eles mesmos os narradores das histórias adotando uma posição onisciente perante os personagens.

Por fim, a sintaxe. O autor baiano não usa um vocabulário típico dos camponeses do interior da Bahia, embora as referências culturais sejam respeitadas. Ele prefere manter a norma culta, como faz Paulo Lins em Cidade de Deus ou José Lins do Rego em Fogo Morto, aliás, um livro que certamente serviu de inspiração para Itamar Vieira Jr., assim como foi referência para Lins.

Apesar das diferenças, Torto Arado é um livro que pode ser classificado sim como literatura periférica, ainda que o autor possa não se reconhecer nessa denominação. Mas, pelo que vi em inúmeras entrevistas, diferente de Ana Maria Gonçalves, ele não vai se incomodar com o alinhamento. E a literatura periférica, por sua vez, poderá se gabar de ter um autor que ganhou os principais prêmios literários da atualidade.


1 Entrevista publicada na Folha de São Paulo em 21/01/23: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/01/sou-escritora-negra-mas-minha-obra-e-universal-diz-autora-de-um-defeito-de-cor.shtml?origin=folha

2 SILVA, Mario Augusto Medeiros. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960 – 2000). Posteriormente publicado pela Aeroplano Editora, Rio de Janeiro, 2014

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *